Obviamente, a decisão das autoridades eclesiais, por
antecipação às iminentes resoluções das autoridades governamentais – ou a
reboque destas – faria surgir alguma contestação por parte de crentes mais
tradicionalistas ou mesmo daqueles que, em circunstâncias normais, não cumprem
com os deveres cristãos, mas se escandalizam quando alegadamente os outros não
o fazem.
A este respeito, o “Sete
Margens”, a 23 de março, referia que Raymond Burke, cardeal
norte-americano, conhecido pelas suas posições tradicionalistas e mesmo em rota
de colisão com o Papa Francisco nalguns aspetos, defende que os católicos não
devem “aceitar as determinações dos governos seculares”, que tratam a “adoração
a Deus da mesma forma que ir a um restaurante”, a um filme ou um jogo de
futebol”.
Efetivamente, em carta publicada a 21 de março e divulgada
pela “Vida
Nueva”,
acrescenta:
“Bispos e sacerdotes devemos explicar
publicamente a necessidade que os católicos têm de rezar e adorar nas suas
igrejas e capelas e ir em procissão pelas ruas pedindo a bênção de Deus sobre o
seu povo que sofre tão intensamente”.
Não obstante, dá conselhos sobre como evitar o contágio,
entre os quais o de “evitar reuniões de grupo”. Mas entende que, da mesma forma
que podemos comprar alimentos e medicamentos, “também devemos poder orar nas
nossas igrejas e capelas, receber os sacramentos e participar em atos de oração
pública”. Para isso, os padres devem desinfetar os bancos e confessionários depois
de cada celebração, recorrendo à ajuda dos fiéis, se o não puderem fazer
sozinhos.
A isto,
reagiu Frei Bento Domingues, na sua crónica dominical do passado dia 29 de
março:
“Se, como foi
noticiado, o cardeal Burke tiver dito, perante as ameaças da Covid-19, ‘que
devemos poder orar nas nossas igrejas e capelas, receber os sacramentos e participar
em atos de oração pública’, espero que alguém o convença a despir-se das pompas
cardinalícias, a envolver-se em saco e cinza para pedir perdão, através dos meios
de comunicação social, a crentes e não crentes por essa pouca vergonha”.
Não vou tão longe como Frei Bento
na exigência de que o purpurado peça perdão a crentes e não crentes, mas penso
que talvez Burke devesse deixar de se apegar ao estatuto cardinalício, antes
atendendo ao seu especial dever de obediência ao Papa e seguindo, em comunhão
com ele, imposta pela condição de católico e, a fortiori, pela sua condição de membro do Sacro Colégio. Porém,
Sua Eminência, por um lado, parece desconhecer que as restrições ao culto
resultaram, na maior parte dos casos, de decisão das autoridades eclesiásticas
– Santa Sé e Conferências Episcopais – em articulação prudente com as
autoridades sanitárias de Itália e de cada país e, por outro, desconhece as
dimensões e constrições caraterizadoras da maior parte das nossas igrejas e
capelas. Além disso, não pode a Igreja católica (nem as outras
confissões religiosas)
fazer ou dar azo a que o poder político faça policiamento nas assembleias
litúrgicas, procissões, encontros devocionais e permanência nos santuários –
sendo que, por mais indicações que se deem de distanciamento social, em grande
ajuntamento de pessoas, é difícil garantir o sucesso. Depois, é ingénuo, duro e
ineficaz impor aos sacerdotes e a alguns fiéis a desinfeção dos bancos e
confessionários. Por que não também dos altares, talhas, imagens, teto, paredes
e chão?
Aí tem razão o nosso
Primeiro-Ministro, quando preconiza: “desejamos
o melhor, mas estarmos preparados para o pior”.
É certo que, sobretudo passados
os 14 dias de interrupção do culto, como referia o psiquiatra Pedro Afonso, será
demasiada cautela os padres deixarem de celebrar, com algumas pessoas
devidamente distanciadas, num dos templos de que são responsáveis, em vez de se
recolherem permanentemente em casa e – digo eu – eventualmente porem-se em
situação de férias. Aliás, é de reparar o cuidado e a suficiente ousadia de que
se revestem algumas das celebrações transmitidas pela TV, Rádio e Internet, com
celebrante e alguns colaboradores (diáconos, leitores,
acólitos, organistas e outros instrumentistas, cantores, alguns comungantes).
Por sua vez, o missionário
espiritano Tony Neves, disse à Renascença
e à Ecclesia, a 27 de março, entender,
que “algumas pessoas têm a tentação de olhar
para tudo o que acontece de desgraça como um castigo de Deus”, o que, na sua
perspetiva (e na do Reitor do Santuário de Fátima), “esta é uma maneira muito
errada de ver Deus, como castigador e vingativo, e é também uma maneira muito
errada de olhar para a ciência”. E sustenta, no âmbito da doutrina, que “Deus é
bom, e a ciência também é fruto da sabedoria que Deus dá”, pelo que temos de
olhar para a ciência que nos diz que “as características deste vírus são estas
e estas” e “vamos fazer distanciamento social”. Ora, havendo “quem ache que a
única forma de combater este vírus é rezar mais e ter manifestações públicas de
fé juntando muita gente, e que foi um erro fechar as igrejas e acabar com as
missas”, Tony Neves porfiou que “não foi erro”. E adiantou:
“Nós podemos
rezar, podemos descobrir uma nova forma de relação com Deus, e até de uns com
os outros enquanto comunidades, respondendo com inteligência, mas também com
sentido de responsabilidade social a este tipo de pandemias”.
Por mim, devo dizer que as decisões
da Santa Sé tomadas até agora, como as da nossa Conferência Episcopal, foram as
necessárias para o momento. Por outro lado, as últimas orientações da Santa Sé,
como a carta (coloquial e afetuosa) do Arcebispo de Braga aos sacerdotes, embora
perpassadas de contenção e cautela, mostram um rumo de abrandamento
equilibrado.
De resto, devemos ter em conta
que, em 1918, a pandemia do vírus influenza, incomummente mortal, que infetou 500 milhões de pessoas e vitimou 50 milhões,
também deu azo a restrições ao culto público.
Diz-se que estamos numa espécie
de catacumbas em nossas casas, com o culto celebrado a partir de alguns lugares
sem participação física de povo, que é instado a unir-se espiritualmente às
celebrações. Anotei que estamos em ambiente parecido com o longo tempo em que o
povo, não conhecendo a língua litúrgica, deixou os mistérios a cargo exclusivo
dos ministros do Altar, embora estivesse presente nas assembleias, mas a curtir
atos devocionais, como fonte de grande espiritualidade, alimentada pela solene
pomposidade do culto bem preparado e pela pregação. Mas agora os ministros
ordenados e laicais celebram os mistérios, sem povo, mas que se une
espiritualmente a eles, pode acompanhar pela TV, Rádio e Internet e deles pode receber
a Palavra, a formação e o conforto, que podem e devem ser replicados a outros.
Devo acrescentar, para quem ande
distraído, que nas pestes, pandemias e malinas que assolavam as populações ao
longo da História, não era preciso decretar a suspensão de qualquer culto
coletivo nem qualquer quarentena ou confinamento. Nem havia força para rezar. A
maior parte das habitações eram miseráveis, as famílias acotovelavam-se dentro
de casa, sendo que muitas viviam com os animais no mesmo compartimento, e os
templos não tinham o mínimo de conforto. Assim, os focos de infeção eram mais
que muitos e muitas pessoas mal conseguiam sair de casa, onde se contorciam
febrilmente, quanto mais deslocarem-se às igrejas. E, por consequência, os
padres, se não sucumbissem também, quando se podiam deslocar ao templo, ficavam
praticamente sozinhos. Por outro lado, não havia meios de prevenção, contenção,
mitigação e cura das pandemias, não havia mecanismos de saúde pública, nem
havia TV, Rádio, Internet, telefone para contacto, informação e formação.
Amontoavam-se infetados, corpos esqueléticos e cadáveres, que aumentavam os
focos de infeção. Era a miséria em toda a linha!
***
No passado dia 26, o jornalista Joaquim Franco escrevia para o “Sete Margens”, sob o título “Oração, cidadania e solidariedade contra a
pandemia”, em que exaltava a iniciativa do Papa de
convidar os fiéis para acompanharem, no dia 27, pelos meios de comunicação, um
momento extraordinário de oração às 18 horas de Roma, a partir do adro da
Basílica de São Pedro, perante a praça vazia, na que ia ser uma das imagens
mediáticas que registam este difícil tempo da humanidade. Isto, depois da iniciativa ecuménica de
Francisco de convidar os cristãos de todo o mundo para, às 12 horas do dia 25,
recitarem o Pai-Nosso, oração fundacional no cristianismo – iniciativa que “teve
um alcance que vai além da pandemia do momento”. Declarava o Pontífice:
“Rezamos pelos doentes e suas famílias,
pelos profissionais de saúde e quantos os ajudam, pelas autoridades, as forças
da ordem e os voluntários, pelos ministros das comunidades”.
Francisco deu assim, segundo Joaquim Franco, amplitude ao papel das religiões, nomeadamente das cristãs,
pois “há uma construção a fazer, nos gestos do quotidiano e nos momentos mais
difíceis, que requer um retorno ao essencial”. E “aumenta a dramaticidade do
isolamento entre os cristãos”, impedidos de celebrar, em comunidade, o
principal tempo litúrgico do calendário.
No final, da oração do dia 27, o Papa deu a bênção Urbi et Orbi (à cidade de Roma e ao mundo), reservada para ocasiões muito especiais, como o dia
da eleição papal, a Páscoa e o Natal.
E o jornalista recorda o que se passou em Fátima no dia 25: uma cerimónia
de Consagração por causa da pandemia, que “passou
quase despercebida na comunicação social”. E enfatizou:
“O cenário terá transportado os crentes para
um misto de graça e angústia pela voz embargada do cardeal António Marto, pela
sobriedade da cerimónia no canto e nas palavras. Sem multidões nem emoções
transbordantes, amplamente visíveis se fosse uma cerimónia pública, Fátima
mostrou-se necessariamente recolhida numa basílica vazia, com o recinto vazio
ao anoitecer e os celebrantes afastados. Um contraste sem paralelo.”.
Os bispos portugueses e de Espanha consagraram a Igreja e o mundo ao
“Sagrado Coração de Jesus” e ao “Imaculado Coração de Maria”, ato a que se
associaram os bispos de outros 20 países, “mantendo a tradição antiga das
petições espirituais em tempos de aflição comunitária”.
Num quadro sóbrio, ajoelhado ante a Cruz e a imagem da Senhora de Fátima,
António Marto, emocionado, nesta “singular hora de sofrimento” (como disse
e redisse na fórmula da consagração), suplicou “inspiração
para os governantes, cura para os doentes, amparo para os velhos e vulneráveis,
conforto para médicos, enfermeiros e todo o pessoal em ação, profissionais ou
voluntários” e concluiu de forma lancinante: “livra-nos da pandemia que nos atinge”.
Podem “estas expressões quentes de fé” exalçar mais a piedade popular que
uma manifestação mais racional de fé – “se pouco ou nada há a fazer, que o Alto
tenha uma intervenção” – mas o jornalista atento fixou uma frase no texto lido
pelo prelado do Lis, como chave de leitura, que vai além da mera petição: “Reforça-nos na cidadania e na solidariedade”.
E comentou:
“Não é comum invocar a ‘cidadania’ numa
celebração religiosa desta natureza. António Marto sintonizou a oração dos
crentes com a urgência de uma atitude ativa perante expectáveis dramas
familiares e sociais. Nas narrativas evangélicas, Jesus opera no concreto da
vida próxima e faz próximos os que mais precisam. Construindo a igualdade e a
justiça como vivência e caminho de salvação, o ‘Reino’ é um encontro e o
encontro leva ao ‘Reino’.”.
Francisco, ao convocar-nos para a oração do dia 27, frisou que a confiança
incondicional na intervenção divina implica a fé comprometida com os outros e
que respondemos à pandemia com a universalidade da oração”, “da compaixão e da
ternura”, assegurando “proximidade às pessoas mais sós”. E à televisão
espanhola La Sexta disse não
imaginar as dificuldades que vão passar os empresários, mas que os despedimentos
não salvam empresas. E pede oração…
***
Se, em vez de discutirmos medidas de exceção, rezássemos mais e fôssemos
mais solidários?
2020.03.31 –
Louro de Carvalho