domingo, 1 de março de 2020

Da tentação do messianismo-espetáculo à realização da vontade do Pai


O 1.º domingo da Quaresma no Ano A assume a proclamação e a meditação da perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 4,1-11), que expõe os quadros parabólicos da tríplice tentação de Jesus e configura o contrarrelato da narrativa da tentação de Eva pela serpente, depois de Deus ter criado o homem a partir do pó da terra, insuflando-lhe o sopro de vida nas narinas (tornando-o um vivente) e tendo criado a mulher a partir do lado de Adão, tornando-a um vivente (cf Gn 2,7 – 3,1-7).
Enquanto a mulher e o homem estão no jardim das delícias cientes do que Deus lhes ordenara, “não comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal”, para não morrerem, Jesus foi impelido pelo Espírito para subir do rio Jordão para o deserto. O deserto era, por um lado, o lugar do encontro com Deus e, por outro, o lugar da prova. De facto, Deus falou ao povo no deserto, mas também foi ali que os israelitas sofreram a provação e sucumbiram à diabólica tentação da idolatria, menosprezando a Aliança que Deus estabelecera com eles.
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No texto do livro dos Génesis, o autor javista, depois de ensinar que Deus criou o homem para ser feliz, para o que lhe ofereceu a vida imortal, simbolizada na árvore da vida – mas que, graças ao dom da liberdade, o homem pode escolher prescindir de Deus e percorrer caminhos onde Deus não está – reflete sobre o mal, que desfeia o mundo e impede o homem de ter vida plena. O mal, segundo o teólogo javista, resulta das escolhas erradas que o homem tem feito.
E o texto bíblico aponta a serpente como símbolo dos poderes da sedução. A serpente era, entre os povos antigos, talvez em razão da sua alegada morfologia fálica, o símbolo da vida e da fecundidade, de modo que os cananeus desenvolverem o culto da serpente para invocarem os deuses da fertilidade realizando rituais mágicos destinados a assegurar a fecundidade dos campos. E os israelitas, instalados naquela Terra, deixaram-se fascinar por tais cultos, o que significava prescindir do Senhor e abandonar o caminho da Lei e da Aliança. A serpente surge agora como símbolo de tudo o que afasta os homens de Deus, sugerindo-lhes caminhos de orgulho, egoísmo e autossuficiência. Naturalmente Eva, levada pelo encanto serpentino, quis que os seus olhos se abrissem para ficar a ser como Deus. E Adão embarcou solidariamente na onda com a mulher. E, em vez do espetáculo da divindade corporizada nos seres humanos, sobreveio o espetáculo da nudez humana, que urgiu tapar com folhas de figueira.
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O cenário das tentações de Jesus, em Mateus (e nos outros sinóticos), segue-se imediatamente ao Batismo (cf. Mt 3,13-17) – quer em termos cronológicos, quer em termos lógicos – e antecede a sua vida pública. Porque recebeu o Espírito (Batismo), Jesus pode enfrentar e vencer a tentação de uma atuação messiânica imediata e espetacular, em proveito próprio, que o levaria a subverter gravemente a concretização da vontade do Pai.
As tentações ocorrem no deserto, para onde, segundo Mateus, Jesus foi conduzido pelo Espírito, “a fim de ser tentado pelo demónio” e onde passou os 40 dias e 40 noites que resumem os 40 anos que Israel passou em peregrinação pelo deserto. E Frederico Lourenço (Bíblia, vol. I) traduz “foi levado pelo espírito a subir até ao deserto” e explicita, em nota, que “levado a subir” corresponde ao aoristo passivo “anêkhthê”, do verbo “anágô” e que “esta subida tem primacialmente sentido topográfico, já que antes Jesus se encontrava junto do rio Jordão”, mas, “como a subida é impelida pelo espírito, isso só por si lhe confere uma significância espiritual”.
Este relato não é reportagem jornalística, mas uma página catequética, cujo objetivo é ensinar que Jesus, apesar de ter sentido a mordedura das tentações, soube relevar o projeto do Pai.
O relato de mateano amplia o relato original de Marcos, com um diálogo entre Jesus e o diabo, feito de citações do Antigo Testamento (sobretudo do livro do Deuteronómio).
A catequese sobre as opções de Jesus aparece em três quadros parabólicos. No primeiro, sugere-se que Jesus poderia ter optado pela colmatação das necessidades físicas e materiais: comer porque tinha fome. E faria o milagre de Filho de Deus transformando pedras em pão. Porém, Ele sabe que “não é com base em pão só” que vive o homem (vd Dt 8,3), mas “em cima de cada palavra (ou frase) saída através da boca de Deus”. Repare-se na preposição “epí” construída com dativo, a significar “em cima de” e que a palavra “só” não é originariamente um advérbio, mas um adjetivo a concordar com pão (“pão só”). Está visto que a base em que assenta a vida humana é eminentemente espiritual e o Reino de Deus não se processa, por vontade do Pai, de imediato, mas dando tempo ao tempo, paulatinamente, embora num corajoso “crescendo”.
O segundo quadro insinua que Jesus poderia ter escolhido um caminho de êxito fácil, mostrando o seu poder com um gesto espetacular, o que levaria à aclamação pelas multidões. Mas Ele responde à tentação, abonada com o Salmo (Sl 91,11), citando Dt 6,16, por não estar interessado em utilizar o dom de Deus para satisfazer projetos pessoais de triunfo humano. “Não tentar” o Senhor significa não exigir de Deus sinais e provas que sirvam para a promoção pessoal do homem e para que ele se imponha aos olhos dos outros. Uma boa lição para nós!
O último quadro sugere que Jesus poderia ter escolhido um caminho de poder, ao jeito dos grandes da terra. Mas Ele sabe que a tentação de fazer do poder a prioridade fundamental da vida é uma tentação diabólica e conduz inevitavelmente à idolatria diabólica (“se prostrado por terra me adorares”); por isso, citando Dt 6,13, diz que só o Pai é absoluto e que só Ele deve ser adorado.
Estes quadros de tentações não são mais do que as várias faces de uma única tentação: a de prescindir de Deus e de escolher o caminho da autossuficiência, da satisfação das próprias necessidades imediatas, do aproveitamento em benefício próprio das coisas santas, da idolatria do poder, personalidade, dinheiro – espezinhando todos em nome do culto próprio.
Porque Jesus não seguiu essa via, “o demónio deixa-O e logo os Anjos se aproximaram e serviram Jesus”. Anote-se o que observa Frederico Lourenço: expressiva aqui a sucessão dos tempos verbais: presente histórico (“deixa-O”: aphíêsin), aoristo (“vieram”: prosêlthon) e imperfeito (“serviam”: diêkónun – do verbo diakonéô, servir à mesa).
Efetivamente, Jesus de Nazaré “andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele” (At 10,38). Era essa a vontade do Pai que pregasse, curasse, ensinasse o reino do perdão, reino que vai crescendo até à consumação; que fizesse prodígios, mas não em proveito próprio; que não fizesse tudo sozinho, mas que, através de discípulos, constituísse um novo Povo Eleito; e que, chegada a sua hora, aceitasse a morte em propiciação pelo pecados da humanidade. E, como diz Pedro, a Ele, que mataram, suspendendo-O dum madeiro, Deus ressuscitou-O e permitiu-lhe manifestar-se às testemunhas designadas por Deus (que comeram e beberam com Ele depois da ressurreição), às quais mandou pregar ao povo e confirmar que Ele é que foi constituído, por Deus, juiz dos vivos e dos mortos. Com efeito, “é Dele que todos os profetas dão testemunho: quem acredita Nele recebe, pelo seu nome, a remissão dos pecados” (cf At 10,39-43).
2020.03.01 - Louro de Carvalho

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