terça-feira, 3 de março de 2020

Crianças e adolescentes não devem ser sobrecarregados com atividades


Muitas crianças e adolescentes, para lá da escola, ocupam-se em demasia com múltiplas atividades, de que se destacam a ginástica, a música, a dança, o futebol, o inglês o judo ou o karaté, a natação, o escutismo e muitas outras atividades. E, se além das atividades escolares, se aplicassem a mais uma atividade das elencadas ou outra considerada adequada, tudo bem. Todavia, muitos pais induzem os filhos a uma superocupação em tempo pós-escolar ou ao fim de semana, sendo que a sua prestação em muitas atividades é de verdadeira competição.
Não obstante, ninguém levanta a questão da exploração do trabalho/atividade infantil, o que, aliás, também acontece em relação à participação das crianças e adolescentes em telenovelas ou em spots publicitários. Mas, se um indivíduo é surpreendido a trabalhar por conta de outrem, ainda que sazonalmente, antes dos 16 anos de idade, e mesmo a acompanhar a família, podem as competentes autoridades autuar os responsáveis por infração à lei. Nestes termos, a pedagogia de Freinet será hoje insustentável por preconizar a educação pelo trabalho, tal como a pedagogia de Pai Américo nas ditas Casas do Gaiato. Assim, recordo que algumas inspeções em educação censuraram algumas práticas escolares que levavam os alunos ao desenvolvimento de atividades físicas. Contudo, ninguém contabiliza o desgaste físico e psíquico das crianças provocado por horas a fio frente ao computador ou com o telemóvel ou o Tablet entre mãos.     
Seja como for, para lá da escola – onde as crianças e adolescentes passam muito tempo e cujo currículo é excessivamente pesado e, no 3.º Ciclo, muito atomizado pela grande diversidade de disciplinas com carga horária semanal reduzida –, as crianças ficam demasiado ocupadas e sem tempo para usufruírem da liberdade, para desenvolverem a criatividade, para fazerem as suas próprias escolhas ou para brincarem. E brincar, segundo os especialistas, é oxigénio para os mais pequenos, o que não quer dizer que tudo se reduza ao campo lúdico, pois a aprendizagem requer esforço, responsabilidade e sentido de trabalho.
O tema é debatido recorrentemente e suscita dúvidas. Os especialistas entendem que as crianças estão demasiado ocupadas, com o tempo todo preenchido e sem alternativa para o que realmente importa com vista ao seu desenvolvimento.
Obviamente, não há fórmulas universais nem regras estanques e não se pode cair no 8 ou no 80.
Maria José Araújo, professora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto (IPP) e investigadora nesta área do brincar e do tempo livre, vinca:  
As crianças têm de ter oportunidade para brincar e divertir­‑se, visando os propósitos da sua educação e do seu bem­‑estar”.
Em teoria isto percebe-se, mas na prática, com a logística diária, vidas atarefadas, pais à beira dum ataque de nervos entre as questões familiares e profissionais, tudo se torna mais complexo. Com efeito, como sublinha a investigadora, “as crianças dependem dos adultos, dos pais, dos educadores, não decidem sozinhas e ficam à espera que alguém lhes dê essa possibilidade”. Ora, “brincar é como respirar para as crianças”, que “só aprendem porque brincam” pois, segundo alguns, “brincar é a única forma que a criança tem de aprender quando é pequena, mesmo na sala de aula”. De facto, na maioria das vezes, só querem brincar (É a atividade que melhor conhecem). Não obstante, passam demasiado tempo na escola, ocupando os finais de tarde com atividades desportivas ou de complemento ao estudo, restando-lhes pouca margem para darem largas à criatividade, tão importante no crescimento. É certo que há a modalidade das ATL (atividades de tempos livres), mas é de questionar se os centros de ATL facultam às crianças e adolescentes atividades não estruturadas. De facto, a incessante tentativa de ocupação da criança nem sempre leva à recuperação de hábitos simples criadores de verdadeiro tempo de qualidade em família, como fazer um bolo nas tardes frias de domingo ou não fazer nada, pura e simplesmente.
Segundo Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta do casal no Centro de Estudos da Família e Psicoterapia, as atividades estruturadas (inglês, guitarra, ginástica, etc.) são fundamentais para a aprendizagem, em termos intelectuais, sociais, físicos, mas nessas a criança não tem liberdade. E os tempos livres são essenciais para que aprenda a lidar com a frustração.
Diz a psicóloga que “as crianças não estão habituadas a parar” e “não fazer nada é fazer alguma coisa: para­‑se, respira­‑se, ou pura e simplesmente descansa­‑se”. E Joana Appleton Figueira, médica pediatra do Hospital dos Lusíadas, verificando que não é incomum ouvi‑las comentar que não têm nada para fazer, salienta que “o tédio é fundamental para a criança descobrir coisas diferentes para fazer”.
E Maria José Araújo, que publicava, em 2009, o livro “Crianças Ocupadas, editado pela Prime Books, a alertar para esta realidade, observa:  
Estamos muito preocupados com a escola, temos uma sociedade hiperescolarizada, e isto não é errado. A escola é fundamental, mas no tempo curricular que está previsto na lei. Nas restantes horas, as crianças, que gostam de fazer muitas coisas, deveriam ter a oportunidade de escolher algumas das suas atividades.”.
Mais: além de ser importante terem as crianças tempos livres sem estarem demasiado ocupadas, é relevante deixá­‑las escolher em vez de serem sempre os pais a fazê­‑lo. E a investigadora, nas suas aulas no IPP, dedica uma unidade curricular a esta questão e uma outra relacionada com a motricidade e o bem­‑estar, por forma a alertar os alunos de hoje, educadores de amanhã, para a valorização do tempo livre como algo essencial para a vida das crianças. O objetivo é formar professores sobre o brincar e o ocupar das crianças após o horário letivo.
As atividades organizadas são habitualmente propostas pelas instituições e escolhidas pelos pais. Mas os estudos provam que, se as crianças escolhem o que fazer e os pais respeitam essa escolha, elas não se cansam tanto e usufruem em pleno. Porém, se as atividades não correspondem ao que a criança deseja, acaba por ser frequente a desistência. E é esse um dos motivos que levam os pais a recorrer às consultas da psicóloga Catarina Mexia, que alerta:
A preocupação que aparece mais em consulta é o que se passa com os filhos, porque é que não persistem e desistem facilmente. A questão é que os pais não estão a ouvir os filhos.”.
Brincar implica correr, estar ao ar livre, interagir com os amigos e outras crianças nem, mas isso não é possível em algumas escolas tradicionais por terem espaços condicionados, o que torna o tempo de recreio mais limitativo. Quase todas as atividades são realizadas em espaços fechados, passando as crianças dum espaço fechado para outro. Porém, há muitas escolas e outras instituições que têm muito cuidado e que fazem uma ação notável ao proporcionarem recreio ao ar livre, idas a um parque, passeios, caminhadas, brincadeiras e jogos no exterior.
Às vezes, como os pais trabalham e não têm quem lhes vá buscar os filhos à escola no final do tempo de aulas, a brincadeira é substituída por salas com poucas funcionárias para o número de crianças e com televisão para os manter quietos ou por ATL, que são prolongamentos da escola, com salas semelhantes e onde se fazem trabalhos de casa. Ora, assim, entramos em contradição, como aponta Maria José Araújo:
Queremos muito que as crianças sejam responsáveis, mas não desenvolvemos a sua responsabilidade e autonomia. Porque isso pressupõe que brinquem e o façam com os outros.”.
Atualmente há ainda uma enorme pressão com os resultados escolares, daí que se incentive o estudo. O dito “Tens de ter boas notas para seres alguém na vida” é identificado por cada um de nós. Ora, as crianças já são ‘alguém’ quando nascem, são pessoas de pleno direito. Porém, as legítimas preocupações dos pais levam‑nos a organizar as atividades que julgam poderem vir a proporcionar mais oportunidades e um trabalho aos filhos no futuro. Só falta a perceção de que a brincar a criança também aprende. Aliás, percebe-se a quantidade de vezes em que ela reforça que quer brincar “só mais um bocadinho” e insiste em que os adultos partilhem o momento.
Todavia, mais do que a quantidade de atividades, o tempo deve ser passado com qualidade e, se possível, partilhado com os pais, com alguma organização embora sem exageros. “Por vezes, é mais útil não programar tanto ao fim de semana e deixar acontecer”, conclui Catarina Mexia.
Não há receitas uniformes nem poções mágicas. Assim, o que pode ser ideal para uma família, não o é necessariamente para outra. E Joana Appleton Figueira sugere:
Para algumas crianças, principalmente as mais velhas, pode não haver muito tempo livre todos os dias, desde que, durante a semana, existam horas disponíveis para ler, conversar com a família e com os amigos. O tempo livre pode ser passado a ajudar os pais com o jantar sem tecnologias ligadas, enquanto conversam, e deve ser proporcionado diariamente às crianças mais novas, sem ecrãs, com poucos brinquedos acessíveis de cada vez (num quarto cheio, a criança nem consegue decidir com o que brincar).”.
Nesta sociedade em que as pessoas estão cada vez mais ocupadas, sobra pouco tempo para se refletir sobre as melhores decisões que se podem ou devem tomar no dia­ a­ dia. Porém, o livro Crianças Ocupadas, já referido, em que a autora procura facultar aos pais um instrumento que lhes permita decidir o que é melhor para os filhos, pode constituir prestimosa ajuda. O mesmo se diga do livro O quê?… Os adultos não sabem?”, da mesma autora, um livro que resulta dum trabalho incluído num projeto de educação criativa desenvolvido ao longo de três anos com crianças do 1.º ciclo do ensino básico na escola EBl/JI do Cerco do Porto (Agrupamento de Escolas do Cerco) e em que as crianças tentam explicar, à sua maneira, que precisam de que as deixem brincar.
***
O problema é que, não havendo articulação entre o trabalho e a vida familiar, as crianças e adolescentes vivem demasiadas horas fora dos pais; e, como os avós têm de trabalhar até idades avançadas, têm de multiplicar-se as creches, os infantários, as ATL e tantos centros de atividades, tal como a dita escola a tempo inteiro, que a própria UE promove e financia.
2020.03.03 – Louro de Carvalho

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