Muitas crianças
e adolescentes, para lá da escola, ocupam-se em demasia com múltiplas
atividades, de que se destacam a ginástica, a música, a dança, o futebol, o
inglês o judo ou o karaté, a natação,
o escutismo e muitas outras atividades. E, se além das atividades escolares, se
aplicassem a mais uma atividade das elencadas ou outra considerada adequada,
tudo bem. Todavia, muitos pais induzem os filhos a uma superocupação em tempo
pós-escolar ou ao fim de semana, sendo que a sua prestação em muitas atividades
é de verdadeira competição.
Não obstante,
ninguém levanta a questão da exploração do trabalho/atividade infantil, o que, aliás,
também acontece em relação à participação das crianças e adolescentes em
telenovelas ou em spots publicitários.
Mas, se um indivíduo é surpreendido a trabalhar por conta de outrem, ainda que
sazonalmente, antes dos 16 anos de idade, e mesmo a acompanhar a família, podem
as competentes autoridades autuar os responsáveis por infração à lei. Nestes
termos, a pedagogia de Freinet será hoje insustentável por preconizar a educação
pelo trabalho, tal como a pedagogia de Pai Américo nas ditas Casas do Gaiato. Assim,
recordo que algumas inspeções em educação censuraram algumas práticas escolares
que levavam os alunos ao desenvolvimento de atividades físicas. Contudo,
ninguém contabiliza o desgaste físico e psíquico das crianças provocado por
horas a fio frente ao computador ou com o telemóvel ou o Tablet entre mãos.
Seja como
for, para lá da escola – onde as crianças e adolescentes passam muito tempo e
cujo currículo é excessivamente pesado e, no 3.º Ciclo, muito atomizado pela grande
diversidade de disciplinas com carga horária semanal reduzida –, as crianças
ficam demasiado ocupadas e sem tempo para usufruírem da liberdade, para
desenvolverem a criatividade, para fazerem as suas próprias escolhas ou para
brincarem. E brincar, segundo os especialistas, é oxigénio para os mais
pequenos, o que não quer dizer que tudo se reduza ao campo lúdico, pois a aprendizagem
requer esforço, responsabilidade e sentido de trabalho.
O tema é
debatido recorrentemente e suscita dúvidas. Os especialistas entendem que as crianças
estão demasiado ocupadas, com o tempo todo preenchido e sem alternativa para o
que realmente importa com vista ao seu desenvolvimento.
Obviamente,
não há fórmulas universais nem regras estanques e não se pode cair no 8 ou no 80.
Maria José
Araújo, professora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do
Porto (IPP) e investigadora nesta área do brincar e do tempo
livre, vinca:
“As crianças têm de ter oportunidade para
brincar e divertir‑se, visando os propósitos da sua educação e do seu bem‑estar”.
Em teoria
isto percebe-se, mas na prática, com a logística diária, vidas atarefadas, pais
à beira dum ataque de nervos entre as questões familiares e profissionais, tudo
se torna mais complexo. Com efeito, como sublinha a investigadora, “as crianças
dependem dos adultos, dos pais, dos educadores, não decidem sozinhas e ficam à
espera que alguém lhes dê essa possibilidade”. Ora, “brincar é como respirar
para as crianças”, que “só aprendem porque brincam” pois, segundo alguns, “brincar
é a única forma que a criança tem de aprender quando é pequena, mesmo na sala
de aula”. De facto, na maioria das vezes, só querem brincar (É a
atividade que melhor conhecem). Não obstante,
passam demasiado tempo na escola, ocupando os finais de tarde com atividades
desportivas ou de complemento ao estudo, restando-lhes pouca margem para darem
largas à criatividade, tão importante no crescimento. É certo que há a
modalidade das ATL (atividades de tempos livres), mas é de questionar se os centros de ATL facultam às
crianças e adolescentes atividades não estruturadas. De facto, a incessante
tentativa de ocupação da criança nem sempre leva à recuperação de hábitos simples
criadores de verdadeiro tempo de qualidade em família, como fazer um bolo nas
tardes frias de domingo ou não fazer nada, pura e simplesmente.
Segundo Catarina
Mexia, psicóloga e terapeuta do casal no Centro de Estudos da Família e
Psicoterapia, as atividades estruturadas (inglês, guitarra, ginástica, etc.) são fundamentais para a aprendizagem, em termos
intelectuais, sociais, físicos, mas nessas a criança não tem liberdade. E os
tempos livres são essenciais para que aprenda a lidar com a frustração.
Diz a
psicóloga que “as crianças não estão habituadas a parar” e “não fazer nada é
fazer alguma coisa: para‑se, respira‑se, ou pura e simplesmente descansa‑se”.
E Joana Appleton Figueira, médica pediatra do Hospital dos Lusíadas,
verificando que não é incomum ouvi‑las comentar que não têm nada para fazer, salienta
que “o tédio é fundamental para a criança descobrir coisas diferentes para
fazer”.
E Maria José
Araújo, que publicava, em 2009, o livro “Crianças Ocupadas”, editado pela Prime Books, a
alertar para esta realidade, observa:
“Estamos muito preocupados com a escola,
temos uma sociedade hiperescolarizada, e isto não é errado. A escola é
fundamental, mas no tempo curricular que está previsto na lei. Nas restantes
horas, as crianças, que gostam de fazer muitas coisas, deveriam ter a
oportunidade de escolher algumas das suas atividades.”.
Mais: além de
ser importante terem as crianças tempos livres sem estarem demasiado ocupadas,
é relevante deixá‑las escolher em vez de serem sempre os pais a fazê‑lo. E a
investigadora, nas suas aulas no IPP, dedica uma unidade curricular a esta
questão e uma outra relacionada com a motricidade e o bem‑estar, por forma a
alertar os alunos de hoje, educadores de amanhã, para a valorização do tempo
livre como algo essencial para a vida das crianças. O objetivo é formar professores
sobre o brincar e o ocupar das crianças após o horário letivo.
As
atividades organizadas são habitualmente propostas pelas instituições e
escolhidas pelos pais. Mas os estudos provam que, se as crianças escolhem o que
fazer e os pais respeitam essa escolha, elas não se cansam tanto e usufruem em
pleno. Porém, se as atividades não correspondem ao que a criança deseja, acaba
por ser frequente a desistência. E é esse um dos motivos que levam os pais a
recorrer às consultas da psicóloga Catarina Mexia, que alerta:
“A preocupação que aparece mais em consulta
é o que se passa com os filhos, porque é que não persistem e desistem
facilmente. A questão é que os pais não estão a ouvir os filhos.”.
Brincar
implica correr, estar ao ar livre, interagir com os amigos e outras crianças
nem, mas isso não é possível em algumas escolas tradicionais por terem espaços
condicionados, o que torna o tempo de recreio mais limitativo. Quase todas as
atividades são realizadas em espaços fechados, passando as crianças dum espaço
fechado para outro. Porém, há muitas escolas e outras instituições que têm muito
cuidado e que fazem uma ação notável ao proporcionarem recreio ao ar livre,
idas a um parque, passeios, caminhadas, brincadeiras e jogos no exterior.
Às vezes,
como os pais trabalham e não têm quem lhes vá buscar os filhos à escola no
final do tempo de aulas, a brincadeira é substituída por salas com poucas
funcionárias para o número de crianças e com televisão para os manter quietos
ou por ATL, que são prolongamentos da escola, com salas semelhantes e onde se
fazem trabalhos de casa. Ora, assim, entramos em contradição, como aponta Maria
José Araújo:
“Queremos muito que as crianças sejam
responsáveis, mas não desenvolvemos a sua responsabilidade e autonomia. Porque
isso pressupõe que brinquem e o façam com os outros.”.
Atualmente há
ainda uma enorme pressão com os resultados escolares, daí que se incentive o
estudo. O dito “Tens de ter boas notas
para seres alguém na vida” é identificado por cada um de nós. Ora, as
crianças já são ‘alguém’ quando nascem, são pessoas de pleno direito. Porém, as
legítimas preocupações dos pais levam‑nos a organizar as atividades que julgam
poderem vir a proporcionar mais oportunidades e um trabalho aos filhos no
futuro. Só falta a perceção de que a brincar a criança também aprende. Aliás,
percebe-se a quantidade de vezes em que ela reforça que quer brincar “só mais
um bocadinho” e insiste em que os adultos partilhem o momento.
Todavia, mais
do que a quantidade de atividades, o tempo deve ser passado com qualidade e, se
possível, partilhado com os pais, com alguma organização embora sem exageros. “Por
vezes, é mais útil não programar tanto ao fim de semana e deixar acontecer”,
conclui Catarina Mexia.
Não há
receitas uniformes nem poções mágicas. Assim, o que pode ser ideal para uma
família, não o é necessariamente para outra. E Joana Appleton Figueira sugere:
“Para algumas crianças, principalmente as
mais velhas, pode não haver muito tempo livre todos os dias, desde que, durante
a semana, existam horas disponíveis para ler, conversar com a família e com os
amigos. O tempo livre pode ser passado a ajudar os pais com o jantar sem
tecnologias ligadas, enquanto conversam, e deve ser proporcionado diariamente
às crianças mais novas, sem ecrãs, com poucos brinquedos acessíveis de cada vez
(num quarto cheio, a criança nem consegue decidir com o que brincar).”.
Nesta
sociedade em que as pessoas estão cada vez mais ocupadas, sobra pouco tempo
para se refletir sobre as melhores decisões que se podem ou devem tomar no dia
a dia. Porém, o livro “Crianças
Ocupadas”, já referido, em que a autora procura facultar aos pais um
instrumento que lhes permita decidir o que é melhor para os filhos, pode
constituir prestimosa ajuda. O mesmo se diga do livro “O quê?… Os adultos não sabem?”, da mesma autora, um
livro que resulta dum trabalho incluído num projeto de educação criativa
desenvolvido ao longo de três anos com crianças do 1.º ciclo do ensino básico na
escola EBl/JI do Cerco do Porto (Agrupamento de Escolas do Cerco) e em que as crianças tentam explicar, à sua maneira,
que precisam de que as deixem brincar.
***
O problema é
que, não havendo articulação entre o trabalho e a vida familiar, as crianças e adolescentes
vivem demasiadas horas fora dos pais; e, como os avós têm de trabalhar até
idades avançadas, têm de multiplicar-se as creches, os infantários, as ATL e
tantos centros de atividades, tal como a dita escola a tempo inteiro, que a própria
UE promove e financia.
2020.03.03 –
Louro de Carvalho
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