Como
anunciou Francisco a 4 de março de 2019, os documentos do Pontificado de Pio
XII (1939-1958) são consultáveis por estudiosos no Arquivo Apostólico
Vaticano e noutros arquivos da Santa Sé a partir de 2 de março de 2020.
Trata-se duma disponibilidade que foi precedida por um trabalho de mais de 14
anos e envolve, além do Arquivo do Vaticano, o Arquivo Histórico da Secção para
as Relações com os Estados, da Secretaria de Estado, o Arquivo da Congregação
para a Doutrina da Fé, o Arquivo Histórico da Congregação para a Evangelização
dos Povos (de Propaganda Fide), o Arquivo
Histórico da Congregação para as Igrejas Orientais, o Arquivo da Penitenciaria
Apostólica e o Arquivo Histórico Geral da Fábrica de São Pedro.
Só o arquivo
dos Assuntos Gerais inclui quase 5.000 caixas reordenadas, numeradas e
descritas por 15 arquivistas, que produziram um inventário de cerca de 15.000
páginas, que podem ser consultadas em formato digital e onde estão retratados
20 anos da Igreja e da sociedade. Ao lado dos arquivistas, trabalharam técnicos
dos laboratórios de encadernação e restauração, de reprodução de fotos, de
organização das caixas em material que garante a conservação e do Centro de
Processamento de Dados. E é de referir que as reservas para consulta dos
documentos deste período foram feitas a partir de outubro de 2019.
Todos os
envolvidos apresentaram o significado da abertura dos arquivos em conferência
de imprensa a 20 de fevereiro, assim como na Jornada de Estudos realizada a 21 de fevereiro no Instituto
Patrístico Augustinianum. E, a 27 de fevereiro, algumas estações de
televisão puderam gravar imagens dos espaços de armazenamento do Arquivo
Vaticano e de documentos selecionados. Para se ter ideia da vastidão da documentação
disponibilizada, pode ser consultado no Arquivo Vaticano – no atinente ao
Pontificado do Papa Pacelli – um conjunto de 73 arquivos de representações
pontifícias, 15 séries da Secretaria de Estado, 21 acervos de Congregações
romanas e escritórios da Cúria e palatinos, 3 do Estado da Cidade do Vaticano e
outros 8 acervos. No total, 120 entre acervos e séries, com 20.000 documentos.
Os vários
arquivos da Santa Sé podem receber um total de cerca de 120 pesquisadores, que
em alguns casos, podem usufruir da digitalização dos documentos e interrogar
digitalmente os novos inventários. No Arquivo do Vaticano (que pode
acolher diariamente 60 pesquisadores), as
reservas para a consulta dos documentos do Pontificado de Pio XII iniciaram-se
em meados de outubro passado. As recebidas até então foram distribuídas no arco
de diversos meses (até maio-junho), procurando
assegurar na distribuição das vagas um certo equilíbrio entre os estudiosos do
Pontificado do Papa Pacelli e os de outros períodos.
***
Não foi,
como é óbvio, Francisco o único Pontífice a disponibilizar arquivos do Vaticano
aos investigadores. Outros o fizeram. É o Papa quem decide da abertura dos
documentos dum pontificado de seu predecessor. Assim, quando Leão XIII, em
1881, abriu progressivamente às pesquisas dos estudiosos o Arquivo do Vaticano,
os documentos ficaram disponíveis até 1815. Em 1921, Bento XV prolongou a
consulta para 1830, enquanto pouco depois (1924) Pio XI estendeu o período a ser consultado para 1846 (final de
Pontificado de Gregório XVI). Paulo VI,
em 1966, abriu para consultas os documentos de Pontificado de Pio IX (1846-1878). São João Paulo II, em 1978, estendeu o prazo até o
final do Pontificado de Leão XIII (1878-1903); em 1984, estendeu a consulta de documentos até 1922,
incluindo os Pontificados de Pio X (1903-1914) e Bento XV (1914-1922); em 2002, disponibilizou os documentos para os
pesquisadores, a partir do início de 2003, relativos à Alemanha no Pontificado
de Pio XI (1922-1939),
conservados no Arquivo Vaticano e no Arquivo Histórico da Secção para as
Relações com os Estados, da Secretaria de Estado; e, em 2004, decidiu a
publicação antecipada dos dados relativos aos prisioneiros da última guerra (1939-1945), conservados nos documentos do acervo “Ufficio Informazione Vaticano”. Por fim,
em 2006, Bento XVI tornou acessíveis todos os documentos do Pontificado de Pio
XI e permitiu o inventário e a consulta antecipada no que tange aos acervos
censitários dos arquivos eclesiásticos italianos de 1942 e da Pontifícia
Comissão Central de Arte Sacra na Itália (os inventários ficaram prontos
respetivamente em 2010-2011 e 2013).
***
Os quase 20
anos do Pontificado de Eugenio Pacelli, complexos e dramáticos, envolvem
a II Guerra mundial, a reconstrução, a contraposição dos blocos ocidentais e
orientais, bem como instâncias e fermentos nascidos neste período na Igreja e
na sociedade e desenvolvidos nos anos seguintes. A importância da abertura
consiste na possibilidade oferecida aos estudiosos de acederem a todas as
fontes, estudando esses e outros problemas de um ponto de vista não possível
até agora. Os anos do Pontificado de Pio XII também são caraterizados por uma
marcada globalização da sociedade e abertura da Igreja a uma dimensão menos
eurocêntrica e mais universal. Pacelli encontrou uma enorme quantidade e variedade
de pessoas e não apenas no Ano Santo de 1950. Em 1952, quase meio milhão de
pessoas foram recebidas em audiências: órfãos e mutilados de guerra,
agricultores, mineiros, desportistas, jornalistas e psicólogos do desporto,
médicos, artistas, astrónomos, entre tantos outros. Para oferecer a todos uma
mensagem de compreensão e encorajamento, o Papa preparava minuciosamente os seus
discursos, que ainda hoje impressionam pelo altíssimo nível deontológico,
técnico e científico. Também este aspeto da sua versatilidade intelectual e
sensibilidade pastoral pode ser estudado em detalhe nos acervos e arquivos
agora disponibilizados para consulta dos estudiosos.
Entre os
documentos da Secção para as Relações com os Estados, encontra-se em formato
digital o fascículo sobre os “Judeus” com 4 mil nomes.
O arquivo
Histórico da Secção para as Relações com os Estados, da Secretaria de Estado
conserva os documentos da Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos
Extraordinários e do Conselho para os Assuntos Públicos da Igreja. No referente
aos arquivos da Santa Sé, é o que mais atrai interesse e curiosidade em virtude
da sua natureza “política”, em contacto direto com as nunciaturas, os governos e
as instituições internacionais, pela variedade temática.
O
Pontificado de Pio XII (1939-1958) atravessou
um período decisivo na história do século XX, desde a II Guerra Mundial à
Guerra Fria, 20 anos marcados pela multiplicação de relações bilaterais e
multilaterais, com o nascimento de realidades internacionais relevantes. A
correspondência oficial do período bélico conservada neste Arquivo Histórico foi
editada nos livros dos Actes e Documents de la Seconde Guerre
mondiale, a pedido de São Paulo VI, pelos 4 jesuítas Graham,
Schneider, Martini e Blet.
Há quase 10
anos, com vista a esta abertura, os Superiores da Secretaria de Estado
decidiram encaminhar um projeto de digitalização de toda a documentação
relacionada com o pontificado. Um grande desafio tecnológico para o Arquivo
Histórico que teve que encontrar métodos de hardware e software que a longo
prazo pudessem dar conta da grande quantidade de documentos. São 1 milhão e 300
mil documentos digitais que serão progressivamente completados com outros 700
mil documentos. Um verdadeiro desafio para o Arquivo, tanto no período inicial,
por estarem a ser modificadas completamente as modalidades de arquivamento, com
o uso de tecnologias modernas, como durante toda a fase de preparação.
Entre as
séries arquivísticas tradicionais, com denominação da Nação a que se referem,
os documentos destacam um particular surpreendente: a série arquivística
“Judeus”, 170 fascículos com a história de cerca de 4 mil nomes, como já foi
dito. Entre estes, na sua grande maioria são pedidos de ajuda da parte de
católicos com descendência judaica, mas não faltam os judeus. Encontram-se
personagens inesperadas: Paul Oskar Kristeller, jovem pesquisador de estudos
humanísticos e homem de fama mundial pelos seus estudos humanísticos, que pede
ajuda à Santa Sé. Embora no seu arquivo permaneça desconhecida ou obscura a
ajuda para a sua fuga da Europa para os EUA; e Tullio Liebman, fundador da
“Escola processualística de São Paulo” e, no pós-guerra, professor de fama
mundial nas Universidades de Pavia, Turim e Milão, que foi ajudado graças aos
colaboradores de Pio XII e pôde fugir para a América do Sul.
Será preciso
muito tempo para reconstruir a atmosfera e o ambiente destas ações, mas pelo
menos o estudioso poderá abrir outras séries como por exemplo Itália 1352b,
onde encontrará o fascículo “Acusações
contra Mons. Ottaviani por ter concedido documentos falsos para judeus e tê-los
abrigado em edifícios extraterritoriais”.
Além desta série
peculiar, quase todas as séries com denominações de nações contêm documentos
com pedidos de perseguidos que pediam documentos, alimentos e ajuda para fugirem
das crescentes perseguições racistas. Os papéis evidenciam quantos e quais os
esforços de resposta às súplicas de salvação dos perseguidos e dos necessitados
em perigo de vida, bem como o ódio nazista contra a Igreja Católica e o próprio
Papa. Ao mesmo tempo, será evidente a oposição e contrariedade de muitos
Estados em abrir as fronteiras aos que fugiam.
***
A este respeito, o Arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os
Estados, em entrevista a Vatican News, que nos arquivos de
Pio XII está espelhada toda a sua grandiosidade, a sua grande obra de
caridade e as tentativas de contactos com os soviéticos.
Diz o prelado que o Arquivo
Histórico da Secção para as Relações com os Estados é o arquivo duma
Instituição ainda existente e de origem recente (1814) e está ligado com a ação da entidade que o produziu. A sua fisionomia
espelha o desenvolvimento e a ação da Secretaria de Estado em escala
internacional, a diplomacia do Papa em defesa da paz e da justiça pelos povos.
Os documentos que pertenciam à Congregação das Relações Eclesiásticas
Extraordinárias e, nos anos 1960, ao Conselho para as Relações Públicas da
Igreja (AA.PP.) estão conservados naquela Secção. Além disso, conservam-se
as Sessões de Reuniões dos Cardeais da Congregação dos AA.EE.SS, o fundo
Caprano e as cartas do Cardeal Agostino Casaroli.
Diz ele que o pontificado
de Pio XII atravessou um período decisivo da história do século XX, da II
Guerra Mundial à Guerra Fria e o material pertencente a este pontificado é de
cerca de 2 milhões de documentos (equivalente a aproximadamente 323
metros lineares),
descrevendo a ação da Santa Sé durante o conflito, as relações diplomáticas, as
questões da concordata, tratados, ratificações, obras humanitárias e de
assistência, as relações periódicas sobre as situações político-religiosas, as
questões escolares, as questões respeitantes ao Estado do Vaticano, a ação de
alguns protagonistas como o Cardeal Maglione, Dom Tardini e Dom Montini, etc.
Refere que, no dia 2 de
março, mais de 1 milhão e 300 mil documentos acompanhados por um inventário
foram colocados a disposição dos estudiosos, sendo que os primeiros dez anos do
pontificado (1939-1948) de todas as
séries estão totalmente prontos e, a partir da segunda metade, depois de 1948,
se está a providenciar gradativamente para completar todas as séries.
A
digitalização tem vantagens: o método da digitalização garante uma melhor
conservação para estes documentos que são únicos no mundo, eliminando o
desgaste natural que deriva das consultas no papel, e oferece melhores
facilidades de consulta. A Sala de Consulta tem capacidade de 20+2
pessoas. Todo o estudioso poderá aceder, de cada um dos lugares, a todos os
documentos disponíveis. Todos os admitidos poderão consultar,
contemporaneamente com outros, todos os documentos à disposição. Não se perde
mais tempo na espera e a pesquisa é totalmente livre, muito veloz e,
provavelmente, muito apreciada. Uma outra vantagem da digitalização é a
possibilidade de solicitar em tempo real a cópia do documento que pode ser
levada. Pedidos e cópias dos documentos são feitos automaticamente. Para tanto,
a nova sala de Consultas Pio XII na Torre Bórgia foi equipada com os terminais
necessários.
Revela o secretário
para as Relações com os Estados que, desde maio de 1944 até ao fim da guerra,
um grupo de religiosas responsáveis pela audiência das principais rádios
escutavam e transcreviam os programas dedicados à guerra (de várias
emissoras em várias nações, em vários continentes) com notícias sobre o conflito, informando em tempo
real os Superiores da Secretaria de Estado. Sustenta que merece ser mencionado “O trabalho da Santa Sé para a salvação de
Roma 1939-1944”. E acrescenta uma relevante novidade: uma grande quantidade
de papéis de fundo multilaterais (quase 100 mil documentos
digitalizados) que poderá
ser de grande interesse.
Sobre a figura de
Pacelli, defende que os documentos atestam que o Papa se expressa em toda a sua
grandiosidade “como defensor da humanidade e como autêntico pastor universal” e
“um corajoso diplomata”, tendo como Papa demonstrado “uma caridade ilimitada,
nem sempre compreendida e nem mesmo compartilhada dentro dos muros vaticanos”.
Os documentos evidenciam os esforços feitos para tentar responder aos pedidos
de ajuda para a salvação dos perseguidos e dos necessitados em perigo de vida,
bem como o ódio do nazismo contra a Igreja Católica e pelo próprio Papa.
Por fim,
aduzindo não ser sua função dar pareceres ou fazer julgamentos, assegura que “serão
evidenciadas cartas inesperadas que oferecerão nova luz sobre muitas questões”.
Na verdade, “recentes estudos indicam que foi imediatamente no pós-guerra, que
houve uma grande atividade de religiosos enviados pelo Papa para tentar negociar
com autoridades soviéticas”. Com efeito, “as fontes à disposição citam que Pio
XII queria encontrar um ‘modus vivendi’, palavra-chave da chamada Ostpolitik” (aproximação
do mundo ocidental para distensão com a União Soviética), o que parece vir a confirmar-se.
***
Enfim,
continuará o surto de críticas à postura e ao trabalho de Pio XII frente ao
nazismo?
2020.03.02 – Louro de Carvalho
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