terça-feira, 3 de março de 2020

Arquivos do Pontificado de Pio XII disponíveis a partir de 2 de março


Como anunciou Francisco a 4 de março de 2019, os documentos do Pontificado de Pio XII (1939-1958) são consultáveis por estudiosos no Arquivo Apostólico Vaticano e noutros arquivos da Santa Sé a partir de 2 de março de 2020. Trata-se duma disponibilidade que foi precedida por um trabalho de mais de 14 anos e envolve, além do Arquivo do Vaticano, o Arquivo Histórico da Secção para as Relações com os Estados, da Secretaria de Estado, o Arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé, o Arquivo Histórico da Congregação para a Evangelização dos Povos (de Propaganda Fide), o Arquivo Histórico da Congregação para as Igrejas Orientais, o Arquivo da Penitenciaria Apostólica e o Arquivo Histórico Geral da Fábrica de São Pedro.
Só o arquivo dos Assuntos Gerais inclui quase 5.000 caixas reordenadas, numeradas e descritas por 15 arquivistas, que produziram um inventário de cerca de 15.000 páginas, que podem ser consultadas em formato digital e onde estão retratados 20 anos da Igreja e da sociedade. Ao lado dos arquivistas, trabalharam técnicos dos laboratórios de encadernação e restauração, de reprodução de fotos, de organização das caixas em material que garante a conservação e do Centro de Processamento de Dados. E é de referir que as reservas para consulta dos documentos deste período foram feitas a partir de outubro de 2019.
Todos os envolvidos apresentaram o significado da abertura dos arquivos em conferência de imprensa a 20 de fevereiro, assim como na Jornada de Estudos realizada a 21 de fevereiro no Instituto Patrístico Augustinianum. E, a 27 de fevereiro, algumas estações de televisão puderam gravar imagens dos espaços de armazenamento do Arquivo Vaticano e de documentos selecionados. Para se ter ideia da vastidão da documentação disponibilizada, pode ser consultado no Arquivo Vaticano – no atinente ao Pontificado do Papa Pacelli – um conjunto de 73 arquivos de representações pontifícias, 15 séries da Secretaria de Estado, 21 acervos de Congregações romanas e escritórios da Cúria e palatinos, 3 do Estado da Cidade do Vaticano e outros 8 acervos.  No total, 120 entre acervos e séries, com 20.000 documentos.
Os vários arquivos da Santa Sé podem receber um total de cerca de 120 pesquisadores, que em alguns casos, podem usufruir da digitalização dos documentos e interrogar digitalmente os novos inventários. No Arquivo do Vaticano (que pode acolher diariamente 60 pesquisadores), as reservas para a consulta dos documentos do Pontificado de Pio XII iniciaram-se em meados de outubro passado. As recebidas até então foram distribuídas no arco de diversos meses (até maio-junho), procurando assegurar na distribuição das vagas um certo equilíbrio entre os estudiosos do Pontificado do Papa Pacelli e os de outros períodos.
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Não foi, como é óbvio, Francisco o único Pontífice a disponibilizar arquivos do Vaticano aos investigadores. Outros o fizeram. É o Papa quem decide da abertura dos documentos dum pontificado de seu predecessor. Assim, quando Leão XIII, em 1881, abriu progressivamente às pesquisas dos estudiosos o Arquivo do Vaticano, os documentos ficaram disponíveis até 1815. Em 1921, Bento XV prolongou a consulta para 1830, enquanto pouco depois (1924) Pio XI estendeu o período a ser consultado para 1846 (final de Pontificado de Gregório XVI). Paulo VI, em 1966, abriu para consultas os documentos de Pontificado de Pio IX (1846-1878). São João Paulo II, em 1978, estendeu o prazo até o final do Pontificado de Leão XIII (1878-1903); em 1984, estendeu a consulta de documentos até 1922, incluindo os Pontificados de Pio X (1903-1914) e Bento XV (1914-1922); em 2002, disponibilizou os documentos para os pesquisadores, a partir do início de 2003, relativos à Alemanha no Pontificado de Pio XI (1922-1939), conservados no Arquivo Vaticano e no Arquivo Histórico da Secção para as Relações com os Estados, da Secretaria de Estado; e, em 2004, decidiu a publicação antecipada dos dados relativos aos prisioneiros da última guerra (1939-1945), conservados nos documentos do acervo “Ufficio Informazione Vaticano”. Por fim, em 2006, Bento XVI tornou acessíveis todos os documentos do Pontificado de Pio XI e permitiu o inventário e a consulta antecipada no que tange aos acervos censitários dos arquivos eclesiásticos italianos de 1942 e da Pontifícia Comissão Central de Arte Sacra na Itália (os inventários ficaram prontos respetivamente em 2010-2011 e 2013).
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Os quase 20 anos do Pontificado de Eugenio Pacelli, complexos e dramáticos, envolvem a II Guerra mundial, a reconstrução, a contraposição dos blocos ocidentais e orientais, bem como instâncias e fermentos nascidos neste período na Igreja e na sociedade e desenvolvidos nos anos seguintes. A importância da abertura consiste na possibilidade oferecida aos estudiosos de acederem a todas as fontes, estudando esses e outros problemas de um ponto de vista não possível até agora. Os anos do Pontificado de Pio XII também são caraterizados por uma marcada globalização da sociedade e abertura da Igreja a uma dimensão menos eurocêntrica e mais universal. Pacelli encontrou uma enorme quantidade e variedade de pessoas e não apenas no Ano Santo de 1950. Em 1952, quase meio milhão de pessoas foram recebidas em audiências: órfãos e mutilados de guerra, agricultores, mineiros, desportistas, jornalistas e psicólogos do desporto, médicos, artistas, astrónomos, entre tantos outros. Para oferecer a todos uma mensagem de compreensão e encorajamento, o Papa preparava minuciosamente os seus discursos, que ainda hoje impressionam pelo altíssimo nível deontológico, técnico e científico. Também este aspeto da sua versatilidade intelectual e sensibilidade pastoral pode ser estudado em detalhe nos acervos e arquivos agora disponibilizados para consulta dos estudiosos.
Entre os documentos da Secção para as Relações com os Estados, encontra-se em formato digital o fascículo sobre os “Judeus” com 4 mil nomes.
O arquivo Histórico da Secção para as Relações com os Estados, da Secretaria de Estado conserva os documentos da Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários e do Conselho para os Assuntos Públicos da Igreja. No referente aos arquivos da Santa Sé, é o que mais atrai interesse e curiosidade em virtude da sua natureza “política”, em contacto direto com as nunciaturas, os governos e as instituições internacionais, pela variedade temática.
O Pontificado de Pio XII (1939-1958) atravessou um período decisivo na história do século XX, desde a II Guerra Mundial à Guerra Fria, 20 anos marcados pela multiplicação de relações bilaterais e multilaterais, com o nascimento de realidades internacionais relevantes. A correspondência oficial do período bélico conservada neste Arquivo Histórico foi editada nos livros dos Actes e Documents de la Seconde Guerre mondiale, a pedido de São Paulo VI, pelos 4 jesuítas Graham, Schneider, Martini e Blet.
Há quase 10 anos, com vista a esta abertura, os Superiores da Secretaria de Estado decidiram encaminhar um projeto de digitalização de toda a documentação relacionada com o pontificado. Um grande desafio tecnológico para o Arquivo Histórico que teve que encontrar métodos de hardware e software que a longo prazo pudessem dar conta da grande quantidade de documentos. São 1 milhão e 300 mil documentos digitais que serão progressivamente completados com outros 700 mil documentos. Um verdadeiro desafio para o Arquivo, tanto no período inicial, por estarem a ser modificadas completamente as modalidades de arquivamento, com o  uso de tecnologias modernas, como durante toda a fase de preparação.
Entre as séries arquivísticas tradicionais, com denominação da Nação a que se referem, os documentos destacam um particular surpreendente: a série arquivística “Judeus”, 170 fascículos com a história de cerca de 4 mil nomes, como já foi dito. Entre estes, na sua grande maioria são pedidos de ajuda da parte de católicos com descendência judaica, mas não faltam os judeus. Encontram-se personagens inesperadas: Paul Oskar Kristeller, jovem pesquisador de estudos humanísticos e homem de fama mundial pelos seus estudos humanísticos, que pede ajuda à Santa Sé. Embora no seu arquivo permaneça desconhecida ou obscura a ajuda para a sua fuga da Europa para os EUA; e Tullio Liebman, fundador da “Escola processualística de São Paulo” e, no pós-guerra, professor de fama mundial nas Universidades de Pavia, Turim e Milão, que foi ajudado graças aos colaboradores de Pio XII e pôde fugir para a América do Sul.
Será preciso muito tempo para reconstruir a atmosfera e o ambiente destas ações, mas pelo menos o estudioso poderá abrir outras séries como por exemplo Itália 1352b, onde encontrará o fascículo “Acusações contra Mons. Ottaviani por ter concedido documentos falsos para judeus e tê-los abrigado em edifícios extraterritoriais”.
Além desta série peculiar, quase todas as séries com denominações de nações contêm documentos com pedidos de perseguidos que pediam documentos, alimentos e ajuda para fugirem das crescentes perseguições racistas. Os papéis evidenciam quantos e quais os esforços de resposta às súplicas de salvação dos perseguidos e dos necessitados em perigo de vida, bem como o ódio nazista contra a Igreja Católica e o próprio Papa. Ao mesmo tempo, será evidente a oposição e contrariedade de muitos Estados em abrir as fronteiras aos que fugiam.
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A este respeito, o Arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, em entrevista a Vatican News, que nos arquivos de Pio XII está espelhada toda a sua grandiosidade, a sua grande obra de caridade e as tentativas de contactos com os soviéticos.
Diz o prelado que o Arquivo Histórico da Secção para as Relações com os Estados é o arquivo duma Instituição ainda existente e de origem recente (1814) e está ligado com a ação da entidade que o produziu. A sua fisionomia espelha o desenvolvimento e a ação da Secretaria de Estado em escala internacional, a diplomacia do Papa em defesa da paz e da justiça pelos povos. Os documentos que pertenciam à Congregação das Relações Eclesiásticas Extraordinárias e, nos anos 1960, ao Conselho para as Relações Públicas da Igreja (AA.PP.) estão conservados naquela Secção. Além disso, conservam-se as Sessões de Reuniões dos Cardeais da Congregação dos AA.EE.SS, o fundo Caprano e as cartas do Cardeal Agostino Casaroli.
Diz ele que o pontificado de Pio XII atravessou um período decisivo da história do século XX, da II Guerra Mundial à Guerra Fria e o material pertencente a este pontificado é de cerca de 2 milhões de documentos (equivalente a aproximadamente 323 metros lineares), descrevendo a ação da Santa Sé durante o conflito, as relações diplomáticas, as questões da concordata, tratados, ratificações, obras humanitárias e de assistência, as relações periódicas sobre as situações político-religiosas, as questões escolares, as questões respeitantes ao Estado do Vaticano, a ação de alguns protagonistas como o Cardeal Maglione, Dom Tardini e Dom Montini, etc.
Refere que, no dia 2 de março, mais de 1 milhão e 300 mil documentos acompanhados por um inventário foram colocados a disposição dos estudiosos, sendo que os primeiros dez anos do pontificado (1939-1948) de todas as séries estão totalmente prontos e, a partir da segunda metade, depois de 1948, se está a providenciar gradativamente para completar todas as séries.
A digitalização tem vantagens: o método da digitalização garante uma melhor conservação para estes documentos que são únicos no mundo, eliminando o desgaste natural que deriva das consultas no papel, e oferece melhores facilidades de consulta. A Sala de Consulta tem capacidade de 20+2 pessoas. Todo o estudioso poderá aceder, de cada um dos lugares, a todos os documentos disponíveis. Todos os admitidos poderão consultar, contemporaneamente com outros, todos os documentos à disposição. Não se perde mais tempo na espera e a pesquisa é totalmente livre, muito veloz e, provavelmente, muito apreciada. Uma outra vantagem da digitalização é a possibilidade de solicitar em tempo real a cópia do documento que pode ser levada. Pedidos e cópias dos documentos são feitos automaticamente. Para tanto, a nova sala de Consultas Pio XII na Torre Bórgia foi equipada com os terminais necessários.
Revela o secretário para as Relações com os Estados que, desde maio de 1944 até ao fim da guerra, um grupo de religiosas responsáveis pela audiência das principais rádios escutavam e transcreviam os programas dedicados à guerra (de várias emissoras em várias nações, em vários continentes) com notícias sobre o conflito, informando em tempo real os Superiores da Secretaria de Estado. Sustenta que merece ser mencionado “O trabalho da Santa Sé para a salvação de Roma 1939-1944”. E acrescenta uma relevante novidade: uma grande quantidade de papéis de fundo multilaterais (quase 100 mil documentos digitalizados) que poderá ser de grande interesse.
Sobre a figura de Pacelli, defende que os documentos atestam que o Papa se expressa em toda a sua grandiosidade “como defensor da humanidade e como autêntico pastor universal” e “um corajoso diplomata”, tendo como Papa demonstrado “uma caridade ilimitada, nem sempre compreendida e nem mesmo compartilhada dentro dos muros vaticanos”. Os documentos evidenciam os esforços feitos para tentar responder aos pedidos de ajuda para a salvação dos perseguidos e dos necessitados em perigo de vida, bem como o ódio do nazismo contra a Igreja Católica e pelo próprio Papa.
Por fim, aduzindo não ser sua função dar pareceres ou fazer julgamentos, assegura que “serão evidenciadas cartas inesperadas que oferecerão nova luz sobre muitas questões”. Na verdade, “recentes estudos indicam que foi imediatamente no pós-guerra, que houve uma grande atividade de religiosos enviados pelo Papa para tentar negociar com autoridades soviéticas”. Com efeito, “as fontes à disposição citam que Pio XII queria encontrar um ‘modus vivendi’, palavra-chave da chamada Ostpolitik” (aproximação do mundo ocidental para distensão com a União Soviética), o que parece vir a confirmar-se.
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Enfim, continuará o surto de críticas à postura e ao trabalho de Pio XII frente ao nazismo?
2020.03.02 – Louro de Carvalho

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