sábado, 31 de dezembro de 2016

Para um 2017, Novo Ano de Fraternidade Universal…

O grande desejo para o Novo Ano, o de 2017, prestes a inaugurar-se, é de que não constitua uma espécie de outono em que as folhas da ilusão caem fazendo aflorar a desilusão, mas antes a primavera pujante da vida cheia da esperança que o tom verdejante da natureza promete em flores e frutos de mais vida e cada vez mais abundante. E, em vez do rigor invernal, há de dominar a vida dos homens a calor do verão, que faz render o que a terra tem para dar sob a força vivificadora do sol calmoso e o refrescamento da noite luarenta e estrelada.
Os dias bons do ano que finda são para agradecer a Deus e àqueles e àquelas que nos vieram ajudando a adoçar a existência de peregrinação neste mundo bastante conturbado, mas repleto de possibilidades vitais; e os dias ruins são pretexto para aprendermos a lição da nossa insuficiência e colocarmos a confiança em Deus que tudo pode e que tudo sabe e nos concidadãos que partilham connosco a efemeridade deste mundo fugaz e fazem jus connosco a esta fraternidade humana de justiça, liberdade e igualdade basilar. É o reino da cooperação e da interdependência!
Albert Einstein recorda-nos que “não existem sonhos impossíveis para aqueles que realmente acreditam que o poder realizador reside no interior de cada ser humano, sempre que alguém descobre que esse poder, antes considerado impossível, se torna realidade”. Por isso, cada um de nós tem de pôr os seus talentos a render ao serviço de si e do próximo, não se furtando a contribuir para o bem comum.
Ora quem aceitou empreender uma caminhada de Advento e Natal com o sonho de José e de Maria a concretizar o sonho humanamente inimaginável de Deus, sabe que o mistério da humildade do presépio se torna lição de vida. E esta vida canta a glória a Deus nas Alturas e preconiza a paz entre os homens na Terra – tal como cantaram os anjos na noite do Natal do Senhor.
Porém, esta glória e esta paz, imersas na vida de Deus e potenciadas na vida dos homens, só fazem sentido se os homens e mulheres do Planeta se configurarem como filhos do Pai comum e praticantes da fraternidade universal; se tiverem os sonhos de casa, terra e trabalho para todos e cada um; se aceitarem ser mensageiros da verdade e da vida e cuidadores de si próprios, de Deus, dos irmãos e do mundo como casa comum; e se se dispuserem a ser livres, atuantes e responsáveis.
Por isso, em prol da filiação comum e da fraternidade dos homens e mulheres, hauridas no mistério do Natal, 2017 apresenta o desafio do diálogo, da concertação e da paz, firmadas na ação da não violência como estilo de vida na família, na comunidade, na profissão, no grupo social, na política e no concerto das nações.
Para tanto, é necessária a coragem da fé em Deus e nos homens, a alegria do amor em família, a coragem do trabalho consciente e da remuneração justa pelo mesmo trabalho, a firme atenção da proximidade dos que mais sofrem ou do que não têm voz nem vez.
Enfim, a vida só faz pleno sentido se for digna, vivida, partilhada e verdadeiramente humana.
Mas para dar a verdadeira atenção ao homem, é preciso reconhecer o lugar proeminente de Deus no mundo e na vida e reconhecer o papel de Cristo na história dos homens!
É no mistério de Cristo, Verbo encarnado do Pai, que se perscruta e percebe o enigma humano.   
Feliz 2017!

2017.12.31 – Louro de Carvalho

Canonização de Madre Teresa de Calcutá marcou a Igreja e o Mundo

Do meu ponto de vista, a canonização de Santa Teresa de Calcutá, a 4 de setembro de 2016, poderá ter sido o facto mais marcante da Igreja Católica do ano que hoje termina. Obviamente não o será do ponto de vista da teologia pura ou mesmo da pastoral. No entanto, vem consagrar a vertente da opção preferencial pelos pobres em que a Igreja melhor se revê no seu ser e na sua missão; e, por outro lado, salienta o impacto que a ação de alguém que se dedique ao cuidado dos mais pobres, doentes, oprimidos e descartados – aliada à profunda vivência cristã – tem na dinâmica da luta não violenta pela justiça, pedindo a todos o contributo segundo as suas posses para acorrer a cada um segundo as suas necessidades. É claro que a sua elevação à honra universal dos altares não desprega nem da vida religiosa na dimensão contemplativa nem na dimensão ativa (Madre Teresa corporiza as duas dimensões) nem do dinamismo do Ano Jubilar da Misericórdia. Aliás, o Francisco, na linha dos seus predecessores mais próximos, considerou-a um ícone da misericórdia; e a sua canonização ocorreu no último trimestre do Ano Jubilar por ocasião do Jubileu dos operadores e dos voluntários da misericórdia.
A seguir a este jubileu, foram-se celebrando, no âmbito do Ano Jubilar da Misericórdia, outros jubileus emblemáticos, sem conotação com a hierarquia: o jubileu dos catequistas, de 23 a 25 de setembro; o jubileu mariano, de 7 a 9 de outubro; o jubileu dos encarcerados, a 5 e 6 de novembro; e o jubileu das pessoas socialmente excluídas, de 11 a 13 de novembro.
Sobre Santa Teresa de Calcutá e do desafio que para nós constitui a sua vida, declarou Francisco na homilia de 4 de setembro:
“Estamos chamados a pôr em prática o que pedimos na oração e professamos na fé. Não existe alternativa para a caridade: quem se põe ao serviço dos irmãos, embora não o saibamos, são aqueles que amam a Deus (cf 1 Jo 3,16-18; Tg 2,14-18). A vida cristã, no entanto, não é uma simples ajuda oferecida nos momentos de necessidade. Se assim fosse, certamente seria um belo sentimento de solidariedade humana, que provoca um benefício imediato, mas seria estéril, porque careceria de raízes. O compromisso que o Senhor pede, pelo contrário, é o de uma vocação para a caridade com que cada discípulo de Cristo põe ao seu serviço a própria vida, para crescer no amor todos os dias.”.
E, no momento da recitação do Angelus, disse aos voluntários e agentes da misericórdia:
“É com carinho que saúdo todos vós, estimados voluntários e agentes de misericórdia. Confio-vos à proteção de Madre Teresa: ela vos ensine a contemplar e adorar todos os dias Jesus Crucificado, para o reconhecer e servir nos irmãos em necessidade. Peçamos esta graça também para aqueles que estão unidos a nós através dos mass media, de todas as partes do mundo.”
Mas, se com a canonização de Madre Teresa o Papa conseguiu alertar para a síntese que os voluntários da misericórdia têm de fazer entre a contemplação e adoração de Cristo crucificado e o reconhecimento do mesmo nos irmãos em necessidade a quem é preciso servir, a 16 de novembro, na canonização de sete beatos, enalteceu todos aqueles que “permaneceram firmes na fé, com o coração generoso e fiel”. Vale a pena recordar daquela homilia de 16 de outubro o que Francisco disse destes espelhos da misericórdia divina posta em ação:
“Os Santos são homens e mulheres que se entranham profundamente no mistério da oração. Homens e mulheres que lutam mediante a oração, deixando rezar e lutar neles o Espírito Santo; lutam até ao fim, com todas as suas forças; e vencem, mas não sozinhos: o Senhor vence neles e com eles. Também estas sete testemunhas, que hoje foram canonizadas, travaram o bom combate da fé e do amor através da oração. Por isso permaneceram firmes na fé, com o coração generoso e fiel. Que Deus nos conceda também a nós, pelo exemplo e intercessão delas, ser homens e mulheres de oração; gritar a Deus dia e noite, sem nos cansarmos; deixar que o Espírito Santo reze em nós, e orar apoiando-nos mutuamente para permanecermos com os braços erguidos, até que vença a Misericórdia Divina.
***

Madre Teresa ficou conhecida como a “Santa das Sarjetas”, mas é acusada por críticos de promover a pobreza. Era o que faltava não se levantarem os picuinhas da benemerência. Na verdade, enquanto naquela manhã de domingo Francisco proclamava a santidade de vida da benemérita freira católica e todo mundo comemorava o faustoso evento, alguns distorciam a realidade segundo as suas categorias mentais, sociais, ideológicas e económicas.
Diante de milhares de pessoas na praça de São Pedro, o Papa engrandecia Teresa, que se ajoelhava “diante dos que foram deixados para morrer nas margens das estradas, enxergando neles a dignidade dada por Deus”. Reconheceu que a Madre “se fez ouvir pelas potências do mundo, para que elas reconheçam a sua culpa pelos crimes da pobreza que criaram”. Porém, os críticos questionam a comprovação dos ‘milagres’ reconhecidos pela Igreja e consideram a sua canonização como símbolo dum “triunfo da fé religiosa sobre a razão e a ciência”. Esquecem que os ditos milagres – que apenas confirmam a veridicidade da santidade de vida e devem ser atribuídos a Deus, que tudo pode – não são o móbil mais importante das canonizações, pois ignoram o instituto da canonização equipolente. E, sobretudo, ignoram a cumplicidade normal entre fé e razão, entre fé e ciência – tantas vezes afirmada neste mundo dos séculos XX e XXI.
Teresa foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz em 1979. E não parece que a Academia se tenha vergado alguma vez à falta de ciência ou à pseudociência. Afinal, o que é a ciência? Será que os críticos ainda estão apegados ao conceito redutor de ciência instaurado pelo positivismo?
Conhecida pela construção de hospitais, casas de repouso, cozinhas, escolas, colónias de leprosos e orfanatos, era chamada a “Santa das Sarjetas” pelo seu trabalho nas regiões mais pobres de Calcutá. E a sua ação estendeu-se praticamente a todo o mundo, sendo que a Congregação das Missionárias da Caridade, fundada por Madre Teresa, reúne atualmente mais de 3 500 religiosas no mundo inteiro e tem um grande número de missionários da caridade.
Todavia, apesar da legião de fiéis e admiradores, existe um sério número de detratores.
O falecido autor britânico Christopher Hitchens, um dos principais, descreveu Teresa como “uma fundamentalista religiosa, uma agente política, uma pregadora primitiva e uma cúmplice dos poderes seculares mundanos”. No seu livro “A Posição Missionária: Madre Teresa em teoria e prática, lançado em 1995, e no documentário “O Anjo do Inferno”, critica o que denomina de “cultura de sofrimento” e afirma que ela criou um imaginário de “buraco do inferno” da cidade que a acolheu, além de se ter tornado “amiga de ditadores”.
Também o físico londrino Aroup Chatterjee publicou, em 2003, uma crítica a Teresa depois de ter feito pelo menos 100 entrevistas com pessoas envolvidas com a congregação criada por ela, apontando o dedo à alegada “espantosa falta de higiene” nos centros de saúde administrados pelas Missionárias de Caridade – onde se reutilizavam agulhas, por exemplo – e descrevendo os locais em que o grupo cuidava de doentes como “confusos e mal organizados”. E considera os milagres “baratos e infantis demais até para questionar”.
E o cubano Hemley Gonzalez tornou-se crítico depois de sair de Miami para trabalhar como voluntário numa das casas de Teresa em Calcutá por 2 meses, em 2008. Diz-se chocado com o modo “terrivelmente negligente como esta missão de caridade opera e as contradições entre a realidade e a forma como ela é percebida pelo público”. Hoje, através da sua organização de caridade humanista, sem ligação à Igreja Católica, critica os alegados pensamentos retrógrados:
“Ser contra o controlo da natalidade e o planeamento familiar, a modernização de equipamentos e uma miríade de iniciativas que solucionam problemas causados pela pobreza são coisas que fazem Madre Teresa não ser 'amiga dos pobres', como dizem, mas uma pessoa que promove a pobreza”.
Também o indiano Sanal Edamaruku questionou os milagres que levaram Teresa à canonização. De facto, para ser considerado santo ou santa pelo Vaticano, ordinariamente, a pessoa precisa de ter alguns “milagres” atribuídos a ela, após a sua morte, por conta de preces que foram feitas em seu nome. Quando situações como essa acontecem, elas são “verificadas” por meio de provas exigidas pela Igreja antes de serem aceites como milagres. Normalmente, os casos são de curas ou recuperações de doenças que acontecem sem aparente explicação médica.
Assim, 5 anos após a morte de Madre Teresa, o Papa João Paulo II aceitou o que seria o seu primeiro milagre – a cura duma mulher de uma tribo de Bangladesh, Monica Besra, que tinha um tumor abdominal, cura que teria sucedido devido a intervenção sobrenatural. Isto abriu caminho para a beatificação da Madre em 2003. Em 2015, o Papa Francisco reconheceu um segundo milagre, que envolveu a cura dum brasileiro com tumores no cérebro em 2008.
Ora, Edamaruku questionou o primeiro milagre, questionando como pode uma mulher ser curada por foto de freira colocada sobre o seu estômago quando há provas de que recebeu tratamento médico contra a doença. Porém, alegando que hoje “a maioria das pessoas não quer mais negar os feitos de Madre Teresa porque ela tem uma imagem de alguém que sempre trabalhou para os pobres”, declara que não tem nada contra ela e que não é “antipobre” (como temem ser chamados os opositores da Santa), mas sustenta que “dizer que alguém faz milagres não é científico”.
A iniciativa mais significativa proveio de alguns académicos e trabalhadores sociais indianos, que pediram ao Ministro das Relações Exteriores, Sushma Swaraj, que reconsiderasse a decisão de ir ao Vaticano para prestigiar a cerimónia de canonização de Madre Teresa, pois aduziam que se tornava espantoso que “o ministro dum país cuja Constituição pede aos seus cidadãos para terem um pensamento científico aprove uma canonização baseada em milagres”,
No entanto, alguns contestam tal argumento no pressuposto de que “provas científicas e fé são coisas diferentes”.
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Quanto a milagre, basta dizer que a Igreja apenas aceita como tal o que os médicos atestam não decorrer da ciência (apesar da aplicação da terapêutica possível) e que só a fé permite aceitar o milagre, o que a razão podia acolher, ao menos, quando não tem outra explicação.
No respeitante à alegada falta de condições, os críticos mostram nunca terem trabalhado em hospitais de campanha nem esterilizado material cirúrgico, optando pelo descarte, e que a deficiência de condições se colmata pela correção e não pelo encerramento de unidades de cuidados de saúde e/ou de educação.
Acresce apontar a hipocrisia iníqua dos que pensam reduzir a pobreza com a aplicação das teses neomalthusianas. Controlar a natalidade pela pílula (com efeitos cancerígenos, antinidificadores ou mesmo abortivos) traz mais consequências para a saúde que vantagens; e fazê-lo pela via do preservativo pode levar à ineficácia. Mas ambos os recursos engrossam a indústria e o comércio. E os grandes interesses não criam só a pobreza, cavam a miséria para nutrir os grandes.
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Assim, é de incrementar a dinâmica de Madre Teresa até que os poderes se abram à Justiça e à equidade, pois todos somos filhos de Deus e irmãos universais! Que sejam estes os propósitos para 1 de janeiro, Dia Mundial da Paz e da fraternidade universal, com a Santa Mãe de Deus!

2016.12.31 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A importância da utilização de alguns advérbios e locuções adverbiais

Toda a gente sabe disso. A colocação, a omissão ou a deslocação duma simples vírgula condicionam o sentido das frases e, por consequência, a sua receção.
Ninguém estranha que a frase “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher rastejaria à sua volta” tenha sentidos diferentes conforme o ponto onde se coloque a vírgula. E, ainda que em ambos os casos, a dignidade da pessoa humana fique gravemente molestada, enquanto o machismo ditaria que a frase se escrevesse “Se o homem soubesse o valor que tem, a mulher rastejaria à sua volta”, a vassalagem das cantigas de amor de origem provençal prescreveria a sua escrita em “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher, rastejaria à sua volta”.
E quem não se lembra da tal vírgula que, inserida num decreto entre o Palácio de São Bento e o Palácio de Belém, rendeu milhões a alguns?   
Mas a pertinência destes e de outros recursos linguísticos agudizou-se-me com a leitura de um texto de Pedro Andersson, sob o título Consumir de preferência antes de...na secção de economia do arquivo do Expresso on line, de 5 de novembro.
No seu texto, o colunista sustenta que, à semelhança do que se passa no Norte da Europa e nos Estados Unidos, em relação à validade dos produtos com prazo de validade, “há dois tipos de prazos de validade”, sendo que “um deles não implica ter de deitar os produtos fora” e havendo mesmo um “supermercado que os vende, com desconto”.
O mesmo autor do texto reconhece que este “não é um conceito fácil de aceitar” por parte de muitos consumidores e que até pode criar resistências e gerar polémicas. Mas revela com naturalidade que descobriu “um supermercado exclusivamente online com produtos de marca com 30, 50 e até 70% de desconto.
Para determinar os dois tipos de prazos de validade, é preciso reparar atentamente na redação da advertência inscrita na embalagem.
Assim, a indicação absoluta “Consumir até…” é de levar a sério, pois, é prescrita “para produtos perecíveis”, de sua natureza ou por confecção; e o seu consumo após o prazo estipulado configura um risco sério para a saúde pública. Por isso, atingido o dito prazo, é forçoso que sejam retirados do mercado.
Porém, uma outra indicação, a que menos se atende e que é frequente encontrar-se em algumas embalagens é “Consumir de preferência antes de…”. E o colunista exemplifica com “a maior parte dos enlatados, molhos, especiarias, champôs, cremes de beleza, aperitivos, batatas fritas, refrigerantes, etc.” – que têm o prazo de validade indicado nestes termos. A relativização do prazo é assinalada com a locução adverbial “de preferência”, como o pode ser pelo advérbio de predicado com valor modal “preferencialmente”.
Sendo assim, não é obrigatória a observação estrita desse prazo. E esses produtos podem ser colocados à disposição do consumidor sem riscos, devendo obviamente ser avaliado o seu estado de conservação e garantir o seu consumo quanto antes.
Recordo que, a 26 de agosto de 2009, o Expresso on line dava conta de que tinham sido encontradas latas de sardinhas portuguesas na despensa de Hitler. É um texto de Abílio Ferreira que o afirma:
“Por isso, a família [Ramirez] não estranhou um telefonema do seu agente em Hamburgo, no início dos anos 50, dando conta de que tinham na sua posse três latas muito especiais. Eram conservas de sardinha em azeite que tinham sido recolhidas do bunker de Hitler. ‘Não sei como lhe foram parar às mãos, lembro-me de que as enviou ao meu pai’, recorda Manuel Ramirez. Meses depois, a família decidiu prová-las, verificando que estavam em perfeito estado de conservação. ‘Estavam óptimas’, recorda o empresário, que aproveita o episódio para troçar das leis europeias que impõem um prazo de caducidade a todos os produtos.”.
No entanto, “as empresas e as marcas têm medo deste prazo e não colocam estes produtos com prazo preferencial à venda se o fim desse prazo já estiver perto”. Mas é pena que “centenas de milhares de produtos” tantas vezes “vão para o lixo, embora estejam em perfeitas condições de consumo”. Por isso, o colunista referenciado defende que “é perfeitamente legal comercializar este tipo de produtos com este segundo tipo de prazo, mesmo depois de expirado”. E penso que essa disponibilização ao consumidor muito contribuiria para diminuir o desperdício alimentar condenado pelas Nações Unidas e pelo Papa Francisco, bem como para zelar pelo ambiente. O desperdício alimentar constitui uma postura de escárnio para com aqueles, muitos, que sofrem as agruras da fome.
Depois, milhares de embalagens de produtos não se vendem somente “porque a marca decidiu modernizar a embalagem”, pelo que são “retirados das prateleiras dos supermercados”, mesmo estando “dentro de todos os prazos”.
Nasceu assim o supermercado Good After. Vão às marcas por aquilo “que já não vai para os hipermercados e colocam à venda com descontos de 30 a 70%, conforme o prazo de validade “preferencial” já esteja ou não ultrapassado”.
É usual as marcas e as empresas oferecerem este tipo de produtos a instituições. Porém, estas não precisam de todos os tipos de produtos e o transporte acarreta custos que, por vezes, não são suportáveis para as empresas e para as instituições.
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Esta dupla modalidade de prescrição faz-me lembrar o que se passa no nosso ordenamento jurídico-constitucional em relação a algumas matérias. Dão-se alguns exemplos da relatividade de alguma estatuição constitucional:
Enquanto, em matéria de ensino básico, incumbe ao Estado “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito”, sem qualquer restrição (vd alínea a do n.º 2 do art.º 74.º da CRP), em relação aos demais graus incumbe-lhe “estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino” (vd alínea e do mesmo n.º 2 e art.º).
Já, em matéria de saúde, a CRP estabelece que “o direito à proteção da saúde é realizado: através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito” (vd alínea a do n.º 2 do art.º 64.º).
Ora tanto a estipulada progressividade da gratuitidade como a gratuitidade tendencial implicam a marcação de passo no mesmo lugar, quando não agravam os custos ou porque o Estado não tem dinheiro ou porque as condições económicas e sociais dos cidadãos vão melhorando. A verdade, porém, é outra: o Estado não tem capacidade para obviar às múltiplas fraudes, negociatas e aproveitamentos de certos detentores de cargos públicos e de algumas empresas que atuam nos campos da saúde e da educação. E o cidadão leva com as consequências. E, porque não controla a economia subterrânea e se fia no cumprimento das obrigações declarativas de todos, uns pagam sem poderem e outros beneficiam sem pagarem efetivamente o devido. Além disso, os preços aumentam e os salários diminuem ou sofrem de congelamento.
Zé paga, a gosto ou a contragosto, todos os desmandos e gestões ruinosas
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Estes advérbios de predicado empregam-se também para afirmar precisamente o contrário ou quase. Lembro-me de um bispo ter demorado a cerimónia da inauguração de uma igreja remodelada e o pároco, ao despedir-se do prelado, ter agradecido, dizendo que tudo correu bem e que “o Senhor Bispo até foi relativamente breve”.
Ainda hoje, dia 30, o porta-voz do Hospital da Cruz Vermelha, respondendo aos jornalistas, disse que, em relação ao dia de ontem, o Dr. Mário Soares estava relativamente melhor. Eu preferia que ele estivesse “melhor”. Assim, posso supor que está na mesma.
E eu penso que ninguém teria acusado de mentira o XIX Governo se ele nos tivesse dito que a saída da troika foi relativamente limpa.
É óbvio que outros recursos se utilizam para escamotear a verdade ou a obrigação. É a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em vez de aborto provocado; é a inverdade em vez de mentira, erro, engano, distração ou ignorância; é a má relação com a verdade em vez de mentira; é a hiperatividade em vez de má criação; é a disfuncionalidade cognitiva temporária em vez de não sei quê, talvez inadvertência; é o comportamento desviante em vez de mau comportamento; é o capital de relação em vez de cunha; é a retenção em vez de reprovação; é a conclusão em vez da aprovação… E faz-se concurso público para, às vezes, legitimar a entrada de amigos na empresa, na obra ou no cargo público.
E que dizer de suspeito em vez de criminoso, de indiciado em vez de acusado, de arguido em vez de réu? E porquê o uso e abuso de “alegado” e “alegadamente”?
Ademais tem de presumir-se a inocência do arguido até decisão condenatória transitada em julgado, quando com a fuga de informação e/ou a aquiescência dos poderes se fazem julgamentos na praça pública da comunicação social.
É a vida!

2016.12.30 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

No 520.º aniversário do édito de expulsão dos judeus de Portugal

Independentemente da provável diferença de critérios que separa o mundo pujante do século XVI do esclarecido do século XXI (que pretende ser o acúmulo da urbanidade e o apogeu do humanismo), é de questionar como o rei Venturoso se deixou manipular pelos reis católicos, D. Isabel e D. Fernando, auto-obrigando-se a produzir o édito de expulsão dos judeus do território nacional.
Não era certo que Portugal tinha chegado à Índia – já com o sistema dos vice-reis – e mostrado ao mundo que existia mundo a ocidente, a que a Espanha, apesar da proeza de Colombo, não acedera, e que estava desfeito o equívoco de que a Índia era algo a que não se chegara rumando a ocidente? Não tinham os portugueses chegado à Terra Nova e à Gronelândia, ao rio Hudson e ao Labrador? Não havia outra forma de negociar o casamento com Isabel?
Maria José Oliveira publica hoje, dia 29, um extenso artigo (de que se respigam alguns dados) sobre o tema no Observador on line, em que salienta que “faz 520 anos que D. Manuel I assinou o édito de expulsão dos judeus”, condição imposta por Espanha para que casasse com D. Isabel. Por isso, milhares de judeus tiveram de escolher entre a expulsão ou a conversão ao cristianismo.
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Um decreto dos reis católicos de Espanha rompera, em 31 de março de 1492, com a longa tradição de tolerância religiosa em Castela, Leão e Portugal. Os judeus de Castela e de Aragão foram então obrigados à conversão ao cristianismo, sob pena de serem expulsos de Espanha no prazo máximo de 4 meses.
Os sefarditas, judeus que habitavam a Península, eram olhados com visível desconfiança desde a Idade Média, não propriamente por motivos religiosos, mas por cooperarem com os reis “na cobrança das rendas e na organização da contabilidade pública”. E, apesar dos ataques ocasionais às judiarias, “mantinha-se a tolerância” no atinente à religião. Em julho de 1492, expirado o prazo estipulado em Espanha, milhares de judeus atravessaram a fronteira com a permissão de D. João II, que nomeou locais onde se poderiam instalar – Olivença, Arronches, Belmonte, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço – e, na raia, recebiam um salvo-conduto contra o pagamento de “uma espécie de portagem”. Os que exerciam uma profissão beneficiavam de um desconto, por serem tidos “como mão-de-obra útil à economia nacional”.
Maria José Oliveira sustenta que “a documentação coeva não permite definir, com rigor, o total de judeus desterrados” já que os números apontados pelos investigadores variam entre as 40 mil pessoas e as 120 mil. Por outro lado, assegura que, embora a maioria se dirigisse “para as grandes cidades”, como “Lisboa, Porto e Évora”, uma parcela considerável ter-se-á fixado “na raia, na zona de Ribacoa”, pelo que, segundo Adriano Vasco Rodrigues, se instalaram comunidades judaicas em Mirandela, Moncorvo, Pinhel, Vila Nova de Foz Coa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso, Guarda e Sabugal. Tal decisão parece justificar-se pela esperança “de que o decreto de expulsão fosse revogado”, possibilitando o regresso a Espanha.
Mas a autorização joanina emitida com o salvo-conduto extinguia-se ao fim de 8 meses. Poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitia embarcar para Tânger e Arzila. Porém, os que o fizeram regressaram por roubo e maus tratos da parte dos mouros.
E a postura do Príncipe Perfeito para com os judeus expulsos de Espanha tornou-se lastimável. Em 1493, ordenou a retirada dos filhos menores aos pais e o seu envio para São Tomé. “A maioria das crianças” foi ali comida pelos crocodilos, que eram em grande número, e muitas não resistiram ao clima hostil e à fome.
O médico alemão Jerónimo Münzer, que estava em Lisboa em dezembro de 1494, escreveu em sua “Viagem por Espanha e Portugal. 1494-1495”:
“Os Judeus de Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que arremataram ao Rei. São insolentes com os cristãos. Têm muito medo da proscrição, pois o Rei de Espanha ordenou ao Rei de Portugal que expulsasse os marranos e da mesma forma os Judeus, aliás teria guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao de Espanha, ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos [Marranos eram os judeus convertidos ao cristianismo que mantinham clandestinamente as práticas judaicas]. Eles fretaram a nau Rainha, belíssimo navio, e no meado de dezembro irão para Nápoles; aos Judeus, porém, deu o Rei o prazo de dois anos [Garcia de Resende diz na sua “Crónica de D. João II” que o prazo foi de 8 meses] para assim os expulsar do reino menos violentamente. Em vista disso, os Judeus vão-se retirando sem demora e procuram no estrangeiro lugares próprios para a sua residência”.
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Por óbito de D. João II em 1495, o trono foi tomado por D. Manuel, sobrinho e cunhado do soberano, que o designou como sucessor, dado que o herdeiro, o príncipe Afonso, morrera alguns anos antes. Nos primeiros anos do seu reinado, os judeus viveram em paz, tendo mesmo o novo monarca “escolhido o judeu Abraão Zacuto para seu médico particular (que também era matemático e astrónomo, pelo que fora consultado antes de o rei enviar a 1.ª expedição de Vasco da Gama à Índia). Como o seu predecessor imediato, D. Manuel desejava a união ibérica, sob a coroa portuguesa, naturalmente, pelo que propôs casamento a D. Isabel, viúva do primo Afonso e filha mais velha dos reis católicos. A proposta foi aceite pelos progenitores, mas sob a condição de o soberano português “expulsar os judeus do país”. Assim, em novembro de 1496, D. Manuel casou com D. Isabel e, logo no mês seguinte, por édito de 5 de dezembro, decretou a expulsão dos judeus (e dos mouros), “obrigados a sair do país até finais de outubro” seguinte. Não o fazendo, ser-lhes-ia aplicada a pena de morte e o confisco de “todos os seus bens”. Porém, a decisão não foi consensual no Conselho do Reino, que advertiu para “a fuga de capitais”. Assim, o rei permitiu a quem se convertesse ao cristianismo a permanência no país, agendando como prazo para os batismos, “a Páscoa de 1497”.
A conversão forçada ficou marcada por medidas trágicas. Na Páscoa de 1497, o rei ordenou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias vilas e cidades, vindo esta ordem a estender-se aos jovens de 20 anos. Daqui resultou que “muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e rios”. Mas o soberano ainda restringiu “o número de portos de embarque para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital”. Muitos, oriundos de várias zonas, foram encaminhados para o Palácio dos Estaus, “ali permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque”.
A ideia do aprisionamento era motivá-los para a conversão. Assim é que – diz Maria José – “enquanto aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real”, com a missão de “persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo”, sendo que muitos foram “levados para as igrejas da Baixa e batizados contra a sua vontade”, enquanto “outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços”. E os que, “não tendo sido batizados, ficaram no país, já como escravos do rei, apresentaram uma proposta a D. Manuel”: contra a aceitação da conversão, pediam a restituição dos filhos e “a garantia de que o rei não ordenaria qualquer inquérito sobre as suas práticas religiosas num período de 20 anos”. Tendo D. Manuel anuído, foi publicada, a 30 de maio de 1497, a proibição de inquirições sobre as crenças dos recém-convertidos ao cristianismo. E o decreto determinava que,
“Ao fim de 20 anos, se o cristão-novo fosse acusado de judaizar, teria direito a conhecer os seus acusadores para que pudesse defender-se; caso fosse comprovado o crime de heresia, seria condenado à perda de bens, posteriormente legados aos herdeiros cristãos; os físicos e os cirurgiões que não sabiam latim poderiam utilizar livros de medicina em hebraico; finalmente, os cristãos-novos não deveriam ser tratados de forma distinta, uma vez que estavam convertidos à Santa Fé”.
Daqui nasceu o criptojudaísmo, ou seja, a prática clandestina da religião judaica. Deste criptojudaísmo surgiram as famosas alheiras de Mirandela e de Moncorvo: em tripa de porco, para iludir os possíveis olharapos do Reino, eram introduzidas várias carnes, nomeadamente de aves, com condimentos de que os principais eram o alho, o azeite e o vinho ou o vinagre, para garantir a pureza ritual e alimentar do judaísmo.  
Todavia, as garantias do decreto não convenceram todos os judeus. Muitos preferiram sair do país, levando consigo os bens, e “os mais ricos negociaram letras de câmbio com os cristãos, para depois serem trocadas noutro país” – o que significava que “uma parte da riqueza do país estava a fugir. Por isso, em 1499, o rei fez publicar duas leis: uma “proibia o negócio com os judeus”; e a outra “impedia a saída do reino dos conversos de 1497 sem prévia autorização régia”. O não cumprimento destas normas “resultaria no confisco dos bens dos infratores.
Com estas medidas, D. Manuel I pretendia “estimular a integração dos conversos na sociedade”. E, para este efeito, entre 1497 e 1499, promulgou uma lei que proibia o casamento entre cristãos-novos, com o objetivo de “inserir a minoria nas famílias de cristãos-velhos” e de “fazer “partilhar o dinheiro e os bens dos ex-judeus”. Porém, tais medidas não resultaram por subsistir “o sentimento antijudaico na maioria cristã” e “porque os cristãos-novos, ainda que em número reduzido, estavam no pódio das grandes fortunas”, visto que, “após a conversão, ganharam mais poder, ascenderam à nobreza, às universidades, à administração real e municipal”.
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Maria José Oliveira, com base no relato de Damião de Góis, dá-nos conta do que se passou em Lisboa, com a minoria cristã nova, a 19 de abril de 1506, domingo de Pascoela.
A cidade Lisboa estava assombrada pela peste que a assolava desde outubro de 1505: “um período de seca matara os campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava conta da cidade”. Naquele dia, a igreja do convento de São Domingos estava repleta de cristãos-velhos, pois surgira o rumor de que, no dia 15, ocorrera ali um milagre. Os crentes aguardavam a sua repetição, que supostamente aconteceu. Aos olhos dos cristãos, brilhou uma luz no crucifixo da igreja e a multidão rejubilou, exceto uma pessoa, que alertou para o facto de se tratar dum reflexo duma das muitas candeias acesas. Era um cristão-novo, que para os cristãos-velhos era um judeu, alvo de ódio. Arrastaram-no para rua, mataram-no e queimaram-no no Rossio. Sabendo do que sucedera, o irmão acorreu ao local e, ao gritar contra os assassinos, foi morto e queimado numa fogueira. Na agitação, um frade dominicano bradou discurso contra os judeus, pondo a turba a vociferar contra a comunidade judaica. E Frei João Mocho e Frei Bernardo juntaram-se ao que estava a discursar, exibindo o crucifixo do “milagre” e gritando: “Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!”.
Aos gritos seguiu-se o massacre. A multidão dos crentes espalhou-se pelas ruas de Lisboa e juntou-se-lhe “a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas”. Mais: durante três dias, “arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha”.
Segundo Damião de Góis, o rei, ao ser informado do que sucedia em Lisboa quando estava em Avis, a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz, ficou “triste” e “enojado”, tendo dado de imediato “poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados”. Porém, “o problema era identificar os culpados”. Era uma cidade inteira – portugueses e estrangeiros – revoltada contra os judeus que matara quem não conseguiu escapar.
Como punição aos habitantes de Lisboa, o soberano retirou uma série de privilégios à cidade: os que provadamente participaram no morticínio perderam todos os bens; os que não estavam envolvidos, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos bens; e foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes na vereação municipal da cidade.
O acontecimento, denominado “Pogrom de abril de 1506” ou Matança da Páscoa de abril de 1506, continua a ser recordado em dois monumentos erguidos no Largo de São Domingos, onde se iniciou a tragédia, inaugurados em abril de 2008, por iniciativa da autarquia e das comunidades judaica e católica.
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Cenas destas, e até em escala amor, sucedem-se hoje contra judeus, cristãos e tantos outros – por motivos políticos, religiosos, económicos. Até quando?!

2016.12.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Se hoje “ele” estivesse aqui, “eles” matá-lo-iam de novo

O enunciado em epígrafe foi retirado duma entrevista com Gaspar Romero, o irmão mais novo (agora com 87 anos de idade) do Beato Oscar Romero, por Alver Metalli, publicada sob o título NAVIDAD CON LOS ROMERO em www.tierrasdeamerica.com, a 24 de dezembro de 2016 e transcrita, no essencial, no site da fraternitas, a 26 de dezembro.
Trata-se duma frase emblemática proferida pelo entrevistado na réplica à recordação que o condutor da entrevista lhe fez do que Gaspar dissera em tempos que, “se Romero estivesse vivo, diria as mesmas coisas que disse nos anos 1980...”. Neste sentido, afiançou que se Oscar vivesse naquele ambiente político e económico, os detentores do poder não hesitariam de novo em o matar. Na verdade, os fabricantes e os fautores da injustiça sobre os pobres, da miséria alastrante e da corrupção empedernida e sem escrúpulos não toleram as vozes que se levantem em prol dos explorados. Bem sabemos como é difícil a reforma da Igreja preconizada pelo Papa Francisco e seus colaboradores mais sinceros e devotados e quão grandes são as resistências que os instalados no carreirismo ou nas sumas e inquestionáveis verdades e certezas ditadas, não pela fé, mas por uma certa tradição caprichosa opõem à aura de frescura que o Pontífice quer insuflar nas velas da barca petrina. E constituem o acúmulo da hipocrisia e do disfarce as salvas de palmas que tantas personalidades e decisores políticos, financeiros e económicos disparam em aplauso a Sua Santidade quando denuncia os muitos e vários atropelos à dignidade das pessoas que o mundo “não quer” e “não deixa” que sejam “pessoas”. Só não o aniquilam porque os diversos serviços o guardam e sobretudo porque ficariam mal colocados.
A leitura da predita entrevista fez-me lembrar aquele episódio em que o pároco de Freixinho, em 1980, no sermão da procissão do enterro do Senhor, em Sexta-feira Santa, lançou a questão de forma retórica: “Se Jesus Cristo por aqui estivesse hoje de forma visível como naquele tempo, pregasse a mesma doutrina, fizesse os mesmos prodígios se afirmasse como o Filho de Deus e o Senhor de todos, os homens de hoje matá-lo-iam ou não?”.Ante esta arrazoado interrogativo, um grupo de crianças gritou em coro: “Não, Senhor Padre, não matávamos Cristo!”. E o pároco pregador concluiu: “Pois, claro! Não foram, nem são, nem serão as crianças de Freixinho a matar Jesus Cristo”.  Tal como então, hoje os pobres, os desalojados, os descartados, os doentes e os explorados – a menos que sejam maldosamente contaminados pelo ódio mandante e intoxicante de outros – sentem a proteção de quem se bate e entrega por eles, levantando corajosamente a sua voz incómoda e apontando o dedo ao desgoverno, à exploração e à comercialização da dignidade, sobretudo se se trata de profetas e apóstolos da não violência. Obviamente, os atingidos pela contundência pertinente da denúncia profética, mormente se esta vem eivada pelo compromisso pela mudança, não suportam a força da voz e da vez que se quer para os que não têm vez nem voz. O compromisso com a mudança estraga jogos de poder, põe a careca dos espertos à mostra, desnuda a ação de corruptores e de corruptos, grita o destino universal dos bens, exige de cada um o contributo conforme as suas possibilidades e a colmatação das necessidades de cada um.
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O irmão, como é natural, disse nunca ter pensado que Oscar, “com o qual cresceu”, viria a ser um santo. Declarou que viu nele um caráter diferente e recorda-se da previsão da mãe, a 15 de agosto de 1942, de que “ele chegaria muito alto”. Era o dia da Assunção de Nossa Senhora e do aniversário de Oscar, que “ainda se encontrava em Roma a completar a sua formação académica na Pontifícia Universidade Gregoriana”. Contudo, não quer dizer que tal antevisão se referisse ao “céu dos bem-aventurados ou dos santos”. E a declaração da santidade de Oscar Romero coroa o seu grave “pecado” de “defender os pobres, pedir justiça para que não se cometessem prepotências contra as pessoas pobres”. É algo que o Papa Francisco preconiza de forma insistente e coerente. Mas a oligarquia tinha necessidade de o eliminar e começou por o ultrajar utilizando os jornais do país, “que são os jornais dos ricos e dizem o que os ricos pensam”.
Mas a entrevista presta informação relevante sobre a causa da canonização de Oscar Romero. Segundo o padre Rafael Urrutia, postulador da causa, dá notícia de que “a documentação sobre um quarto milagre, pelo qual talvez seja reconhecido como santo, acaba de ser enviada a Roma para ser examinada pelos membros da Congregação do Vaticano encarregada do assunto”. E “os outros dois casos de supostas curas inexplicáveis, a de um equatoriano e a de um mexicano, ainda estão a ser estudados em El Salvador”.

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Oscar Romero nasceu, a 15 de agosto de 1917, em Ciudad Barrios, povoado onde se produzia café, no Departamento de San Miguel, a 156 quilómetros de San Salvador, filho de Santos Romero e de Guadalupe Galdámez, numa família de origens humildes.
Ingressou no seminário menor de San Miguel, em 1931, tendo ali ficado conhecido como ‘O menino da flauta’, pela sua habilidade em utilizar uma flauta de bambu que herdou de seu pai. Em 1937, ingressou no Seminário Maior San José de la Montaña, em San Salvador, e, passados 7 meses, foi para Roma estudar teologia, tendo dali presenciado as calamidades da  II Guerra Mundial. E foi ordenado sacerdote a 4 de abril de 1942.
Regressado a El Salvador em 1943, tornou-se pároco da cidade de Anamorós, sendo depois transferido para a cidade de San Miguel, onde serviu como pároco na Catedral de Nossa Senhora da Paz e secretário do Bispo diocesano monsenhor Miguel Ángel Machado.
Posteriormente, em 1968, foi nomeado secretário da Conferencia Episcopal de El Salvador. E, a 21 de abril de 1970, Paulo VI escolheu-o para Bispo Auxiliar de San Salvador, recebendo a ordenação episcopal a 21 de junho do mesmo ano, de mãos do núncio apostólico Girolamo Prigrione. A 15 de outubro de 1974, foi nomeado Bispo da diocese de Santiago Maria, no departamento de Usulután, encargo que manteve durante dois anos. E foi nomeado Arcebispo de San Salvador em 3 de fevereiro de 1977, graças ao seu aparente conservadorismo.
Entretanto, em março de 1977, ocorreu o assassinato dum seu amigo, o padre Rutilio Grande, jesuíta, junto com dois camponeses – um incidente que transformou Romero, levando-o a denunciar as injustiças sociais por meio da rádio católica Ysax e do semanário Orientación. Por isso, era conhecido como “A voz dos sem voz”. E, por ter aderido aos ideais da não violência, foi comparado a Mahatma Gandi e a Martin Luther King. Nas suas homilias dominicais, denunciava as numerosas violações dos direitos humanos em El Salvador e publicamente manifestou a sua solidariedade com as vítimas da violência política, no contexto da Guerra Civil de El Salvador. Na Igreja Católica, defendia a “opção preferencial pelos pobres”.
Chamavam-no de comunista e de guerrilheiro, pelo que “a oligarquia salvadorenha mandou a Roma três bispos, o de San Miguel, o de San Vicente e o de Santa Ana, para denunciá-lo e para pedir que o transferissem”. Monsenhor Romero “sabia disso e ficou muito desgostoso por três irmãos no episcopado terem ido denunciá-lo” – terrível: “alguns dos que ele havia ajudado”. 
O entrevistado de Alver Metalli lamenta: “Hoje também há difamadores na Igreja de El Salvador”. E, mesmo depois da sua morte por ódio à fé (João Paulo II contestava a quem duvidava do mérito de Romero: “Morreu no altar!), continuaram as intrigas, que o Papa Francisco denominou, depois da beatificação, de “martírio post mortem”, um martírio “que continuou depois do seu assassinato” por calúnias dos “seus irmãos no sacerdócio e no episcopado”. Coerentemente, o Francisco “tirou o processo de beatificação do pântano em que se encontrava”: “não avançava devido à oposição” que havia em El Salvador.
Agora abundam as “pessoas que mudaram de opinião sobre monsenhor Romero”, que foram “críticas e hostis”, mas “que agora pensam diferente”. Disseram “que lamentavam muito e que estavam arrependidas por terem repetido coisas falsas sobre monsenhor Romero”; e que “pedem perdão a Deus e a ele pelas ofensas que lhe fizeram”.
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Gaspar Romero, na entrevista, fornece mais duas informações preciosas: a importância que teve para o arcebispo a morte de Rutilio e as pressões de que o próprio Gaspar foi alvo.
Aquando da nomeação de Romero para Arcebispo, Rutilio, que era diretor do seminário San José de la Montaña, pediu-lhe a transferência para El Paisnal, onde nascera. Lá “doutrinava a gente, ensinava que não se deixassem ultrajar pelos patrões, que pedissem um tratamento justo e salário decente” – o que lhe provocou a morte: “a extrema direita mandou assassiná-lo”.
O monsenhor, ao saber do assassinato, foi lá. Vendo que o velavam no parque, “perguntou porque não o velavam na igreja e fez com que o levassem para dentro”. Ficando a noite inteira ao lado do cadáver, começou a “amizade com os Jesuítas, que se haviam afastado dele e o criticavam”. E começou “uma transformação nele” próprio. Pediu ao Presidente da República “que se investigasse o assassinato do padre Rutilio até identificar os culpados”. O Presidente prometeu mandar “investigar a fundo” e fornecer respostas “dentro de um mês”. Como passou o mês sem haver “responsáveis certos”, Romero “rompeu com o governo”.
As consequências repercutiram-se também em Gaspar Romero. “Tinha um cargo muito bom na Antel como dirigente”. E, de repente, transferiram-no “para a portaria, para trabalhar das 7 da noite às 7 da manhã”. Quando conseguiu ter uma explicação, ela veio nos termos seguintes: “É por causa do seu irmão”. Recebia “muitas ameaças anónimas” em sua casa, “desde malcriações e grosserias até outras mais finas, em que me diziam que queriam muito bem a meu irmão e que eu intercedesse”. Na sexta-feira anterior ao assassinato de monsenhor Romero (foi morto a uma segunda-feira) chegou-lhe carta anónima que dizia que, se o irmão “não desistisse das suas homilias, teria as horas contadas, que o sequestrariam” e que “deveria dizer isso a ele”. Ao que o irmão respondeu que deitasse fora a carta.
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Será pecado pedir aos governantes e aos seus militares que não matem civis indefesos, explorados, oprimidos ou com opinião? É legítimo chamar comunistas aos teólogos da libertação, sem mais, sem crivar que tipos de teologia de libertação propõem? É lícito dar a morte a quem prega: “A missão da Igreja é identificar-se com os pobres. Assim a Igreja encontra a sua salvação”?

2016.12.18 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Os comentadores omniscientes e bem pensantes

Já nos tínhamos habituado ao comentador Marcelo Rebelo de Sousa, que todos os domingos opinava sobre tudo e mais alguma coisa e cujo mérito consistia sobretudo em fornecer uma panorâmica do que tinha acontecido na semana em referência e uma perspetiva da semana que se avizinhava. Obviamente, o professor pronunciava-se com mérito muitas vezes, embora não raro o seu comentário se revestisse de desabafo em relação a semirrivalidades com alguns dos correligionários que subiram na cena pública. Além disso, mostrava um ou outro clichê como: o povinho não percebe; é preciso explicar bem aos portugueses; ponto final, parágrafo, etc.
A sua omnisciência começou a eclipsar-se quando passou a integrar no seu comentário respostas telegráficas a perguntas de expectadores e claudicou quando não se pôde furtar ao juízo sobre descalabro do BES/GES. E, algumas vezes, via-se bem que não conhecia os meandros da matéria sobre que se pronunciava. A título de exemplo, recordo que nem sempre se mostrava atualizado sobre o sistema educativo e funcionamento das escolas não superiores, bem como sobre o papel dos centros de saúde e sua articulação com o sistema hospitalar.
Em compensação por algumas falhas do passado, temo-lo agora no seu comentário diário sobre tudo o que é importante e sobre o que é menos importante, ora sendo profícuo pelo sentido de Estado e pela oportunidade, ora sendo entediante e descabido.
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Não falando de outros comentadores que já no tempo de Marcelo usavam o púlpito televisivo e alguns dos quais prevalecem no comentário político – obviamente menos omniscientes – é de destacar Marques Mendes, que tem a pretensão da omnisciência pública e se dá ao arrojo de noticiar factos antes de eles acontecerem (é uma espécie de porta-voz dos desígnios do Estado), ficando satisfeito quando as notícias da Comunicação Social lhe confirmam os vaticínios. Porém, mais do que Marcelo, Mendes é mais categórico nos juízos de valor que emite, nem sempre com a devida justeza, embora sempre segundo a sua ténue linha de pensamento.
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Também Paulo Rangel é pródigo em artigos de opinião em que ressalta o dado político. E a sua poderosa assertividade aproxima-se muito duma notória modalidade de omnisciência política. Lembro-me de que o ora eurodeputado, quando, na condição de deputado à Assembleia da República, falou em nome do seu partido numa sessão comemorativa da revolução abrilina, denunciou o que ele denominava de claustrofobia democrática.
Agora na sua catedrática maestria política sentenciou que “a emissão omnipresente de boletins invasivos sobre a saúde do Presidente Soares é deplorável”.
Com o seu artigo de opinião no Público, o eurodeputado do PSD critica o Hospital da Cruz Vermelha e os meios de comunicação social pelo excesso de informação prestada diariamente sobre o estado de saúde do ex-Presidente da República Mário Soares. E justifica:
“Há momentos em que a intimidade é um valor supremo. O que custa respeitá-la? Uma ou duas notas esporádicas cumpririam a função”.
Parecendo ter razão de princípio, o articulista crítico esquece que a unidade hospitalar em referência começou por fazer apenas dois comunicados diários, por acordo com a família, e que atualmente emite uma nota todas as manhãs, sendo o seu porta-voz altamente comedido, furtando-se a responder às insistentes perguntas de jornalistas. Sendo assim, o hospital salvaguarda, em certa medida, a privacidade do internado e a vontade da família.
Já é diferente o que se passa com as rádios e os canais televisivos que emitem notícias de hora a hora ou as edições de jornais on line: todos reptem até à exaustão as ditas notas sobre o estado clínico do ex-presidente.
Por outro lado, queiramos ou não, Mário Soares, pelo seu passado, pelos altos cargos que desempenhou e pela sua atuação mesmo em tempos mais recentes – concorde-se com ele ou discorde-se dele – não deixou de ser um homem público, interessando à comunidade nacional e internacional o seu estado de saúde. Que diriam do Hospital se este se fechasse em copas ou se a família se mostrasse hostil à opinião pública?
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Também Miguel Sousa Tavares, que escreve muito bem, se alça à omnisciência e ao juízo de valor ex catedra.
Assim, o comentador analisou, no habitual espaço de comentário no Jornal da Noite de segunda-feira (dia 26) na SIC, a popularidade do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. No geral, concordo com a sua apreciação sobre o desempenho do PR. Na verdade, o esforço do Presidente em prol da sua popularidade pode ser contraproducente na medida em que algum dia terá de tomar alguma decisão impopular, o que lhe pode afetar a credibilidade, ou seja, poderemos ter necessidade de o ouvir quando já estivermos saturados com o seu discurso. Lá diziam os latinos: “Assueta vilescunt” – na rotina diária até as coisa mais extraordinárias se tornam vulgares.
Já o juízo de valor, em concreto, de que “o comunicado da Presidência sobre a morte de George Michael foi completamente despropositado” é de mérito duvidoso. Penso que o Presidente não deve ser notado por este ou aquele comunicado em relação a determinadas figuras, mas por o fazer indistintamente de quem quer que sejam tais figuras ou do seu impacto na vida do país ou do mundo. De facto, parece que o Chefe de Estado tinha que dizer alguma coisa, dando mostra de andar aos papéis, como se pode ver pelo texto:
“Manifesto o meu pesar pela morte de George Michael, um artista e compositor versátil e talentoso, com uma longa carreira de inequívoca qualidade.
Tal como David Bowie e Prince, para mencionar apenas alguns que este ano nos deixaram, partiu demasiado cedo e de forma inesperada. É difícil não pensar no que George Michael nos podia ainda ter dado, mas pelo menos teremos sempre o que a vida dele nos deixou.”.
O primeiro parágrafo pode dizer-se praticamente de qualquer autor ou executor; o segundo configura o que se pode dizer de qualquer pessoa, mesmo que se fine com mais de 100 anos.
É pena se Marcelo produziu tal lamento apenas para agradar à onda jovem.
Apontam alguns cibernautas que do acidente com o avião russo não terá falado. E eu no site da Presidência também não vi tal referência na secção das mensagens, embora tenha visto a mensagem de condolências pelo assassinato do embaixador russo na Turquia. Mas do acidente aéreo nada vi. A ser verdade, esta falha é esquisita.
É verdade que a presidência marcelista é um produto do populismo. Talvez não tivesse sido eleito, se não fosse a magna exposição na TVI nos anos anteriores às eleições. Todas as suas atuações públicas são a continuidade do seu estilo jovial e galante. Como a massa popular não tem de estar interessada na profundidade das análises sobre o presente e o futuro, tem o presidente consentâneo para esta sociedade. Porém, querer agradar a gregos e troianos alguma vez dará torto.
Mas Tavares é contundente na apreciação que faz da Mensagem de Natal do Primeiro-Ministro.
Por um lado, diz que não tem substância, por outro, julga que não faz sentido um Primeiro-Ministro de um Estado laico emitir uma mensagem de Natal tornado cardeal patriarca civil.
Tenho de contestar Sousa Tavares já pela falta de substância. Uma Mensagem de Natal é um ato de simpatia para com a comunidade nacional, para com os portugueses da diáspora e para com os estrangeiros que optaram por Portugal, vivendo cá ou passando por aqui. Não é propriamente um programa de Governo. E tem algo de circunstancial, embora sem negar a época.
No entanto, não se pode dizer que não haja substância em segmentos discursivos como quando se acusa o défice de conhecimento e se mostra o que se tem feito e se propõe fazer para o ultrapassar, assegurando a necessidade de investimento; se insiste na educação e qualificação dos portugueses, com especial incidência nas crianças; se pretende incrementar a economia com melhores empresas e melhores empregos, elegendo “a pobreza e a precariedade laboral” com “as maiores inimigas de uma melhor economia; e se diz que “somos a favor de uma sociedade civil forte”, que “não queremos que ninguém fique para trás”, referindo-se à educação e à saúde, e que “não alinhamos na ocultação, opacidade e encenação”.
Porém, Sousa Tavares confunde o laicismo com o alheamento da sociedade. O Estado é secular, laico, aconfessional, mas a sociedade é o que é. E, por mais que custe aos líderes religiosos que o espírito do Natal se afaste do núcleo que o originou, o Natal mexe com toda a nossa sociedade por motivos vários. E é assim que tradicionalmente o Primeiro-Ministro se dirige a todos os portugueses por ocasião do Natal. E este fez bem em relevar as crianças como seus protagonistas e as famílias que as geram, criam e educam, e em relevar o serviço prestado por tantos para que todos vivessem Natal, bem como o abraço aos portugueses da diáspora.
Finalmente, não posso deixar de esclarecer que, por mais respeito que o cardeal patriarca mereça como alta e eminente voz de Igreja, a sua palavra dirige-se à Igreja que está presente na diocese de Lisboa, não vinculando as demais dioceses. De resto, para as outras dioceses, os respetivos bispos elaboram a suas mensagens, as suas cartas pastorais ou selecionam os gestos e orientações que o seu prudente juízo lhes dita. Obviamente que isto não colide com a precedência protocolar (só isso) em relação aos outros bispos.
Mas o Primeiro-Ministro é a terceira figura do Estado e tem responsabilidades por todo o país.
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Enfim, não tenho inveja dos omniscientes, mas queria que a sua pretensa “omnisciência” fosse sempre sabedoria no que esta mostra de saber, sabor, justeza, equilíbrio e benevolência.

2016.12.27 – Louro de Carvalho