quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A guerra cultural ou a subversão civilizacional em curso?

Cavaco Silva terminou a sua aula na Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide, a aconselhar aos jovens a leitura dum artigo da jornalista Maria João Avillez no jornal online “Observador”, intitulado “O meu mundo não é deste reino”.
Não sou um jovem da JSD nem me revejo no discurso do professor. No entanto, por curiosidade fui no seguimento de tal referência sitográfica e li o artigo.
Começo por dizer que a jornalista faz a inversão da frase sentenciosa de Jesus ante Pilatos “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36) para “O meu mundo não é deste reino”, tal como Sophia de Mello Breyner Andresen o faz, no poema “As pessoas sensíveis”, da prece de Cristo na cruz, “Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34), para “Perdoai-lhes, Senhor / Porque eles sabem o que fazem”.
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Maria João Avillez, no dia 28 de agosto, partiu do princípio de que estamos numa “guerra cultural” hipoteticamente marcada por uma fratura grande.
Dum lado, está a atenção, a vigilância, a mobilização “pelo pensamento único” como “uma nova forma de vida”; do outro lado, “não há voz nem vontade” a ponto de se questionar se “o comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de convocatória”.
E acusa os novos proprietários do poder de nunca se cansarem na sua ferocidade vigilante, na implacabilidade persecutória ou na sonoridade da censura. Aponta, por consequência, a inflexibilidade da “nova cartilha” dos “seus mandamentos” que não inclui “desvios” e, em regime de “subversão civilizacional em curso”, veta “a nobre arte de debater, a esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o valor da discordância”.
Do lado contrário ao dos novos proprietários, estamos alegadamente nós, os que eles querem “fora de pé, ao largo de nós próprios, cortados pela raiz do que somos e representamos” ou transformados “noutros, atraiçoando o nosso ‘nós’ individual e anestesiando o ‘nós’ coletivo”.
O castigo feroz, sem contemplação, conhece apenas “o limite da sua própria obscenidade”, pois, a análise psicológica a que a jornalista procede determina que “a intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público, abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão”. E, na sua ótica, apenas se vislumbra uma solução: a obtenção de “licença prévia para pensar e depois dizer alto o que se pensou”. Com efeito – indigna-se –, “qualquer forma mentis’ que não encaixe no novo código de conduta está automaticamente banida do seu direito de cidade, privada do oxigénio da liberdade e da vitamínica possibilidade da interrogação e debate”. E classifica a situação com outro rótulo: “Há uma guerra cultural em curso”.
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Tenho de estar de acordo com a descrição psicossocial feita dos donos da verdade, mas não creio que se trate de subversão civilizacional nem que tal descrição quadre exclusivamente à esquerda ou à extrema-esquerda. Qualquer censor político, a não ser que seja estúpido, manipula com mestria e habilidade os instrumentos de que dispõe. É efetivamente uma guerra cultural putativamente presente em todas as civilizações em que os decisores sintam que a manutenção do poder está em risco. Passeie-se a jornalista por essas autarquias fora e diga se não encontra multiformes casos de escola de pensamento único, mecanismos de dependência quase institucionalizados. Olhe, ao mesmo tempo, se puder, para o espectro da comunicação social e veja se encontra raras exceções de independência face ao espartilho da inevitabilidade, ao amordaçamento do poder económico ou ao capricho da ferocidade do poder financeiro.
Também eu lamento os casos de espartilho criados pela CIG (comissão para a cidadania e identidade de género) ou pela ARL (associação república e laicidade), mas também me entedia a limitação do debate político ou os comentadores monocórdicos ao serviço da perspetiva económica reinante – e também eu digo, talvez por outras razões, que não admito que o meu mundo seja desse reino – ou dos programas, notícias, edições novelísticas em que tudo é preparado para engrossamento de audiência, venda de papel ou subversão do debate das grandes questões científicas, éticas e políticas no que elas têm de fraturante e/ou de legitimação de práticas não consentâneas com as leis ou com os costumes. Porém, nem uma letra se vê ou um ai se ouve da parte dos ditos jornalistas sensatos ou formadores de opinião isentos!  
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Apesar de tudo, ainda se pode respirar na sociedade a aura da pluralidade de pensamento, de opinião e de ciência, embora tema que as academias e as ordens profissionais, que deviam ser os baluartes, respetivamente, da ciência independente e da autonomia profissional, enveredem com facilidade pela bitola do politicamente correto. E, se a eminente colunista do Observador viu a leitura do seu texto recomendada por Cavaco Silva, é porque este se reviu no seu teor, que afinal em muito se assemelha às tiradas premonitórias e/ou pressagiantes do exercício presidencial do cidadão de Boliqueime e mesmo ao texto pré-presidencial da má moeda a eliminar a boa moeda, bem como ao discurso do apelo ao sobressalto democrático lançado a 9 de março de 2011 (dia da segunda tomada de posse do Presidente Cavaco).
Ora, é caso para a pertinente interrogação: Se “os novos proprietários das mentes e costumes não valem grande coisa eleitoralmente, nunca governarão sozinhos, o seu número no país é inversamente proporcional ao eco mediático que os propaga”, porquê tão grande verborreia?
E a jornalista tem a resposta. Não sei se a profere no mesmo sentido em que eu a leio:
“Para quem não estiver distraído nada disso tem, porém, grande importância”. Efetivamente, “eles valem pelo que os deixamos conseguir valer”.
Pois bem. Se a resposta induz o combate primário e exclusivo a um determinado setor por ser de esquerda ou de direita, recuso-a; se ela vale como combate a todas as formas de amordaçamento do pensamento, da opinião, da ação e da ciência – venham elas donde vierem – aceito e sigo. Foi censório e promotor do pensamento único o Estado Novo (com a censura ou com o exame prévio e com o livro único na escola), foi-o a Junta de Salvação Nacional (com as comissões ad hoc junto de órgãos da comunicação social), foi-o o PREC (com o COPCON, a 5.ª Divisão do EMGFA, o controlo da comunicação social através dos diretores, o fecho do “República”…). E foi-o a democracia estabelecida. Quem não se lembra do desdém de Cavaco pelos jornais, que não lia, ou do cerco proposto por Pacheco aos jornalistas no Parlamento ou da afirmação de Mário Soares, que veio mais tarde a confessar publicamente a tentação de controlo da comunicação social? Quem não topou que uma forma de limitação do pensamento e da expressão é a concentração da Comunicação Social nas mãos de poucos, mas poderosos, grupos económicos? Aliás, como era a liberdade da 1.ª República? Que liberdade denota a liberalíssima portaria que determinou o encerramento das Conferências do Casino (Também seria de extrema-esquerda?)? E em que reinado de esquerda foi criada a Real Mesa Censória?
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Os doutrinadores do pensamento único valem “pelo êxito aparente com que esfarelam as fundações do berço civilizacional de onde somos”? Não, de todo. A civilização conquistada só se perde se quisermos. Valem pelo modo como calcinam o nosso mundo? Talvez, mas importa que nos assumamos como deste mundo e deste reino. Valem por exibirem o fôlego e a mestria da “demencial empreitada” de formatação das nossas mentes, anestesia das reações, domesticação do instinto, inculcação do receio de destoar, do risco de expulsão do coro uníssono? Sim, é um risco, uma tentação. Mas há um antídoto poderoso: a formação das consciências, a formação política, a determinação em intervir propondo e divulgando os nossos pensamentos e criando as nossas estruturas associativas de reflexão, debate e ação; e não nos refugiando na função de produtivas carpideiras ou na circunscrição da nossa intervenção ao nível da eufemística expressão da cidadania descafeinada.
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Diz Avillez que nos separamos do movimento democrático europeu numa linha de fratura que agrava a vulnerabilidade da nossa condição face à catástrofe. Lamenta que não haja quem reclame o espaço de metade do país que se encontra à direita do PS ou que poucos dele cuidem, “a não ser partidos exaustos e envelhecidos e meia dúzia de respeitáveis (e resistentes) políticos ou intelectuais”. Entre as exceções, que se manifestam “quase em surdina e desastradamente”, destaca a CIP. E, “quanto à Universidade”, diz ela que “faz pagar caro a professores e mestres fora do reduto da esquerda e agora fora do jardim envenenado do pensamento único ou da tirania do politicamente correto”. Não sei se assim é, tendo em conta o que afirmou acaloradamente Costa Andrade, ainda não há muito tempo a um dos programas “Prós e Contras” da RTP1. Mas a Universidade, a meu ver, tem claudicado não tanto face aos políticos (e quais os governos que introduziram mais cortes à Universidade?) como face aos interesses económicos,
Refere que, desde 1974, os media suportam mal a ‘ideia’ de direita ou mesmo de centro-direita, troçando ou destruindo os seus líderes e ajudando a acabar com eles (Destruíram Portas, Adriano Moreira, Marcelo, Cavaco, Rio…?), mesmo que o voto os legitime”; e que, ao invés de outros países, “em Portugal nunca se impôs, com substância e caráter definitivo, um jornal ou algo de parecido com um órgão de comunicação social de centro-direita, conservador ou menos conservador”. Ora, se assim se lamenta, porque não o fez quando se deu o encerramento do jornal “Tempo” ou do jornal “O independente”? Porque não lê o semanário “O Diabo”, que sai à terça-feira? Quererá convencer-nos de que a SIC, a TVI, a própria RTP ou a CMTV são órgãos de esquerda? Aliás, qual é o jornal que, com a exceção de alguns artigos, não está alinhado com os interesses económicos dominantes (e nisto não há esquerda e direita)? E porque é que os grupos económicos deixaram finar o “Tempo” e “O independente”? Deixaram de interessar!
Sim, há uma coisa que Avillez com verdade confrangedora, embora a formule na forma interrogativa: as elites são tão frágeis, a dependência do Estado é avassaladora. E, há sobretudo, grupos dominantes que pretendes que o Estado tenha pouco espaço, mas que pretendem viver à custa do Estado ou que este lhes valha quando der jeito. Já Camões diz que o dinheiro, às vezes, deprava as ciências, cega os juízos e as consciências, interpreta subtilmente os textos, faz e desfaz leis e corrompe os que se dedicam a Deus (cf Os Lusíadas, VIII, 98-99).
Ora, assim não vamos lá. O caminho é outro, o da formação, da assunção das responsabilidades políticas e éticas e da intervenção pública em prol do pluralismo e do bem comum.

2017.08.31 – Louro de Carvalho

“A palavra presidencial deve ser rara”

Cavaco Silva levou muito tempo a aceitar o convite da JSD para intervir na Universidade de Verão do partido, em Castelo de Vide, mas ouvi-lo deu para inferir que o silêncio a que formalmente se remeteu no período pós-presidencial só estava a encobrir a vontade de intervir.
Informal, o ex-Presidente da República arrasou a maioria parlamentar que viabiliza a governação do PS, solução que anatematizou, mas que entendeu não ter por onde fugir dela. E agora aproveitou o ensejo para colar António Costa a François Hollande e a Alexis Tsipras – que, segundo o professor, “acabam por perder o pio ou fingem apenas que piam” ou, por outras palavras, “podem começar com devaneios, mas acabam por conformar-se”. E, como era seu timbre presidencial, fez um aviso: “Com tantos impostos Portugal não vai crescer”.
Porém, defendeu o Presidente francês Emmanuel Macron, contra Marcelo, sentenciando: “A palavra presidencial deve ser rara”. Dita por Cavaco, a frase parece esquisita!
Obviamente, sempre sustentei o teor desse enunciado de Cavaco, mas não esqueço que o antigo Primeiro-Ministro (durante 10 anos) e ex-Presidente da República (também por 10 anos) não seguiu esse ditame no exercício presidencial. Pelo contrário, opinou publicamente vezes a mais, dirigiu-se aos portugueses frequentemente via facebook, caiu em banalidades verbais e agora revela-se hipercrítico do sucessor.
Ainda cheguei a pensar – quando vi o excessivo protagonismo de Marcelo, de comentário em comentário, de intervenção a propósito de tudo e de todos, com justificações sobre justificações, condicionamentos prévios do teor e do timing dos normativos e a usar as estrelas de professor de direito público, mormente no âmbito do direito constitucional – disse que ainda iríamos ter saudades do exercício presidencial de Cavaco Silva.
Porém, vindas a lume as memórias presidenciais e, após esta magistral lição “universitária”, em que Passos Coelho fez questão de comparecer para o ouvir e o ex-PR apelou claramente ao voto no PSD, desisto de tal vã esperança. Com efeito, os tempos mudaram e Marcelo (embora de forma excessiva, mas sem deixar de ser quem era) mostra saber estar com as pessoas quando elas mais precisam e puxar pela governação tendo em conta o interesse do país, embora se admita que, lá no seu íntimo, a solução que lhe agradaria não tenha sido aquela com que tem de lidar, ao menos por enquanto. Por outro lado, se “a palavra presidencial deve ser rara”, também tem de ser convincente a ponto de persuadir e dissuadir, conforme os casos e, sobretudo, deve inspirar confiança para fazer reganhar a esperança em tempo de crise – longe dos avisos só para ficar de consciência tranquila e abstendo-se do enegrecimento da realidade ou do apelo ao sobressalto.
Além disso, fica mal a um ex-Presidente no conforto do pós-exercício presidencial proceder a putativos ajustes de contas com ex-colaboradores e pares na condução dos negócios do Estado ou imprudentemente lançar juízos de valor sobre o exercício do sucessor imediato ou sobre o dum Governo que nomeou e empossou a contragosto, esquecido do esforço de cooperação que o mesmo Governo evidenciou com o antigo Presidente, tendo-o convidado para presidir a um Conselho de Ministros onde foi abordado um tema considerado extremamente caro para o então Presidente da República – “o mar”.        
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O tema era “Os jovens e a política: quando a realidade tira o tapete à ideologia”. E o ex-PR aproveitou para tirar o tapete ao Governo semiesquerdo. A este respeito, não deixou dúvidas:
“De facto, caros jovens, na zona euro a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia e os Governos podem começar com alguns devaneios revolucionários, mas acabam sempre por se conformar com as regras da disciplina orçamental”.
No alinhamento ideológico com Passos Coelho, o ex-líder do PSD só não anteviu a vinda do Diabo, mas corroborou o essencial do que Passos tem contraposto à governação de Costa: não é “com cativações e consequente degradação dos serviços públicos, cortes no investimento, medidas extraordinárias e engenharia orçamental criativa” que se põe o país a crescer.
O insigne economista mostrou-se, por outro lado, preocupado com o rumo da carga fiscal, afirmando que “o nosso sistema fiscal perdeu lógica e é fruto do improviso”. E advertiu que “a realidade da concorrência fiscal também tende a impor-se às preferências ideológicas, os investidores tendem a evitar países com carga fiscal muito elevadas”, pelo que Portugal se arrisca “a ser remetido para a cauda da UE” no atinente ao crescimento.
É pena, do meu ponto de vista, que a ideologia, enquanto sistema coerente de ideias-força (a adotar e alimentar pelos partidos e a escolher pelos eleitores), se vergue a uma realidade, tantas vezes artificiosa e construída ao serviço de poderosos interesses, nem sempre confessados, e a que se apõe a perniciosa chancela da inevitabilidade ou a marca insultuosa de que “vivem acima das suas possibilidades”. É caso para questionar o aforismo da modernidade que diz caber aos filósofos a compreensão do mundo e aos políticos a sua transformação. Mas, se a filosofia hoje é colocada na prateleira e a política é abominada por feia, corrupta e corrosiva, é óbvio que o poder financeiro comandado pelo capitalismo selvagem e sem rosto ocupa o espaço que a política devia ter enquanto expressão do cidadão e dos grupos de cidadãos e como esforço coletivo da promoção do bem-estar público e da procura do bem comum.
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Ora, Cavaco Silva não foi avaro nas indiretas à conjunção das esquerdas, quer pela forma como mantém Portugal “5 pontos acima da carga fiscal média dos países do sul e do leste da UE”, impedindo que o país “seja competitivo”, quer pela dimensão que defendem para o Estado. Assim, disse que “a nossa despesa pública está 4 pontos percentuais acima da de Espanha e existe um limite a partir do qual a relação custo/eficácia fica em causa”. Por outro lado, acusa a forma como tentaram condicionar a escolha dos novos membros do Conselho de Finanças Públicas, aduzindo que a qualidade da democracia “depende muito da independência destes órgãos” e a defesa feita por alguns parceiros de Costa da nossa saída do euro, insinuando que, “se lhes perguntarem para que galáxia seríamos remetidos”, talvez a resposta aponte para “a galáxia onde se encontra agora a Venezuela”.
Cáustico com os responsáveis políticos que tentaram, em vão, pôr em causa as regras do euro, Cavaco acusou Alexis Tsipras de ter acabado “por mandar a ideologia para o lixo” e aceitar um 3.º resgate com medidas mais duras do que as rejeitadas pelos gregos em referendo. Apelando ao voto no PSD, o ex-PR diz crer que “os portugueses ainda preferem a verdade, a honestidade, o trabalho sério, a dedicação e a competência”. E, sem nunca referir diretamente o atual Presidente da República, o seu antecessor recorreu à análise do estilo de Macron para deixar perceber o que pensa de Marcelo.
Criticando “a verborreia frenética dos políticos” que “não dizem nada de relevante”, sustentou, como se disse, que “a palavra presidencial deve ser rara” considerando que “não passa pela cabeça de ninguém que ele (Macron) telefone a um jornalista para lhe passar uma informação”.
Contra “a promiscuidade com jornalistas”, Cavaco não desdisse da sua histórica aversão a comentadores (a quem chamava “profetas da desgraça”; agora disse que “os que valem a pena não enchem os dedos de uma mão”) e mesmo a alguns jornalistas. E sublinhou:
“As informações políticas falsas não são só na América de Trump. Também há notícias falsas, efémeras, absurdas, e estúpidas, em Portugal.”.
Sobre a classe política, mantém a cartilha: “É muito importante que se esteja na política sem que dela se dependa para ganhar a vida”. Por isso, aconselha os jovens da Jota a não desistirem de estudar, considerando “um erro um jovem abrandar os estudos a troco de um lugar político”. Nisto, vem tentar contrariar uma tentação de décadas. De si, não falou, apenas exprimindo a amarga ideia de que “ninguém deve esperar da política gratidão ou reconhecimento”.

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Como era de esperar, algumas vozes do PS reagiram. Em curto post no Facebook, Porfírio Silva, deputado por Aveiro, não poupa na crítica às declarações do antigo Presidente, dizendo que as “reacionarices” proferidas não têm nada de novo, “são o habitual num político que passou décadas na política sempre a fazer de conta que não era político” e bendizendo “esta democracia em que as pessoas podem dizer aquelas coisas sem serem perseguidas”.
Também Susana Amador, dirigente do PS, acusou o ex-PR, de falta de sentido de Estado e de ter proferido afirmações graves, que não correspondem à realidade, e lamentou que, enquanto estava em Belém, não tenha “piado mais” na defesa dos portugueses.
Para o PS, a ‘aula’ de Cavaco demonstra “desconforto com a política de devolver rendimentos e repor às pessoas mais qualidade de vida, bem-estar e coesão social” do atual executivo. Com efeito, o professor, ao longo das políticas do Governo PSD/CDS, que foram de retirada de direitos, de compressão das garantias, fez a gestão de silêncios, contra o que valeu a intervenção do Tribunal Constitucional na defesa da Lei Fundamental e dos direitos dos portugueses. Por outro lado, Susana Amador defendeu que, na mesma intervenção do ex-PR, “falar de censura, quando ela tem uma grande carga histórica tão negativa para tantos portugueses, e no contexto atual, que é um contexto de democracia, de liberdades e de defesa da Constituição”, é “posição que surpreende pela falta de sentido, pela gravidade”.
Cavaco afirmou que “é corrente apresentarem-se três casos” de países onde a realidade tirou o tapete à ideologia (apontando França e Grécia, mas sem referir explicitamente Portugal). Aliando esta questão com o ataque a comentadores e a alguns jornalistas, bem como a políticos que tentem seguir uma linha diferente da zona Euro, Susana Amador questionou:
“Não terá sido uma forma de censura o empobrecimento a que foram votados os portugueses, mais de 30% de crianças em pobreza infantil? Não foi uma forma de censura retirar direitos, liberdades e garantias? Não foi uma forma de censura acabar com o ensino de adultos?”.
E sustentou que “o empobrecimento, como dizem muitos estudiosos, é uma forma de censura”.
Mas Susana Amador chegou a afirmar que Cavaco “regressou à vida político-partidária com a mesma posição crítica de sempre em relação aos políticos, como se não tivesse sido um dos políticos com mais tempo de funções no período da democracia, e aos jornalistas”. E disse:
“Julgo que não é a forma melhor e mais adequada de falar aos jovens porque precisamos de uma comunicação social livre e isenta e de jornalistas atentos para aprofundarmos a qualidade da nossa democracia. […].Nós não estamos na vida política para a nossa realização individual ou vaidade pessoal, estamos na vida política para a realização das pessoas.”.
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Quem usa da palavra em contexto político e formativo tem de ponderar mais e melhor. E Cavaco podia, neste caso, ter sido um bom professor!

2017.08.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Maria na antiga Tradição – heresias, doutrinadores e dogmas

O Evangelho de Marcos (8,11-13; cf Mt 16,1-4; Lc 12,54-57) destaca o segmento “Porque busca esta gente um sinal do céu? Eu vos asseguro que não lhe será dado nenhum sinal”.  
Está Jesus, no exercício da sua missão pública, a pregar ao povo. Os fariseus e os doutores da Lei observam-no e questionam-no com o pedido de um sinal. Porém, Jesus não é um mágico, que faz o que o pedem exigindo, mas é o Messias e, como tal, pretende mostrar o dinamismo e as virtudes do Reino de Deus. Segundo Mateus, dará o sinal de Jonas. No entanto, já muitos sinais tinham sido dados, que eles não perceberam ou não quiseram perceber, tal como hoje, não nos dando nós conta dos sinais que Deus nos fornece, ficamos “à espera de sinais”.
Ora, a “Tradição” é mais que um sinal, uma coluna de sinais, pois é um dos pilares da Igreja Católica, a par da “Escritura” e do “Magistério” – três pilares, que se entrelaçam, dando solidez ao discurso e à práxis da fé. Podemos dizer, que a “Tradição”, enquanto realiza a transmissão oral, escrita e reoralizada da doutrina revelada por Deus através dos tempos é um tesouro inestimável. Com efeito, alguns estudiosos, iluminados por Deus, com inteligência intuitiva e reflexiva, foram tecendo ou costurando a doutrina e, no combate às heresias, levaram-nos aos dogmas da fé, sendo que, no atinente a Maria, se formularam quatro dogmas marianos. Desta forma, a Tradição confirma a fé da Igreja ou, melhor, a Tradição é a fé da Igreja. Homens estudiosos, alguns dos quais sofreram o martírio na defesa da ortodoxia da fé, legaram-nos um património espiritual portentoso. Hoje, colhemos os frutos dessa azáfama ardorosa. Assim, na Carta Encíclica Redemptoris Mater, n.º 31, São João Paulo II, diz:
Os Padres gregos e a tradição bizantina, contemplando a Virgem Santíssima à luz do Verbo feito homem, procuram penetrar a profundidade daquele vínculo que une Maria, enquanto Mãe de Deus, a Cristo e à Igreja: ela é uma presença permanente em toda a amplidão do mistério salvífico”.
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Atentemos no destaque dado aos “padres gregos” e de “Bizâncio” que olham para Maria à Luz de Cristo e atestam a unidade de Maria, Cristo e Igreja. Na verdade, o que une é o Espírito de Deus, promovendo o amor entre as partes, o respeito, a obediência. É o Reino de Deus in fieri, a acontecer. Contudo, a Mariologia (o saber sobre Maria) não é tema central da teologia dos Padres da Igreja, mas vem sempre indexada à Cristologia (o saber sobre Cristo) e à Soteriologia (o saber sobre a salvação da humanidade em Cristo). E é neste contexto que a Mariologia enfrenta problemas, logo com as primeiras heresias, que são cristológicas, mas tocam indiretamente a Mariologia. Podem mencionar-se as principais heresias que mais diretamente afetam maternidade de Maria:
- Os  docetas (do grego δοκέω [dokeō], “parecer”). Crendo que o corpo de  Cristo era ilusório e que a sua crucifixão teria sido apenas aparente, entendiam a afirmação da Maternidade de Maria como ficção. Os docetas não existiam como seita ou religião específica, mas como corrente de pensamento doutrinal que atravessou diversos estratos da Igreja, mas que foi refutada com base no Evangelho de João, que afirma no capítulo I: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14).
- Os  ebionitas (do hebraico אביונים, Evyonim, “pobres”). Negando a divindade de Jesus, aceitavam o Antigo Testamento, mas rejeitavam o Novo e substituíam-no por outro, o chamado Evangelho dos ebionitas; aceitavam Jesus como o Cristo, mas não como o filho de Deus, no sentido trinitário; e não aceitavam a Anunciação do anjo a Maria.
- Os gnósticos/valentinianos, grego Γνωστικισμóς gnostikismós, de Γνωσις – gnosis: conhecimento. Assim, “gnosticos” é o que tem o conhecimento. Valentim ou Valentino (latim: Valentinus; c. 100 – c. 160) foi por algum tempo o teólogo gnóstico do período do cristianismo primitivo de maior sucesso. Candidato ao episcopado, iniciou o grupo quando outro candidato foi eleito. Dizia ele:
“O corpo de Jesus é espiritual e celeste, formado pelo demiurgo no seio da virgem, o qual passou por Maria como água por um cano”.
- Os marcionitas (de Marcião, †160). Marcião foi um dos mais proeminentes heresiarcas durante o cristianismo primitivo. O marcionismo, que propunha dois deuses distintos, um no Antigo Testamento e outro no Novo Testamento, foi denunciado pelos Padres da Igreja e Marcião foi excomungado. Afirma que Jesus não tem origem humana, não nasceu da Virgem Maria e apareceu no mundo durante o reinado de Tibério César. Todas estas heresias se prolongam ainda por dois séculos, após o que são refutadas.
- Surge ainda um herege famoso, Celso, filósofo grego do século II, lembrado como opositor do Cristianismo. A sua obra “A Verdadeira Palavra” foi contestada por Orígenes, numa polémica famosa, na sua obra “Contra Celsum”. Para Celso, Cristo teria nascido duma união adúltera, pois Maria, apesar de casada com José, uniu-se a um soldado romano chamado Panthera. Jesus era chamado Ben-Panthera, ‘filho de Panthera’.
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Porém, graças à fé ortodoxa e ao labor de grandes homens, a Tradição foi-se formando e, nela, se alimenta o Magistério da Igreja, que atualiza e proclama a fé da Igreja, ancorada na Sagrada Escritura. Todos os documentos da Igreja citam estes homens. Não há o que inventar, mas o voltar às fontes ou fazer a refontalização, a exemplo do Concílio Vaticano II, dos documentos pós-conciliares e, sobretudo, os do Papa Francisco. Nesta árdua defesa da Fé, são de salientar:
Santo Inácio de Antioquia (Síria – †107), um dos Padres Apostólicos, discípulo de João. Conheceu São Paulo, foi sucessor de Pedro na Igreja de Antioquia e foi condenado à morte no Coliseu, martirizado pelos leões. Dizia na sua Carta aos Efésios:
"A verdade é que o nosso Deus, Jesus, o Ungido, foi concebido de Maria segundo a economia divina; nasceu da estirpe de David, mas também do Espírito Santo”.
Tertuliano (†220), nascido em Cartago (África), foi notável apologeta cristão. Foi um dos primeiros a utilizar o termo ‘Trindade’ e legou-nos a mais antiga exposição formal ainda existente sobre a teologia trinitária. Em fim de vida, tornou-se montanista (os montanistas diziam-se profetas e que falavam pelo Espírito Santo).  Tertuliano acentua que Maria deu realmente à luz o Verbo Encarnado. Reconhece que ela era virgem quando concebeu, mas nega a virgindade de Maria no parto e após o parto, pelo que entende que os “irmãos de Jesus” são filhos de Maria.
- Santo Ambrósio de Milão (†397). Tornou-se um dos mais influentes membros do clero no século IV. Feito bispo de Milão por aclamação popular, era fervoroso adversário do arianismo (esta heresia afirmava ser Cristo a essência intermediária entre a divindade e a humanidade, negava-lhe o caráter divino e descria da Santíssima Trindade). A sua mariologia, focada na virgindade de Maria e no seu papel como Mãe de Deus, influenciou os Papas da época e posteriormente São Leão Magno.
Santo Agostinho de Hipona (†430). Foi um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros séculos do cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. Embora Agostinho não tenha desenvolvido uma mariologia independente, as suas afirmações sobre Maria ultrapassam, em número e em quantidade, as dos autores anteriores. Mesmo antes do Concílio de Éfeso, defendeu a sempre Virgem Maria como a “Mãe de Deus” e que, pela sua virgindade, é cheia de graça. E afirmou que a Virgem Maria “concebeu virgem, deu à luz virgem e permaneceu virgem para sempre”.
São Justino (†165), filósofo, apologeta, teólogo e mártir. O ponto central da sua apologética consiste em demonstrar que Jesus Cristo é o Logos do qual todos os filósofos falaram. Foi o primeiro a defender que Jesus nasceu duma virgem (Maria) e que descende do rei David.
Santo Irineu de Lyon (†202). Foi bispo grego, teólogo e escritor cristão, lutou ferozmente contra a gnose valentiana. Desenvolveu a teoria da recapitulação:
Mesmo Eva tendo Adão como marido, ela ainda era virgem ... Ao desobedecer, Eva tornou-se a causa da morte para si e para toda a raça humana. Da mesma forma que Maria, embora tivesse um marido, ainda era virgem, e obedecendo, ela tornou-se causa de salvação para si e para toda a raça humana.” (Adversushaereses 3,22).
Orígenes de Alexandria (†254), um teólogo, filósofo neoplatónico e um dos Padres gregos. O seu pensamento é relevante no que diz respeito à virgindade de Maria e ressalta aos olhos a naturalidade com que afirma a Imaculada Conceição de Maria: 
"Desposada com José, mas não carnalmente unida. A Mãe deste foi Mãe imaculada, Mãe incorrupta, Mãe intacta. A Mãe deste, de qual Este? A Mãe do Senhor, Unigénito de Deus, do Rei universal, do Salvador e Redentor de todos". (Homilia inter collectas ex variis locis).
Santo Efrém, o Sírio (†373).   Foi declarado doutor da Igreja por Bento XV em 1920. Compôs e entoou belos hinos marianos e fez entrar no CREDO, Símbolo dos Apóstolos: Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria...
- As Odes de Salomão, uma coleção de 42 odes atribuídas a Salomão. Crê-se que a língua original tenha sido o grego ou o siríaco. Este hinário cristão do início século II diz-nos de Maria: “O seio da Virgem concebeu e deu à luz...”.
- Os Apócrifos, com destaque para o Protoevangelho de Tiago, que conta a história da vida de Maria, filha dum homem rico chamado Joaquim, casado há muitos anos com Ana. O casal era infeliz por não conseguir ter filhos – facto entendido na cultura judaica como castigo de Deus. Joaquim jejuou no deserto 40 dias e 40 noites, implorando a intervenção divina. Pouco depois, apareceu a Ana um anjo, que lhe e disse:
Conceberás e darás à luz e de tua prole se falará em todo o mundo”.
Santo Hilário de Poitier (†367). Viveu na Gália, é doutor da Igreja e estudioso da Trindade. Defendeu a fórmula Jesus “consubstancial” ao Pai, contida no Credo. De Maria, atesta a virgindade pós-parto, sem a qual não poderia justificar a Trindade.
São Jerónimo de Stridon  (†420). Teólogo, historiador, confessor e doutor da Igreja. É mais conhecido por sua tradução da Bíblia para o latim (Vulgata). Defende a virgindade de Maria no parto. Homem de ideias determinantes, que provoca espanto nos dias de hoje, ao comparar a virgindade de Maria como figura da Igreja:
A Igreja, imitando a Mãe de Cristo, sendo virgem, a cada dia gera novos membros de Cristo”.
Tais afirmações igualam-se às da maternidade divina. ntes do século V raramente se encontra no Ocidente com o título de ‘Mãe de Deus’, aplicado a Maria. Pois o primeiro Padre a usar o título ‘Theotókos’, foi o Patriarca do Concílio de Niceia (325), Alexandre de Alexandria (†326). Depois, dir-nos-á São Vicente de Lerins (†445):
Maria é Theotókos porque em seu seio cumpriu-se o mistério, por uma especial unidade de pessoa, em modo único: É carne e é Deus.”.
Nestas citações, fica bem a célebre a comparação Eva/Maria por Santo Agostinho:
Adão dorme para que nasça Eva; Cristo morre para que nasça a Igreja. Eva nasce da costela de Adão adormecido, a Igreja do lado de Cristo morto, traspassado para que brotassem os sacramentos”.
Tema latente neste período será também o da Santidade de Maria. Antes do século IV nada se conhecia sobre o tema, pois o dogma de “Maria, Mãe de Deus” não estava definido. Só o foi em 431, no Concílio de Éfeso. Com efeito, antes, a prioridade era o combate às heresias cristológicas. Ao dizemos que Maria é Santa, recordamos que foi a sua consagração a Deus e a adesão total à Aliança na Plenitude dos Tempos, que a fez grávida de Cristo, que se gerou n’Ela, a partir da eleição para uma missão específica (separação). Santo é aquele que está “separado”, porque vocacionado para missão especial. Vemos no modo de agir de Maria e seu silêncio uma dádiva da opção de estar grávida de Deus e a escolhida para nossa evangelizadora. 
Cabe lembrar como ícone da Tradição o Akathistos (significa “estando de pé”, porque se canta nesta posição). É o hino mariano mais famoso do Oriente cristão – à maneira do Oficio ocidental de Nossa Senhora – que celebra o Mistério da Mãe de Deus e, possivelmente, o de toda a Igreja.
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Como se viu, surgem dois dogmas nos primeiros séculos da Igreja:  o de Maria, Mãe de DeusTheotókos – proclamada no Concílio de Éfeso (431); e o da Virgindade de Maria, em 451, no Concílio de Calcedónia, onde foi declarado que Jesus é nascido da Virgem Maria. Depois, em 553, o Concílio de Constantinopla II confirmou: “Encarnou-se da gloriosa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria”. Foi também atestado pelo Concílio de Latrão, no ano de 649, e referendado pela Bula “Cum quorumdam hominum”, de 1555, do Papa Paulo IV, afirmando que “Maria é sempre Virgem, antes do parto, no parto e depois do parto”.
Dois dogmas vieram mais tarde: o da Imaculada Conceição, que nos aponta Maria toda santa, toda de Deus, protótipo do que somos chamados a ser. Foi proclamado pela Bula “Ineffabilis Deus”, do Papa Pio IX, em 1854; e o de Maria, Assunta aos céus, pela Constituição Apostólica “Munificentissimus Deus”, proclamado pelo Papa Pio XII, em 1950.
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João Paulo II, na Carta Encíclica Redemptoris Mater, n.º 41, presenteia-nos com a afirmação, “Maria, a Plenitude redimida”, onde
No mistério da Assunção, exprime-se a fé da Igreja, segundo a qual Maria está ‘unida por um vínculo estreito e indiscutível’ a Cristo, pois, se já como Mãe Virgem estava a ele singularmente unida na sua primeira vinda, pela sua contínua cooperação com Ele o estará também na expectativa da segunda: ‘Remida de um modo mais sublime, em atenção aos méritos de seu Filho’, ela tem o papel próprio da Mãe, de medianeira de clemência na vinda definitiva”.
Há, de facto, unidade entre a “primeira vinda” e a “segunda”, não por mérito de Maria, mas pelo de Cristo, pois todos os dogmas marianos são méritos de Cristo, fazendo de Maria a intercessora pela omnipotência suplicante e medianeira de todas as graças. Trata-se de tema intenso que merece ser aprofundado e faz parte duma trilogia dos estudos marianos, em regime de complementaridade: Maria na Escritura, Maria na Tradição (Padres, Doutores e Magistério); e Maria na Devoção Popular – pois o cristão deve pautar a vida pela de Maria, já que a Ela se consagra, e crescer com Maria, buscando a santidade.
Cf Eduardo Lopes Caridade – http://cncmb.org.br/maria-na-tradicao.html.
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A verdade da tradição marial sobre Deus, a Igreja e nós, excede a informação histórica que temos. Esta devoção  tornou-se fundamental para a espiritualidade da Igreja. Figura proeminente na iconografia e arquitetura, desperta nobres emoções de amor e veneração. Passou para a história e a sua memória perdurará. O seu culto acalenta a imaginação dos cristãos, que a invocam para cumprirem as exigências do discipulado. A teologia reflete sobre a sua cooperação com o plano da salvação, a vocação à vida de compromisso consumado na oferenda sacrifical de Si em união com o Filho junto à cruz (Jo 19,25-28). Com desabrochar do desafio do discipulado e as exigências da radicalidade do Evangelho, Maria torna-se o modelo para reencarnar o amor e a justiça de Deus através dos tempos. – Cf Coyle, K., Maria tão plena de Deus e tão nossa, Paulus,2012.

2017. 08.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de agosto de 2017

O Oriente Médio é notícia por bons e por tristes motivos

A Gaudium Press.org e a Rádio Vaticano, no dia 28 de agosto, deram relevo à exposição temática “Cristãos do Oriente – Dois mil anos de história” que se realizará na capital francesa com o brilhante escopo de “mostrar documentos e obras muito antigas e únicas que narram e documentam a milenar presença cristã no Oriente Médio e a sua contribuição para a vida cultural, política e intelectual do mundo árabe no decorrer dos séculos”.
A mostra expositiva estará patente ao público no IMA (Instituto do Mundo Árabe de Paris) de 26 de setembro de 2017 a 24 de janeiro de 2018. Organizada e preparada em colaboração com a “Ouvre d’Orient” – Associação francesa empenhada na ajuda aos cristãos no Oriente Médio –, esta exposição apresentará mapas, pinturas e documentos, bem como raras obras-primas, algumas das quais ficarão expostas pela primeira vez na Europa.
Entre estas obras inéditas que serão expostas ao público estão os Evangelhos de Rabula, célebre manuscrito “iluminado” (ou seja, decorado com ouro ou prata) siríaco do século IV, conservado na Biblioteca Laurenciana de Florença, além dos primeiros afrescos cristãos conhecidos no mundo e que são provenientes da antiga Igreja de Doura-Europos, a leste do sítio arqueológico de Palmira, na Síria, fronteira com Iraque, e que remonta ao século III.
A mostra apresentará também ícones e fotografias que retratarão o singular papel dos cristãos na região – tópico que será ainda destacado por meio da apresentação de materiais sobre algumas etapas históricas fundamentais, como a adoção do cristianismo no Império Romano como religião de Estado, os Concílios fundadores, o desenvolvimento das missões católicas, a contribuição dos cristãos para o Nahda, designação dada ao Renascimento árabe, e as mudanças ocorridas nos séculos XX e XXI. E outro dos pontos a serem abordados na exposição será a vitalidade das atuais comunidades cristãs no mundo árabe, cuja sobrevivência está hoje ameaçada pela difusão do fundamentalismo islâmico.
De acordo com Charles Personnaz, responsável pelas iniciativas culturais e pelo património dos cristãos do Oriente do “Ouvre d'Orient”, a finalidade da mostra é fazer ressaltar a riqueza da cultura cristã da região, visto que a história dos cristãos não é só feita de dramas e perseguições, mas também de períodos de prosperidade mesmo atualmente com os frequentes perigos que ameaçam a presença dessas comunidades de fé nas regiões do Oriente Médio, que são acompanhados pela esperança de que estas comunidades tomem consciência de uma identidade comum e secular, baseada em uma história compartilhada.
O itinerário da mostra traz ainda a grande diversidade do cristianismo nas suas várias declinações: copta, assírio-caldaica, siríaca, arménia, maronita, latina, ortodoxa e protestante.
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Por outro lado, como atesta a Rádio Vaticana, o Oriente Médio encontra-se totalmente fragmentado, pois as guerras dizimaram as populações e a presença cristã foi reduzida a números decimais. Na Síria, onde a guerra parece enveredar pelo caminho que almeja o fim, o maior desafio é convencer as pessoas a voltarem e a entrarem novamente nas suas casas. De facto, as perspetivas são incertas, as vidas devem ser reconstruídas, nada será como antes. Há iniciativas louváveis levadas adiante pelas Igrejas locais, em que ressalta, de modo especial, a ação dos franciscanos, dos jesuítas e dos salesianos. Mas não se revelam suficientes. Há, com efeito, muitos cristãos esperam emigrar definitivamente, como testemunham tantos jovens iraquianos deslocados. Foi nestes termos que deu testemunho o administrador apostólico do Patriarcado Latino de Jerusalém, o arcebispo Dom Pierbattista Pizzaballa, durante pronunciamento no Encontro de Rimini – centro-norte da Itália – concluído no passado dia 26 de agosto. Para o religioso franciscano, que citou as palavras de um jovem palestino que havia encontrado, “não basta reconstruir, é preciso dar uma orientação, pois, ligar a nossa esperança e o nosso futuro a soluções políticas ou sociais criará somente frustração”.
Dom Pizzaballa vê como fundamental no Oriente Médio em agudas dificuldades a radicação do cristianismo em Cristo e a mostrar o lado atraente e sedutor do seu rosto. Garante o hierarca:
 “Aquilo que salvará o cristianismo será o estar radicado em Cristo. Os cristãos são chamados a evangelizar e a testemunhar o belo, o bom e o verdadeiro que existe no Evangelho e na Tradição, sem se lamentarem por aquilo que foi perdido.”.
Diz o arcebispo que é necessário os cristãos serem “capazes de um anúncio compreensível e atraente”, pois “não se pode falar de valores cristãos sem dizer que Cristo é o que se pode encontrar de melhor”. E propõe a não construção de quaisquer muros que separem porque “não há nada que não possa ser valorizado pela experiência do Evangelho” – uma experiência “grande” porque “é desejo de esperança”. Com efeito, disse, os “nossos pais com esse desejo construíram catedrais e fizeram tudo aquilo que vemos”.
Porém, não basta a convicção interior. Ao invés, tudo quilo que fazemos deve ser caraterizado pelo estilo cristão com um anúncio e uma proposta que encontrará expressão na vida civil, social, política e económica. É o modo cristão de dizer que Cristo se fez homem e reconhecer a glória de Deus no quotidiano. O que conta é a transmissão do desejo duma geração a outra.
E o homem dos nossos dias, ainda que não o manifeste, espera essa tal ‘boa nova’. Portanto, diz ainda o administrador do Patriarcado Latino de Jerusalém que não se trata de recordar por saudade, mas “para despertar o desejo”. É este “o modo com o qual nossos pais testemunharam que se pode viver com estímulo, com satisfação”. E é preciso encontrar os diferentes modos de comunicar a beleza, “porque o homem contemporâneo, inconscientemente, está esperando essa tal ‘boa nova’, que o revela a si mesmo”.
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O Conselho dos Patriarcas Católicos do Oriente esteve reunido na sua sessão anual, antes da Assunção (com início a 10 de agosto), em Dimane, no Líbano, residência patriarcal de verão do Patriarca maronita, tendo alguns participantes sido recebidos pelo Presidente libanês. Na agenda do encontro, esteve a complexa situação vivida pelas comunidades cristãs autóctones em muitas partes do Oriente Médio. E os temas abordados estão intimamente conexos com os problemas pastorais e com as emergências políticas e sociais que afligem, de modo cada vez mais intenso e preocupante, as comunidades católicas orientais, que registaram, em alguns países médio-orientais, nos últimos anos, uma drástica diminuição do número de fiéis.
Nos últimos anos, este organismo que congrega todos os Primazes das Igreja católicas Orientais presentes naquela região do mundo não se pôde reunir devido, sobretudo,  aos conflitos na Síria e no Iraque. Agora, pela primeira vez, tomou parte no encontro como Patriarca, Youssef Absi, novo Primaz da Igreja Greco-católica melquita.
Neste encontro, em Dimane, tomou parte o Núncio Apostólico no Líbano, Dom Gabriele Giordano Caccia e, numa das sessões ecuménicas, estiveram presentes  os Patriarcas greco-ortodoxo Giovani Yazigi, Siro-ortodoxo, Ignazio Efrem II, o Catholicos da Igreja Apostólica Armena, Aram I, e o Presidente da Comunidade Evangélica na Síria e no Líbano, Salim Sahyouni. E, entre os participantes, contam-se ainda o Cardeal Patriarca de Antioquia dos Maronitas, Béchara Boutros Rai, o Patriarca de Antioquia dos Sírios, Ignace Youssif III Younan, o Patriarca de Antioquia dos Greco-melquitas, Joseph Absi, o Patriarca de Alexandria dos Coptas, Ibrahim Isaac Sedrak, o Patriarca de Babilónia dos Caldeus, Louis Raphael Sako, e o Patriarca da Cilícia dos Arménios, Grégoire  Pierre XX Ghabroyan. 
No final do encontro emitiram um comunicado em que sublinham, verificando e exortando:
“É tempo de lançar um apelo profético em testemunho da verdade. Fomos convidados a permanecer apegados à nossa identidade oriental e a permanecer fiéis à nossa missão. Assumindo a atenção pelo pequeno rebanho, nós Patriarcas orientais sentimo-nos aflitos ao assistir à hemorragia humana dos cristãos que abandonam as suas terras de origem no Médio Oriente. […]. Permaneçamos enraizados na terra dos padres e dos antepassados, esperando contra toda a esperança num futuro em que, como componentes de um património autêntico e específico, seremos compreendidos como fontes de enriquecimento para a nossa sociedade e para a Igreja universal no Oriente e no Ocidente.”.  
Os Patriarcas exortam assim a não cessar de proclamar  “a verdade na caridade, a legitimidade da separação entre o Estado e a religião na constituição  das nossas pátrias, a igualdade de direitos e deveres para todos, sem olhar para a pertença religiosa e comunitária”.
O jornal do Vaticano “L’Osservatore Romano” retomou a nota final do encontro e frisa que o Conselho dos Patriarcas Católicos do Oriente aponta o dedo à comunidade internacional por considerar que ela assiste à agonia, causada pela insegurança e pela emigração, uma depois da outra, das igrejas orientais no Iraque, Síria, Palestina, Líbano, Egito, sem reagir devidamente a esta tragédia. O Conselho adverte que, se este estado de coisas continuar, estaremos perante um verdadeiro projeto de genocídio e de uma “afronta contra a humanidade”. Por isso, o Conselho solicita, por carta, às Nações Unidas e aos países afetados de forma direta pelos conflitos na região que ponham termo à guerra, cujos objetivos são claros: destruir, matar, levar ao êxodo, relançar as organizações terroristas, difundir o espírito de intolerância e de conflito entre religiões e culturas. A perpetuação deste estado situacional, com a incapacidade de estabelecer uma paz justa, global e duradoura na região, assegurando o retorno dos refugiados e dos deslocados aos seus lares na dignidade e na justiça, permanecerá como “um estigma de vergonha por todo o século XXI”.
Os Patriarcas Católicos do Oriente dirigem-se também ao Papa Francisco nestes termos:
Nós somos uma nação com amplas fronteiras e que atrai a atenção dos gigantes das finanças; já não somos mais que um pequeno rebanho pacífico. Um pequeno rebanho que não conta com ninguém senão Convosco para convidar os grandes que presidiam os destinos do mundo”.
Estas mensagens coincidem com a publicação de dados eloquentes sobre a diminuição dos cristãos nos vários países do Médio Oriente, sobretudo no Iraque, Síria e Terra Santa (onde já são apenas 1,2% da população); na Síria, devido à guerra desencadeada em 2011, o número de cristãos passou de 250 mil para 100 mil. E no Iraque, os representantes da comunidade cristãos estão a fazer um enorme esforço por convencer a população de Nínive a voltar para a sua terra.
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É tanto de saudar a exposição de Paris a evidenciar a produção cultural e cristã do Oriente Médio, como suscitar a solidariedade para com as Igrejas e grupos étnicos que ali sofrem. É de acolher o apelo dos Patriarcas Católicos do Oriente e rogar a Deus que não seja necessário que no Ocidente hedonista venha o sofrimento para levar os cristãos à radicalidade do evangelho.

2017.08.29 – Louro de Carvalho