O DN de
hoje, 1 de agosto, dá voz ao líder dos advogados de Lisboa, que sustenta que o
comunicado de Maria José Morgado relativo aos 18 agentes da PSP acusados de
maus tratos “é excessivo e não respeita nem a presunção de inocência nem o
contraditório”.
Antes de
mais, importa conhecer o teor do predito documento (aliás uma
nota) como se pode ainda ver nos
destaques do site da PGDL (Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa):
“11-07-2017. Acusação. Falsificação de
documento. Denúncia caluniosa. Injúria. Ofensa à integridade física
qualificada. Falsidade de testemunho. Tortura e outros tratamentos cruéis,
degradantes ou desumanos. Sequestro agravado. DIAP da Amadora/Comarca Lisboa
Oeste.
O MP requereu o julgamento em Tribunal Coletivo de 18 arguidos, agentes da
PSP, pela prática dos crimes de falsificação de documento agravado, denúncia
caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade
de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e
sequestro agravado.
No
essencial está indiciado que os agentes da PSP, em fevereiro de 2015, com grave
abuso da função e violação dos deveres que lhes competiam, fizeram constar de
documentos factos que não correspondiam à verdade, praticaram atos e proferiram
expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos, prestaram declarações
que igualmente não correspondiam à verdade e privaram-nos da liberdade. Os
arguidos encontram-se sujeitos a termo de identidade e residência. O
inquérito foi dirigido pelo MP do DIAP da Amadora/Comarca Lisboa Oeste, com a
coadjuvação da PJ – UNCT.”
(http://www.pgdlisboa.pt/novidades/nov_print_tudo.php?destaque=).
O líder da
regional de Lisboa da OA (Ordem dos Advogados), António Jaime Martins, critica o comunicado por demasiado revelador da
investigação em curso, não respeitando o princípio do contraditório nem o
princípio constitucional da presunção da inocência. E estas críticas têm dois
alvos concretos: a PGDL, liderada por Maria José Morgado; e o processo judicial
devidamente identificado, com as referências explícitas da acusação de racismo
e de maus tratos feita a 18 agentes da PSP, tornada pública. Diz o advogado que
este género de esclarecimento público da parte de “algumas autoridades
judiciárias não contribui nem para a segurança de pessoas e bens, nem para a
tranquilidade pública, muito pelo contrário”. Além disso, em sua opinião, “os
visados pelas investigações não têm qualquer direito ao contraditório utilizando
os mesmos meios e a presunção de inocência está posta em causa”.
Pressuporá o
crítico que, se os visados dispusessem da página da internet da PGDL para expor
o seu lado da questão, ficaria salvaguardado o princípio do contraditório? Ora,
sendo assim, porque não o faz a OA na sua página web?
Por seu
turno, a Procuradora-Geral Adjunta, Maria José Morgado, exerceu o seu contraditório
ao considerar que “em todo o mundo civilizado os tribunais, o Ministério
Público e as polícias divulgam a sua atividade como forma de prestação de
contas à comunidade”.
E eu
continuo a pensar que a presunção de inocência é uma figura que vincula os
agentes do processo e não propriamente a opinião pública.
No entanto,
o advogado é parco na identificação dos crimes constantes da acusação, pois,
como se vê, o site da PGDL, refere
uma lista bem mais extensa dos crimes pelos quais os arguidos são acusados: falsificação
de documento agravada, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à
integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e “outros
tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado”. Mais é referido
que os agentes “abusaram da função e violação dos deveres que lhes competiam e
proferiram expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos”. E a nota
da PGDL termina com identificação da medida de coação aplicada – termo de
identidade e residência.
Maria José
Morgado sustenta que a notícia em causa “é uma informação objetiva e neutra
sobre um dado processual, neste caso a dedução de uma acusação”, esclarecendo
que “o princípio da presunção da inocência faz parte das regras de produção de
prova em audiência, tendo como regra a absolvição de qualquer arguido à menor
dúvida”, e que é o julgamento que “assegura a aplicação desse princípio de
produção de prova”. Não é, pois, lícito, segundo a magistrada, confundirem-se “realidades
muito distintas e com finalidades muito diferentes”.
Sobre a
prestação de esclarecimentos públicos, o artigo 86.º do CPP (Código de
Processo Penal), que articula
a exigência do segredo de justiça com a necessidade ou conveniência da dita
prestação de esclarecimentos, estabelece no n.º 9:
“A autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar ou ordenar ou
permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de ato
ou de documento em segredo de justiça, se não puser em causa a investigação e
se afigurar: a) conveniente ao
esclarecimento da verdade; b) indispensável
ao exercício de direitos pelos interessados”.
E o n.º 13
estipula:
“O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos
pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da
verdade e não prejudicarem a investigação: a)
a pedido de pessoas publicamente postas em causa; ou b) para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade
pública”.
Todavia, Jaime
Martins considera que “o caráter habitual, mesmo diário, destes comunicados,
faz com que, mesmo nos casos em que a justiça não está mediatizada, passe a
partir desse momento a estar”; e que tais esclarecimentos surgem “apenas na
perspetiva de quem investiga, sem que os arguidos visados cuja identidade é, na
generalidade dos casos, relevada pelos media, tenham a faculdade de apresentar
a sua versão dos factos”, cabendo, assim, “perguntar onde fica o princípio da
presunção de inocência dos visados até decisão judicial”, que “pura e
simplesmente, não existe”.
***
O caso, que envolve agressões a jovens
da Cova da Moura (Amadora), remonta a fevereiro de 2015,
quando 18 policiais, segundo o MP (Ministério Público), “fizeram constar de documentos factos que não
correspondiam à verdade, praticaram atos e proferiram expressões que ofenderam
o corpo e a honra dos ofendidos, prestaram declarações que igualmente não
correspondiam à verdade e privaram-nos da liberdade”. De facto, nesse mês e ano,
um grupo de cerca de 10 jovens tentou invadir a esquadra da PSP de Alfragide, na
sequência da detenção do jovem que atirou uma pedra contra uma carrinha
policial, segundo fonte das forças de segurança. De acordo com a PSP, uma
carrinha duma equipa que patrulhava a Cova da Moura foi atingida por pedra dum
jovem dum grupo de cerca de 10 pessoas. Um polícia sofreu ferimentos ligeiros
no rosto e nos braços e foi transportado para o Hospital de Amadora-Sintra e o
jovem, de 24 anos, foi levado para a esquadra de Alfragide. Na sequência daquela
detenção, os restantes jovens (com idades entre os 23 e 25 anos) “tentaram invadir” a esquadra e terão disparado novo tiro
para o ar. Nesta situação, foram detidos 5 elementos do grupo e os restantes
fugiram. Os 5 detidos foram transportados ao hospital devido a ferimentos
ligeiros.
Três dias depois a IGAI (Inspeção-Geral da Administração
Interna) anunciava
investigação à atuação da PSP nos incidentes no Bairro da Cova da Moura e numa
esquadra de Alfragide. Mais tarde, a 7 de julho, o Ministério da Administração
Interna informava que tinha instaurado processos disciplinares contra 9
elementos da PSP e arquivado as participações relativas aos restantes 5
polícias. Entretanto, a IGAI nesta investigação à conduta policial arquivou o
inquérito e arquivou 7 dos 9 processos disciplinares abertos, por considerar “inexistir prova dos factos geradores da
factualidade em causa”. Só dois polícias sofreram penalizações, um foi suspenso
6 meses, outro transferido. Segundo a IGAI, o processo de inquérito
“Acabou
por ser arquivado, em virtude de as diligências entretanto realizadas
evidenciarem a ausência de fundamento para a instauração de outros processos
disciplinares”.
***
Contrariando
a posição da IGAI, o MP concluiu agora que 6 jovens negros, da Cova da Moura,
foram vítimas de racismo e tortura, pelo que 18 agentes da PSP da esquadra de
Alfragide são acusados (tendo
sido arquivados os processos policiais contra os jovens) dos crimes de tortura, sequestro,
injúria e ofensa à integridade física, agravados pelo crime de ódio e
discriminação racial, segundo o Diário de
Notícias. É uma investigação do MP sem precedentes. Em causa está o
episódio de violência dos agentes contra 6 jovens de origem cabo-verdiana,
habitantes da Cova da Moura. A acusação surge, como se vê, dois anos depois de
a UNCT (Unidade Nacional
de Contraterrorismo) da
Polícia Judiciária ter iniciado a investigação. Além dos crimes principais de
que todos os 18 agentes são acusados, há ainda alguns a que acrescem os crimes
de falsificação de relatórios, de autos de notícia e testemunho, havendo também
uma subcomissária e uma agente acusadas de omissão de auxílio e denúncia, sendo
que todos os polícias daquela esquadra de Alfragide estão acusados de ter
participado naqueles crimes.
Trata-se de longo
processo que se iniciou com a constituição de arguido dos jovens por
alegadamente terem invadido a esquadra de Alfragide para libertarem um outro jovem
que tinha sido detido, sendo indiciados pelos crimes de resistência e coação
contra funcionários, injúria, dano e ofensa à integridade física.
Só no dia 7 de fevereiro os jovens foram presentes ao juiz de
instrução criminal. Regressados à esquadra, enquanto aguardavam pelos bombeiros
e o INEM, chamados para os conduzirem ao hospital, ainda assistiram a uma cena,
que os investigadores registaram: uma subcomissária de serviço, para esconder
vestígios do sangue provocado pelas agressões, pegou numa esfregona e limpou o
chão manchado de vermelho.
***
O caso não
ficou por aí, pois vários testemunhos surgiram a contrariar esta narrativa. A
PJ interveio e, ouvidos 30 testemunhos e recolhidas provas (entre relatórios médicos e cruzamento
de informação), foi a
versão dos jovens que prevaleceu sobre a dos polícias. De acordo com o DN, que acedeu ao despacho de acusação,
o MP concluiu que a detenção do primeiro jovem foi arbitrária e violenta, não
tendo sido motivada por apedrejamento contra a viatura da polícia, ao invés do relatado
pela PSP, e que o jovem não resistiu à detenção como constava dos relatos da
PSP. Foram alegadamente os polícias que o encostaram contra a parede e disseram
coisas incríveis, tendo-o depois espancado e fazendo-o cair a sangrar da boca e
do nariz. O MP conclui também que os agentes da PSP mentiram e espancaram
violentamente também os 6 jovens que foram à esquadra à procura do amigo. Sem
qualquer provocação, os agentes algemaram-nos, atiraram-nos ao chão na esquadra
e começaram as agressões: pontapés em todo o corpo, socos, bofetadas, incluindo
na cabeça, pisadelas e tiros com balas de borracha – além de agressões verbais
insultuosas, ameaçadoras e racistas.
Inicialmente, os jovens foram efetivamente constituídos
arguidos, sob a acusação da PSP – corroborada pelo MP e pelo juiz de instrução –
de terem tentado invadir a esquadra para libertar o jovem detido. Ficaram
sujeitos a TIR (termo de
identidade e residência)
indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionário, injúria,
dano, tirada de presos e ofensa à integridade física. Mas a PJ demonstrou que a
narrativa não era verosímil, face aos testemunhos e provas recolhidas, bem como
em parte da investigação anteriormente feita pela IGAI, no âmbito dos processos
disciplinares. Foi a versão dos jovens que vingou na investigação, baseada em 3
dezenas de testemunhos, relatórios médicos e cruzamento de informações
recolhidas.
Tudo começou com a detenção, que o MP concluiu ter sido
arbitrária e violenta no bairro do jovem Bruno Lopes (não na sequência do apedrejamento por
parte deste contra uma viatura da polícia, como contou a PSP), levado para a esquadra pelas 14
horas do dia 5 de fevereiro de 2015. Ao contrário do descrito nos autos de
notícia da PSP, Bruno não resistiu à detenção nem agrediu os polícias. Segundo o
relato deste, os agentes encostaram-no a uma parede, de braços e pernas abertos
e disseram-lhe “Estás a rir de quê, macaco?
Encosta-te aí à parede!”. A seguir, espancaram-no violentamente e caiu no
chão a sangrar da boca e do nariz.
A Associação Moinho da
Juventude (que
desenvolve ali projetos de inclusão social) alertou amigos, entre os quais Flávio Almada e Celso
Barros, conhecidos (até
da polícia) por ativos
mediadores da associação. Seis deles (não 20 a 25, como contou a PSP) dirigiram-se à esquadra para saberem da situação de
Bruno. O MP diz que, sem que fossem provocados, os agentes começaram a agredir
os jovens, arrastando-os para a esquadra enquanto gritavam palavras de ódio
racial. Dois deles ainda conseguiram fugir por entre as estreitas ruas do
bairro. Ficaram Flávio, Celso, Paulo e Miguel. E um outro elemento, Rui Moniz,
que estava nas imediações, a sair duma loja de telemóveis ao lado da esquadra,
acabou por ser também arrastado para dentro pelos polícias. Um dos agentes,
apontando para Flávio, exclamou para os seus colegas: “Apanhem aquele que tem a mania que é esperto”. E, indo atrás dele, espancou-o
com o bastão. Algemados, foram atirados para o chão da esquadra. E ouviram
dizer a um dos polícias: “Vão morrer
todos, pretos de merda!”. Pontapés em todo o corpo, socos, bofetadas,
incluindo na cabeça, pisadelas, tiros com balas de borracha. Rui Moniz, que
teve um AVC aos 9 anos e sofre de paralisia na mão direita, gritava por ajuda,
mas era ainda mais agredido. Gozando, um dos agentes humilhou-o:
“Então
não morreste (do AVC)? Agora vai dar-te um que vais morrer. Ainda por cima és
pretoguês filho da puta!”.
Os 6 estiveram detidos dois dias, em que, segundo o MP, foram
humilhados, vítimas de enorme violência física e psicológica da parte de
policiais dominados por sentimentos de xenofobia, ódio e discriminação racial. Uma
agente a quem Rui pedia que o salvasse respondeu: “Não é nada comigo”. Outro agente dizia (apoiado pelos colegas), olhando para os 6 jovens do chão:
“Não
sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É
preciso fazer a vossa deportação. Se eu mandasse vocês seriam todos
esterilizados.”.
Ou, como relataram ainda os jovens, declarava outro agente:
“É melhor
irem para o ISIS”, “vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro
de merda!”.
***
É bom que o tribunal tire tudo a limpo e faça justiça punindo
quem deva ser punido e absolvendo que o deva ser. De facto, é inadmissível a
prática de atos violentos e os doestos de xenofobia, racismo e aniquilação de
raça ou bairro. Todavia, questiono o Estado pela delapidação da falta de
autoridade das polícias e a leveza com que se ilibam preliminarmente as recorrentes
agressões juvenis. A hipótese de provocação não se pôs ao MP? E foram
suficientes os testemunhos dos jovens sem o contraditório da PSP? E a nota da
PGDL expõe demasiado a PSP!... Isto não tranquiliza as populações, que
precisavam de confiar nas forças da ordem.
2017.08.01 –
Louro de Carvalho
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