terça-feira, 1 de agosto de 2017

Alegado desrespeito pela presunção de inocência e pelo contraditório

O DN de hoje, 1 de agosto, dá voz ao líder dos advogados de Lisboa, que sustenta que o comunicado de Maria José Morgado relativo aos 18 agentes da PSP acusados de maus tratos “é excessivo e não respeita nem a presunção de inocência nem o contraditório”.
Antes de mais, importa conhecer o teor do predito documento (aliás uma nota) como se pode ainda ver nos destaques do site da PGDL (Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa):
“11-07-2017. Acusação. Falsificação de documento. Denúncia caluniosa. Injúria. Ofensa à integridade física qualificada. Falsidade de testemunho. Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos. Sequestro agravado. DIAP da Amadora/Comarca Lisboa Oeste.
O MP requereu o julgamento em Tribunal Coletivo de 18 arguidos, agentes da PSP, pela prática dos crimes de falsificação de documento agravado, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado. 
No essencial está indiciado que os agentes da PSP, em fevereiro de 2015, com grave abuso da função e violação dos deveres que lhes competiam, fizeram constar de documentos factos que não correspondiam à verdade, praticaram atos e proferiram expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos, prestaram declarações que igualmente não correspondiam à verdade e privaram-nos da liberdade. Os arguidos encontram-se sujeitos a termo de identidade e residência. O inquérito foi dirigido pelo MP do DIAP da Amadora/Comarca Lisboa Oeste, com a coadjuvação da PJ – UNCT.”
(http://www.pgdlisboa.pt/novidades/nov_print_tudo.php?destaque=).
O líder da regional de Lisboa da OA (Ordem dos Advogados), António Jaime Martins, critica o comunicado por demasiado revelador da investigação em curso, não respeitando o princípio do contraditório nem o princípio constitucional da presunção da inocência. E estas críticas têm dois alvos concretos: a PGDL, liderada por Maria José Morgado; e o processo judicial devidamente identificado, com as referências explícitas da acusação de racismo e de maus tratos feita a 18 agentes da PSP, tornada pública. Diz o advogado que este género de esclarecimento público da parte de “algumas autoridades judiciárias não contribui nem para a segurança de pessoas e bens, nem para a tranquilidade pública, muito pelo contrário”. Além disso, em sua opinião, “os visados pelas investigações não têm qualquer direito ao contraditório utilizando os mesmos meios e a presunção de inocência está posta em causa”.
Pressuporá o crítico que, se os visados dispusessem da página da internet da PGDL para expor o seu lado da questão, ficaria salvaguardado o princípio do contraditório? Ora, sendo assim, porque não o faz a OA na sua página web?
Por seu turno, a Procuradora-Geral Adjunta, Maria José Morgado, exerceu o seu contraditório ao considerar que “em todo o mundo civilizado os tribunais, o Ministério Público e as polícias divulgam a sua atividade como forma de prestação de contas à comunidade”.
E eu continuo a pensar que a presunção de inocência é uma figura que vincula os agentes do processo e não propriamente a opinião pública.
No entanto, o advogado é parco na identificação dos crimes constantes da acusação, pois, como se vê, o site da PGDL, refere uma lista bem mais extensa dos crimes pelos quais os arguidos são acusados: falsificação de documento agravada, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e “outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado”. Mais é referido que os agentes “abusaram da função e violação dos deveres que lhes competiam e proferiram expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos”. E a nota da PGDL termina com identificação da medida de coação aplicada – termo de identidade e residência.
Maria José Morgado sustenta que a notícia em causa “é uma informação objetiva e neutra sobre um dado processual, neste caso a dedução de uma acusação”, esclarecendo que “o princípio da presunção da inocência faz parte das regras de produção de prova em audiência, tendo como regra a absolvição de qualquer arguido à menor dúvida”, e que é o julgamento que “assegura a aplicação desse princípio de produção de prova”. Não é, pois, lícito, segundo a magistrada, confundirem-se “realidades muito distintas e com finalidades muito diferentes”.
Sobre a prestação de esclarecimentos públicos, o artigo 86.º do CPP (Código de Processo Penal), que articula a exigência do segredo de justiça com a necessidade ou conveniência da dita prestação de esclarecimentos, estabelece no n.º 9:
“A autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se não puser em causa a investigação e se afigurar: a) conveniente ao esclarecimento da verdade; b) indispensável ao exercício de direitos pelos interessados”.
E o n.º 13 estipula:
“O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação: a) a pedido de pessoas publicamente postas em causa; ou b) para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública”.
Todavia, Jaime Martins considera que “o caráter habitual, mesmo diário, destes comunicados, faz com que, mesmo nos casos em que a justiça não está mediatizada, passe a partir desse momento a estar”; e que tais esclarecimentos surgem “apenas na perspetiva de quem investiga, sem que os arguidos visados cuja identidade é, na generalidade dos casos, relevada pelos media, tenham a faculdade de apresentar a sua versão dos factos”, cabendo, assim, “perguntar onde fica o princípio da presunção de inocência dos visados até decisão judicial”, que “pura e simplesmente, não existe”.
***
O caso, que envolve agressões a jovens da Cova da Moura (Amadora), remonta a fevereiro de 2015, quando 18 policiais, segundo o MP (Ministério Público), “fizeram constar de documentos factos que não correspondiam à verdade, praticaram atos e proferiram expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos, prestaram declarações que igualmente não correspondiam à verdade e privaram-nos da liberdade”. De facto, nesse mês e ano, um grupo de cerca de 10 jovens tentou invadir a esquadra da PSP de Alfragide, na sequência da detenção do jovem que atirou uma pedra contra uma carrinha policial, segundo fonte das forças de segurança. De acordo com a PSP, uma carrinha duma equipa que patrulhava a Cova da Moura foi atingida por pedra dum jovem dum grupo de cerca de 10 pessoas. Um polícia sofreu ferimentos ligeiros no rosto e nos braços e foi transportado para o Hospital de Amadora-Sintra e o jovem, de 24 anos, foi levado para a esquadra de Alfragide. Na sequência daquela detenção, os restantes jovens (com idades entre os 23 e 25 anos) “tentaram invadir” a esquadra e terão disparado novo tiro para o ar. Nesta situação, foram detidos 5 elementos do grupo e os restantes fugiram. Os 5 detidos foram transportados ao hospital devido a ferimentos ligeiros.
Três dias depois a IGAI (Inspeção-Geral da Administração Interna) anunciava investigação à atuação da PSP nos incidentes no Bairro da Cova da Moura e numa esquadra de Alfragide. Mais tarde, a 7 de julho, o Ministério da Administração Interna informava que tinha instaurado processos disciplinares contra 9 elementos da PSP e arquivado as participações relativas aos restantes 5 polícias. Entretanto, a IGAI nesta investigação à conduta policial arquivou o inquérito e arquivou 7 dos 9 processos disciplinares abertos, por considerar “inexistir prova dos factos geradores da factualidade em causa”. Só dois polícias sofreram penalizações, um foi suspenso 6 meses, outro transferido. Segundo a IGAI, o processo de inquérito
Acabou por ser arquivado, em virtude de as diligências entretanto realizadas evidenciarem a ausência de fundamento para a instauração de outros processos disciplinares”.
***
Contrariando a posição da IGAI, o MP concluiu agora que 6 jovens negros, da Cova da Moura, foram vítimas de racismo e tortura, pelo que 18 agentes da PSP da esquadra de Alfragide são acusados (tendo sido arquivados os processos policiais contra os jovens) dos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física, agravados pelo crime de ódio e discriminação racial, segundo o Diário de Notícias. É uma investigação do MP sem precedentes. Em causa está o episódio de violência dos agentes contra 6 jovens de origem cabo-verdiana, habitantes da Cova da Moura. A acusação surge, como se vê, dois anos depois de a UNCT (Unidade Nacional de Contraterrorismo) da Polícia Judiciária ter iniciado a investigação. Além dos crimes principais de que todos os 18 agentes são acusados, há ainda alguns a que acrescem os crimes de falsificação de relatórios, de autos de notícia e testemunho, havendo também uma subcomissária e uma agente acusadas de omissão de auxílio e denúncia, sendo que todos os polícias daquela esquadra de Alfragide estão acusados de ter participado naqueles crimes.
Trata-se de longo processo que se iniciou com a constituição de arguido dos jovens por alegadamente terem invadido a esquadra de Alfragide para libertarem um outro jovem que tinha sido detido, sendo indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionários, injúria, dano e ofensa à integridade física.  
Só no dia 7 de fevereiro os jovens foram presentes ao juiz de instrução criminal. Regressados à esquadra, enquanto aguardavam pelos bombeiros e o INEM, chamados para os conduzirem ao hospital, ainda assistiram a uma cena, que os investigadores registaram: uma subcomissária de serviço, para esconder vestígios do sangue provocado pelas agressões, pegou numa esfregona e limpou o chão manchado de vermelho.
***
O caso não ficou por aí, pois vários testemunhos surgiram a contrariar esta narrativa. A PJ interveio e, ouvidos 30 testemunhos e recolhidas provas (entre relatórios médicos e cruzamento de informação), foi a versão dos jovens que prevaleceu sobre a dos polícias. De acordo com o DN, que acedeu ao despacho de acusação, o MP concluiu que a detenção do primeiro jovem foi arbitrária e violenta, não tendo sido motivada por apedrejamento contra a viatura da polícia, ao invés do relatado pela PSP, e que o jovem não resistiu à detenção como constava dos relatos da PSP. Foram alegadamente os polícias que o encostaram contra a parede e disseram coisas incríveis, tendo-o depois espancado e fazendo-o cair a sangrar da boca e do nariz. O MP conclui também que os agentes da PSP mentiram e espancaram violentamente também os 6 jovens que foram à esquadra à procura do amigo. Sem qualquer provocação, os agentes algemaram-nos, atiraram-nos ao chão na esquadra e começaram as agressões: pontapés em todo o corpo, socos, bofetadas, incluindo na cabeça, pisadelas e tiros com balas de borracha – além de agressões verbais insultuosas, ameaçadoras e racistas.
Inicialmente, os jovens foram efetivamente constituídos arguidos, sob a acusação da PSP – corroborada pelo MP e pelo juiz de instrução – de terem tentado invadir a esquadra para libertar o jovem detido. Ficaram sujeitos a TIR (termo de identidade e residência) indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionário, injúria, dano, tirada de presos e ofensa à integridade física. Mas a PJ demonstrou que a narrativa não era verosímil, face aos testemunhos e provas recolhidas, bem como em parte da investigação anteriormente feita pela IGAI, no âmbito dos processos disciplinares. Foi a versão dos jovens que vingou na investigação, baseada em 3 dezenas de testemunhos, relatórios médicos e cruzamento de informações recolhidas.
Tudo começou com a detenção, que o MP concluiu ter sido arbitrária e violenta no bairro do jovem Bruno Lopes (não na sequência do apedrejamento por parte deste contra uma viatura da polícia, como contou a PSP), levado para a esquadra pelas 14 horas do dia 5 de fevereiro de 2015. Ao contrário do descrito nos autos de notícia da PSP, Bruno não resistiu à detenção nem agrediu os polícias. Segundo o relato deste, os agentes encostaram-no a uma parede, de braços e pernas abertos e disseram-lhe “Estás a rir de quê, macaco? Encosta-te aí à parede!”. A seguir, espancaram-no violentamente e caiu no chão a sangrar da boca e do nariz.
A Associação Moinho da Juventude (que desenvolve ali projetos de inclusão social) alertou amigos, entre os quais Flávio Almada e Celso Barros, conhecidos (até da polícia) por ativos mediadores da associação. Seis deles (não 20 a 25, como contou a PSP) dirigiram-se à esquadra para saberem da situação de Bruno. O MP diz que, sem que fossem provocados, os agentes começaram a agredir os jovens, arrastando-os para a esquadra enquanto gritavam palavras de ódio racial. Dois deles ainda conseguiram fugir por entre as estreitas ruas do bairro. Ficaram Flávio, Celso, Paulo e Miguel. E um outro elemento, Rui Moniz, que estava nas imediações, a sair duma loja de telemóveis ao lado da esquadra, acabou por ser também arrastado para dentro pelos polícias. Um dos agentes, apontando para Flávio, exclamou para os seus colegas: “Apanhem aquele que tem a mania que é esperto”. E, indo atrás dele, espancou-o com o bastão. Algemados, foram atirados para o chão da esquadra. E ouviram dizer a um dos polícias: “Vão morrer todos, pretos de merda!”. Pontapés em todo o corpo, socos, bofetadas, incluindo na cabeça, pisadelas, tiros com balas de borracha. Rui Moniz, que teve um AVC aos 9 anos e sofre de paralisia na mão direita, gritava por ajuda, mas era ainda mais agredido. Gozando, um dos agentes humilhou-o:
“Então não morreste (do AVC)? Agora vai dar-te um que vais morrer. Ainda por cima és pretoguês filho da puta!”.
Os 6 estiveram detidos dois dias, em que, segundo o MP, foram humilhados, vítimas de enorme violência física e psicológica da parte de policiais dominados por sentimentos de xenofobia, ódio e discriminação racial. Uma agente a quem Rui pedia que o salvasse respondeu: “Não é nada comigo”. Outro agente dizia (apoiado pelos colegas), olhando para os 6 jovens do chão:
“Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação. Se eu mandasse vocês seriam todos esterilizados.”.
Ou, como relataram ainda os jovens, declarava outro agente:
“É melhor irem para o ISIS”, “vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda!”.
***
É bom que o tribunal tire tudo a limpo e faça justiça punindo quem deva ser punido e absolvendo que o deva ser. De facto, é inadmissível a prática de atos violentos e os doestos de xenofobia, racismo e aniquilação de raça ou bairro. Todavia, questiono o Estado pela delapidação da falta de autoridade das polícias e a leveza com que se ilibam preliminarmente as recorrentes agressões juvenis. A hipótese de provocação não se pôs ao MP? E foram suficientes os testemunhos dos jovens sem o contraditório da PSP? E a nota da PGDL expõe demasiado a PSP!... Isto não tranquiliza as populações, que precisavam de confiar nas forças da ordem.
2017.08.01 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário