segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Afinal, o que separa os anglicanos dos católicos no culto mariano?

Depois da reflexão sobre a relevância de Maria e do culto que lhe é prestado em algumas Igrejas da Reforma, com ênfase na Comunhão Anglicana, será conveniente ver quais os principais pontos de tensão.
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No atinente ao culto, os anglicanos centram o culto na Trindade. O louvor, a adoração e as orações são todas feitas em direção a Deus, pela mediação Cristo. Porém, enquanto, entre os católicos – que também centram o culto na Santíssima Trindade, sobretudo dirigindo-se ao Pai, por Cristo na unidade do Espírito Santo (o culto de adoração ou latria) – estabeleceu-se com alguma autonomia, embora não absoluta, a prática de se dirigir orações a Maria (em jeito de veneração especial ou hiperdulia) e aos demais santos (veneração simples ou dulia) tal prática é inexistente na Igreja anglicana. Nesta, a compreensão das Escrituras só permite orar a Deus. Todavia, no quadro da doutrina da comunhão dos santos, não há problema em aceitar que os Santos na glória orem e intercedam pela Igreja militante, mas a sua oração é vista como uma intercessão no sentido lato ou genérico e não no sentido estrito ou específico. É uma leitura que infere que, mesmo na glória, os santos continuam a ser ontologicamente seres humanos (certíssimo) e, como tal, desprovidos de omnisciência ou omnipresença. Não creem, portanto os anglicanos que os santos possam tomar ciência das orações a eles dirigidas (muitas delas mentais) pelos fiéis na terra.
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Um outro ponto tem a ver com os dogmas marianos. Há quatro dogmas marianos aceites na Igreja romana: a Maternidade Divina, a Virgindade Perpétua, a Assunção e a Imaculada Conceição. São dogmas, regra geral, questionados pelas denominações protestantes mais jovens. Porém, se recuarmos no tempo, são compreendidos e aceites, se lidos numa outra ótica. Assim, o dogma da Maternidade Divina é aceite sem qualquer dúvida por todas as Igrejas da primeira Reforma (Anglicanos, Luteranos e Calvinistas) quando lido no contexto original. A compreensão da Reforma situa a fórmula teotokos no quadro do debate cristológico e não no debate mariológico. Neste aspeto, não há qualquer dificuldade em crer e proclamar que Maria não foi mãe de mero homem, mas mãe de Deus. Ela não transportava no ventre alguém que possuía apenas a natureza humana, mas era portadora de Deus. Nestes termos, o Verbo divino repousava e desenvolvia-se humanamente no seu ventre. A leitura da Reforma sustenta que o contexto da declaração aponta para o realce da dignidade do Filho e não tanto da Mãe.
Durante os 5 primeiros séculos da Igreja, não havia muitas teorias sobre como Jesus era tanto Deus como homem. Alguns enfatizavam-Lhe a divindade, outros a humanidade. Entretanto, o Concílio de Éfeso, em 431, declarou Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Por conseguinte, afirmou que Maria não só é Mãe de Cristo, mas também Mãe de Deus. Se dizemos que Maria não é Mãe de Deus, então Jesus Cristo não é Deus e nós não estamos salvos. O título diz, na verdade, mais sobre Jesus Cristo do que sobre Maria. Maria é, pois, realmente a Mãe de Deus se estiverem cumpridas duas condições: ela é a mãe de Jesus e Jesus é Deus.
O dogma da Virgindade Perpétua apresenta uma dificuldade maior para as Igrejas reformadas. A leitura comum na família protestante histórica é que houve um tratamento equivocado da palavra “virgem”. Há, no Antigo Testamento, uma profecia acerca da “virgem que conceberá e dará a luz a um filho”. Todos os cristãos entendem que este versículo se refere, prefigurando-o, ao nascimento de Jesus. Mas a palavra “virgem”, que surge no contexto hebraico, é transferida sem qualquer advertência para o contexto grego onde será transformada em dogma. Segundo os exegetas, o termo hebraico usado para “virgem” significa “jovem” ou “donzela”. O que não quer dizer que Maria não fosse “virgem” no sentido “físico”, mas apenas que era a “jovem” que daria à luz o Salvador. As duas verdades estavam ligadas. Esta visão judaica foi esquecida e outra leitura (a grega) passou a ser usada para entender a palavra “virgem”. Entre os gregos, a virgindade associava-se mais à ideia de alguém “intocado” ou mesmo “sem mácula para o sacrifício”. A chave hermenêutica grega não observa a juventude, mas o estado físico. Em função dessa apropriação do texto bíblico a partir da ótica helénica, a Igreja sempre afirmou a virgindade de Maria. Embora para os reformados históricos, incluindo os anglicanos, os textos teológicos e/ou litúrgicos oficiais, sempre se refiram a Maria como a Virgem Maria, contudo a leitura protestante da sua virgindade não passa pela vertente fisiológica, nomeadamente post partum (os protestantes sempre admitiram que Maria teve outros filhos, o que os católicos não aceitam), mas acentua a vertente da pureza e da castidade – marcas que Maria sempre preservou. Aliás a associação do sexo com a impureza é rejeitada entre os protestantes e, em certa medida, pelos católicos. Todavia, o argumento mais forte para os reformados não é o exegético. O texto de Isaías, para a tradição protestante, salienta o Filho de Deus e não o papel da jovem que o conceberia. Na história de Israel, vários homens foram chamados por Deus para um papel especial e a marca do seu chamamento foi a miraculosidade do nascimento. Foi assim com Isaac, Samuel, Jacob, Esaú, Sansão, João Batista, etc. Ora, o facto de terem todos mães incapazes de gerar apenas exaltava o filho como enviado por Deus para uma missão especial. O dogma da virgindade de Maria também exalta, portanto, o Filho.  
Já o dogma da Assunção é universalmente rejeitado entre os reformados, mas “relido” entre alguns anglicanos. Para um segmento do anglicanismo, a assunção de Maria ao céu é aceite e vista como um quadro que descreve o que ocorreu com todos os que morreram em Cristo e que deverá suceder com os demais cristãos – o que a liturgia católica também releva. Afirmam alguns anglicanos que Maria foi assunta aos céus e coroada, mas negam que a corporeidade da sua assunção (vd Bula Munificentissimus Deus, de Pio XII, de 1 de novembro de 1950) e sustentam que ela recebeu a coroa que também hão de receber todos os cristãos. É por isso que o Próprio do dia refere o facto de ter sido ela “chamada” à presença de Deus, o que ocorrerá com todos nós.
O último dogma, o da Imaculada Conceição, é universalmente rejeitado pelos reformados. A leitura comummente aceite é a de que Maria também possuía a mácula do pecado original e que, como tal foi perdoada e salva pela morte vicária e expiatória de Jesus. Ela não era “cheia de graça” como fazia crer o texto da Vulgata (que inspirou a reflexão escolástica), mas “agraciada”, como se lê, segundo eles, no texto grego. Ou seja, Maria é um recetáculo da graça que a atinge imerecidamente, não possuindo, por causa da ausência da mácula original, a graça em si mesma.
Na verdade, os anglicanos (tal como os reformados e ortodoxos) entendem que estes dois últimos dogmas possuem três grandes problemas: a falta de catolicidade do testemunho da Igreja; a falta de catolicidade na proclamação destes dogmas; e a sua circunscrição à Igreja Romana. Assim como se encontram Padres da Igreja e teólogos que defendem ambos os dogmas, também se encontram luminares da Igreja que jamais assinariam tais declarações. Ou seja, a Imaculada Conceição e a Assunção Corporal não foram universalmente aceites por testemunho inequívoco da Igreja, existindo este ultimo apenas em textos pseudo-epigráficos e em legendas mais antigas. Por outro lado, para o entendimento anglicano (e também reformado e ortodoxo), estes dogmas representam a declaração duma parte da Igreja Católica de Cristo, tal como apenas a Igreja Romana assim compreende, define e aceita. Ficaram de fora da discussão as demais tradições cristãs. E, por isso, os principais teólogos do século XX referiram estas declarações dogmáticas como complicadoras para o diálogo ecuménico, que, não obstante, em boa hora encetado, precisa do esforço de todos. Depois, na base da discussão está o conceito espelhado na redação impositiva dos textos das Bulas Ineffabillis Deus (nn. 42 e 45) e Munificentissimus Deus (nn. 45 e 47). Segundo a bula de Pio IX (de 8 de dezembro de 1854) e a de Pio XII, esta doutrina “deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis”. Ora, exigir a crença na Imaculada aos “fiéis” implica um peso grande sobre a cristandade, além de (entendem os anglicanos) um juízo de valor contundente, que só contribui para cindir mais a ferida que existe no Corpo de Cristo.
Todavia, os anglicanos lamentam que a pessoa de Maria seja completa e deliberadamente esquecida na maioria das comunidades que surgiram no decurso da Reforma protestante do século XVI. No entanto, a Bem-aventurada Virgem Maria ocupa lugar especial na Comunhão anglicana; é honrada como Bem-aventurada; e é honrada como Virgem e como Mãe de Deus. Porém, como diz o Rev. Luiz Caetano Teixeira, “a evocação de Maria entre os anglicanos, em sua maioria, é no sentido de tê-la como referência e modelo, mas não como advogada ou cooperadora na Graça”.

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Há, pois, entre os anglicanos e entre os cristãos reformados, espaço relevante dedicado à pessoa da Virgem Maria. Porém, este espaço tende a ser menor do que o dado pela Igreja romana. Por outro lado, no anglicanismo e nas demais igrejas reformadas, os santos, em geral, e Maria, em particular, são exemplos de vida para todos os cristãos. O maior exemplo desta postura dentro da liturgia anglicana é a oração adicional presente à pg 208 do LOC que diz:
Ó Deus, Rei dos Santos, nós te louvamos e glorificamos o teu Santo Nome por todos os teus servos que já encerraram a sua carreira em tua fé e temor; pela bendita virgem Maria, pelos santos patriarcas, profetas, apóstolos e mártires e por todos os demais teus servos justos, tanto os conhecidos como os desconhecidos; e te rogamos que nós, estimulados por seus exemplos, ajudados por suas orações e fortalecidos por sua comunhão, sejamos também participantes da herança dos santos na luz; pelos merecimentos de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.”.
Estamos diante dum resumo do que afirma a tradição anglicana. Os santos são vistos como exemplos que fortalecem a nossa vida e como intercessores (mesmo que orem genericamente) junto ao Pai. Esta doutrina baseia-se, acima de tudo, na doutrina histórica da “comunhão dos santos” e possui vasta aceitação em todos os seguimentos da comunhão anglicana.
Enfim, devemos reconhecer que, por trás de toda dificuldade em discutir e refletir sobre os grandes temas da salvação, há uma história de ódio, de desamor, de intriga e de sofrimento. Não é fácil que estas parcelas separadas (por falta de humildade) do corpo de Cristo reconheçam a sua porção de culpa na separação. Mas, ao menos, devemos olhar para o Colégio Apostólico com outros olhos. Eram homens diferentes, com diferentes panos de fundo origens e temperamentos, mas tinham duas coisas em comum: o desejo de cumprir a Missão que o Senhor lhes dera e a presença de Maria entre eles. Na verdade, assumiram a leitura do testamento de Jesus no alto da cruz, pois, em suas últimas palavras, Jesus disse a João, o discípulo amado, “Eis aí tua mãe”, e a Maria: “Eis aí teu filho” (Jo 19,25.26). E ficou a bater-lhes na cabeça o conselho da Mãe em Caná da Galileia: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).

2017.08.27 – Louro de Carvalho

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