segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Uma leitura do Auto da Cananeia de Gil Vicente à luz do Evangelho


Trata-se de uma peça elaborada a pedido da “muito virtuosa e nobre senora dona Violante” e é representada perante a mesma, a 1534, no Mosteiro de Odivelas. É considerada por muitos críticos como a última obra religiosa de Gil Vicente, baseada no Evangelho da Cananea.
Aparecem em cena três pastoras que encarnam as alegorias das três Leis: Silvestra, a lei da Natureza; Hebreia, a lei da Escritura; e Veredina, a lei da Graça. Posteriormente, surge Cristo que ensina o “Pater Noster aos Apóstolos.
A restante peça representa a história de uma cananeia, estrangeira, cuja filha está possuída pelo demónio e que vem junto de Cristo a pedir a libertação daquela. Perante uma oração de Cananeia, Cristo acaba por ceder à vontade da mulher, que declama:
Ajudai-me a dar louvores e graças ao Redentor.
Assim, o termo desta obra é o valor da oração, unindo-se assim a cena do Pater Noster à cena da Cananeia.
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Por volta do ano de 1534, Gil Vicente, após longo período de entrega a composições profanas (comédias, farsas, tragicomédias), volta ao teatro religioso, com Mofina Mendes e Cananeia, dois autos de cariz doutrinário (António José Saraiva integra-as na categoria de “Mistérios”), que entram na Compilação de 1562 como “peças de devoção”, junto às primeiras composições religiosas do dramaturgo. O facto intrigante de Vicente ter sido movido novamente por um impulso religioso pode justificar-se quer por inclinações pessoais quer por atendimento a solicitações. Se o auto de Natal Mofina Mendes contém uma rubrica inicial que apenas informa ter sido “representada ao excelente príncipe e muito poderoso rei dom João terceiro”, Cananeia foi motivada
“Por rogo da muito virtuosa e nobre senhora dona Violante, dona abadessa do muito louvado e santo convento do mosteiro de Oudivelas, aqual senhora lhe pediu que por sua devação lhe fizesse um auto sobre o evangelho da Cananea”.
Porém, o atendimento a solicitação não quer dizer que, no final da vida, Vicente não se tenha interessado pessoalmente pela temática devocional. Talvez até o dramaturgo acreditasse que ainda tinha algo a dizer em seu teatro religioso tardio. E, se tinha algo dizer, disse-o de forma nova. Com efeito, António José Saraiva afirma que no teatro religioso tardio de Gil Vicente, em especial na Cananeia, “a religião não é tratada do ponto de vista do destino sobrenatural do homem como no Auto da alma, mas humanamente, como moral prática” (SARAIVA, 2000, p. 40). Ou seja, o autor terá descido das alturas do além imaginado na trilogia das Barcas para atentar no homem em si, com a sua potencialidade moral e a sua capacidade de redenção.
Retornando ao teatro devocional no final da vida, quer em composições originais, quer na reelaboração de textos antigos, ora revisitado pelo crivo da maturidade, o dramaturgo, pelo menos nas duas peças que escreveu antes da morte em 1536, projetou situações e personagens em antítese: Mofina Mendes é a negação da Virgem Maria e a Cananeia é a antonomásia da perseverança; e os aldeões que não acodem ao rogo da oferta de lume às candeias de José opõem-se aos pastores que seguem o anjo a Belém. No todo, os dois autos são versões contrárias de sentimentos humanos: a negligência e a perseverança.
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Se o Auto de Mofina Mendes espelha a mistura de géneros, à laia do que se fazia ao tempo noutros reinos, o Auto da Cananeia, menos propenso à mistura de géneros, tem uma fonte genuinamente bíblica: quando se sugere que dona Violante, abadessa do mosteiro de Odivelas, pediu a Gil Vicente a representação do “evangelho da Cananeia”, a sugestão vinha de excertos de originais bíblicos, o Evangelho de Mateus (15,21-28) e o de Marcos (7,24-30). No primeiro, uma mulher cananeia roga a Jesus por sua filha endemoninhada, o que ele inicialmente recusa, aduzindo não ter sido enviado “senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. No segundo, trata-se de mulher grega, de origem siro-fenícia, a fazer o mesmo rogo, com igual recusa da parte de Jesus, insinuando a condição de estrangeira: “não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. Em ambos os textos, é pela fé e perseverança da mulher que é salva a filha amaldiçoada.  
Cananeia é uma peça menos alegórica que Mofina Mendes, porém, cheia de potencialidades espirituais e duma análise evocativa do posicionamento da e sobre a redenção. Começa com a alegoria das três pastoras – Silvestra, Hebreia e Veredina –, que representam respetivamente os pagãos, os hebreus e a Igreja. Silvestra diz a respeito do povo gentio, a considerar que se trata de gente perdida:
“Serra que tal gado tem/ não na subirá ninguém” (Cananeia 26-27).
Sobre o povo judeu, que caiu em perdição ao longo dos séculos diz Hebreia:
“Os patriarcas primeiros/ eram gados celestiais/ ovelhas santos carneiros/ e os profetas cordeiros/ e os d’agora lobos tais” (Cananeia 63-67).
E, por sua vez, diz Veredina, a respeito dos cristãos da Igreja:
“Um só Deus que no céu mora/ ele m’enviou agora/ das alturas cá em terra/ pera ser flor dessa serra” (Cananeia 87-89).
O papel de cada uma das pastoras alegóricas será elucidado, quando o dramaturgo tecer as suas considerações igualmente alegóricas sobre a origem estrangeira da Cananeia. A história da mulher que pede a Cristo que liberte o corpo da filha dos demónios é, na versão do mestre português, precedida de dois quadros: um diálogo entre Satanás e Belzebu, em que o primeiro lamenta a sua inépcia em tentar Cristo no deserto e o segundo noticia os tormentos que impõe à filha da Cananeia; e um diálogo entre Cristo e os apóstolos, em que Ele ensina o valor da oração verdadeira e contrita. Portanto, o episódio da estrangeira não pertencente ao redil das “ovelhas perdidas da casa de Israel”, como diz Marcos, é antecipado de quadros dramáticos que deverão explicar o móbil central do auto. Gil Vicente parece insinuar, assim, um diálogo em torno do tema da “ovelha perdida”, tópico frequente nos evangelhos, em especial na totalidade do capítulo 15 do Evangelho de Lucas, que apresenta a sequência de três parábolas sugestivas da misericórdia (ou uma parábola com três topos, como querem alguns): a ovelha perdida (Lc 15,3-7), que também consta em Mt 18,10-14 e no Evangelho apócrifo de Tomé; a dracma perdida (Lc 15,8-10); e a história do Pai (Lc 15,11-32) que tinha dois filhos (o filho perdido e reencontrado e o filho mais velho que não aceitou o reencontro do irmão). Nessa “trilogia da redenção misericordiosa” apresentada por Lucas, em que Jesus responde aos que o acusam de receber pecadores e comer com eles, depreende-se o tema comum do penitente arrependido que retorna a Deus, por intermédio de narrativas que envolvem perda, busca e reencontro. São narrativas de pessoas, animais e objetos perdidos que, reencontrados, dão sentido novo à vida daquele que os perdeu, metaforizando o regozijo de Deus pelo retorno do homem: “há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende”, sentencia Jesus, na sua exegese do caso da dracma perdida (Lc 15,10). A “trilogia da redenção misericordiosa” de Lucas (perda, busca e reencontro como motivações narrativas) constitui uma sequência doutrinal de feição teológica, mas com extraordinário potencial literário, como é comum a todas as parábolas bíblicas, passíveis de transposição dramatúrgica, o que Vicente intuiu. Todavia, é preciso considerar que, metaforicamente, quando se pensa a recuperação do que foi perdido, se insinua também a salvação dos gentios e dos estrangeiros, perdidos como ovelhas desgarradas do rebanho, mas capazes de serem reencontrados.
Cananeia é a história de uma ovelha perdida e reencontrada, mas em roupagem dramatúrgica inteiramente nova. Com uma tonalidade mais grave e circunspecta, sem a sobreposição de quadros sacros e profanos, o último auto religioso do mestre português é essencialmente um exercício de releitura dramática dum fragmento do Evangelho. É uma peça de maturidade, em que Gil Vicente abandona a veia cómica e a obsessão pela sátira. José Augusto Bernardes (2006, v. II, p. 92-93) identifica a personagem central com o “lirismo do arrependimento”, caraterístico de boa parte do teatro religioso vicentino, e que se manifesta em personagens de índole penitencial, como os dignitários da Barca da Glória, a Sibila Cassandra ou mesmo a peregrina do Auto da Alma. Cananeia, antítese da vã Mofina Mendes, é mulher forte e determinada: penitencia-se, confessa-se pecadora e indigna (“confesso que sou cadela/ e de cadela nasci/ e sou mais perra que ela”: Cananeia 586-588), mas não perde a fé, mesmo diante das duras provas que Jesus lhe impõe.
Em síntese, é uma peça sobre a perseverança e o ato penitencial, evocados em função do estrangeiro e da maldição da personagem: cananeia ou grega, de origem siro-fenícia, como se lhe referem respetivamente os evangelhos de Mateus e Marcos. Gil Vicente parece ter optado pela versão de Mateus, pensando que a referência explícita à etnia da personagem poderia dar-nos a compreensão mais notória da sua maldição. Os cananeus terão sido um dos sete povos, ou divisões étnicas, expulsos pelos israelitas após o Êxodo, o que fez cair sobre eles a calamidade da traição, já que recusaram unir-se aos irmãos mais velhos nas terras de Ham.
A cananeia não é a única voz, nos evangelhos, do estrangeiro amaldiçoado, mas espiritualmente hábil, qual ovelha perdida mas reencontrada na presença de Cristo. Também o caso da samaritana no poço de Jacob, narrado em João (4,4-26), evidencia a personagem que, mesmo estranhando o facto de Jesus lhe dirigir a palavra, O reconhece como Messias. O centurião romano (Mt 8,5-13), estrangeiro e gentio que roga a Cristo que lhe cure o servo paralítico (o que diz a célebre sentença “Não sou digno de que entreis em minha morada”) será outro modelo de redenção adventícia, compreendendo a grandeza do Messias, mesmo não sendo de Israel e confessando-se um adorador crente, a ponto de Jesus, ao reconhecer-lhe a fé, se admirar: “Não encontrei semelhante fé em ninguém de Israel” (Mt 8,10).
O estrangeirismo amaldiçoado da mulher e cananeia já nos é antecipado, no auto vicentino, pelo prólogo das três pastoras: a pastora dos gentios, a dos hebreus e a dos cristãos. Cananeia é gado gentio. A fé e a determinação da personagem central, portanto, são plenamente potencializadas em função da sua típica persistência de ádvena (se ganhou coragem, leva tudo por diante), em função da sua pertença a um “gado estrangeiro”, perdido, aos cuidados duma pastora silvestre – a Natureza – que, no prólogo do auto, lhe sentencia: “Serra que tal gado tem/ não na subirá ninguém” (Cananeia 26-27). Mais adiante, os 47 versos do discurso de Belzebu (Cananeia 481-528), no confronto entre as diversas personagens em cena (a estrangeira, Cristo, os apóstolos, os demónios), mostram algo altamente revelador e confirmador da sentença da pastora Silvestra, ou seja, o estrangeirismo amaldiçoado, intensificado por uma fatalidade trágica, determinada pelo nascimento, pelo destino e pela astrologia: “E esta moça de Canão/ e filha desta senhora/ foi nascer na conjunção/ que reinava a nossa hora” (Cananeia 515-519). Os 49 versos da resposta da estrangeira (Cananeia 584-633), o auge da profundeza doutrinária do auto, a confirmar a ainda mais longa peroração de Cristo nos 73 versos sobre a natureza contemplativa da oração (Cananeia 368-295), revelam a síntese da peça e a verdade sentenciadora de Vicente: a felicidade no reencontro da ovelha perdida. Não basta a Natureza, a Lei é insuficiente e satisfaz plenamente a Graça.
Cananeia é, pois, um auto sobre a confissão e o arrependimento, conforme se depreende do discurso contrito da personagem central (temas já abordados na trilogia das Barcas e no Auto da alma), mas é, sobretudo, uma peça sobre o direito dos amaldiçoados em se redimirem. Em síntese, um auto sobre a recuperação do que foi perdido, a exemplo da “trilogia da redenção misericordiosa” exposta no capítulo 15 de Lucas (ovelha perdida, dracma perdida e filho pródigo), em que a sequência “perda, busca e reencontro” move o sentido mais profundo da recuperação do perdido. Por outras palavras, é a proposta de salvação dos gentios e estrangeiros (os agrestes e selvagens pastoreados por Silvestra), representados por cananeus, gregos, samaritanos e romanos nos evangelhos. E nisto, Cananeia identifica-se com o Auto de Mofina Mendes, quando este põe em cena os que se acharam e os que se perderam, o gado perdido e o gado reencontrado. À mulher cananeia, que se reencontra, nada é oferecido, senão o estigma do estrangeirismo, condição oposta à dos aldeões de Mofina Mendes, que se perdem, mas a quem tudo é oferecido.
Gil Vicente, que ingenuamente creu na conversão pacífica dos judeus ao cristianismo, parecia insistir, em seu último discurso religioso, na salvação dos estrangeiros, como estipula o desfecho do Evangelho de Mateus: “fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28,19). Propondo a dramatização das coisas perdidas estruturada nos tópicos da perda, procura e reencontro, o nosso dramaturgo, no seu teatro religioso tardio, parece já não disposto à investigação das coisas do além, como fizera na trilogia das Barcas, mas consciente da universalidade do Evangelho. Mais que um testemunho sobre a aceitação ou a recusa dos convidados e eleitos, as duas peças finais de seu acervo devocional propõem uma acutilante reflexão sobre a aceitação ou a recusa dos que não parecem ter sido convidados ou eleitos (mas que o são), ou seja, os gentios, os que não são das ovelhas perdidas da casa de Israel. E, de forma devota, Vicente, no final da vida, embora recebendo a incumbência de terceiros, mostra-se pessoalmente interessado no retorno à temática devocional. De facto, no teatro religioso vicentino, o desfecho é sempre a vinda de Cristo, seja o Cristo da Natividade, seja o Cristo Morte e da Ressurreição; e, nesse sentido, o mal faz necessariamente brilhar o plano da salvação. Ora, a considerar tudo isso na totalidade do primeiro teatro religioso de Vicente, o mestre, depois do seu longo percurso no teatro profano, tinha algo novo a dizer e a dizer de forma nova: as ovelhas perdidas e reencontradas são ainda mais amadas por Deus do que as ovelhas que jamais se perderam.
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Deve recordar-se o facto de o dramaturgo ir perdendo a proteção real, no quadro da perseguição aos judeus e à iminência do estabelecimento da Inquisição (que Dom Manuel pedira e cujo pedido ao Papa Dom João III reiterara). Vicente usara o prestígio ganho para criticar acerbamente o clero, a nobreza e os magistrados e defender a pureza dos valores religiosos e a riqueza dos valores humanistas. E, em 1531, em carta ao rei, defendeu os cristãos-novos, a quem atribuíram a culpa do terramoto de Santarém; e, no Auto da Índia, apresentou a visão antiépica da expansão.
Será, pois, segundo alguns, a Cananeia a voz lancinante do decrépito dramaturgo a pedir contemporização futura para os cristãos-novos e talvez para si!

2017.08.21 – Louro de Carvalho

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