Trata-se de uma peça
elaborada a pedido da “muito
virtuosa e nobre senora dona Violante” e é representada perante a
mesma, a 1534, no Mosteiro de Odivelas. É considerada por muitos críticos como a
última obra religiosa de Gil Vicente, baseada no Evangelho da Cananea.
Aparecem
em cena três pastoras que encarnam as alegorias das três Leis: Silvestra, a lei da
Natureza; Hebreia, a lei da Escritura; e Veredina, a lei da Graça. Posteriormente,
surge Cristo que ensina o “Pater Noster aos Apóstolos.
A restante peça
representa a história de uma cananeia,
estrangeira, cuja filha está possuída pelo demónio e que vem junto de Cristo a
pedir a libertação daquela. Perante uma oração de Cananeia, Cristo acaba por ceder à vontade da mulher, que declama:
“Ajudai-me
a dar louvores e graças ao Redentor”.
Assim, o termo desta obra
é o valor da oração, unindo-se assim a cena do Pater Noster à
cena da Cananeia.
***
Por
volta do ano de 1534, Gil Vicente, após longo período de entrega a composições
profanas (comédias, farsas, tragicomédias), volta ao teatro religioso, com
Mofina Mendes e Cananeia, dois autos de cariz doutrinário (António
José Saraiva integra-as na categoria de “Mistérios”), que entram na Compilação de 1562 como “peças de devoção”, junto às primeiras composições
religiosas do dramaturgo. O facto intrigante de Vicente ter sido movido
novamente por um impulso religioso pode justificar-se quer por inclinações
pessoais quer por atendimento a solicitações. Se o auto de Natal Mofina Mendes contém uma rubrica inicial
que apenas informa ter sido “representada ao excelente príncipe e muito poderoso
rei dom João terceiro”, Cananeia foi motivada
“Por
rogo da muito virtuosa e nobre senhora dona Violante, dona abadessa do muito
louvado e santo convento do mosteiro de Oudivelas, aqual senhora lhe pediu que
por sua devação lhe fizesse um auto sobre o evangelho da Cananea”.
Porém,
o atendimento a solicitação não quer dizer que, no final da vida, Vicente não se
tenha interessado pessoalmente pela temática devocional. Talvez até o
dramaturgo acreditasse que ainda tinha algo a dizer em seu teatro religioso
tardio. E, se tinha algo dizer, disse-o de forma nova. Com efeito, António José
Saraiva afirma que no teatro religioso tardio de Gil Vicente, em especial na Cananeia, “a religião não é tratada do
ponto de vista do destino sobrenatural do homem como no Auto da alma, mas humanamente, como moral prática” (SARAIVA, 2000,
p. 40). Ou seja, o autor terá descido das alturas do além imaginado na trilogia
das Barcas para atentar no homem em
si, com a sua potencialidade moral e a sua capacidade de redenção.
Retornando
ao teatro devocional no final da vida, quer em composições originais, quer na
reelaboração de textos antigos, ora revisitado pelo crivo da maturidade, o
dramaturgo, pelo menos nas duas peças que escreveu antes da morte em 1536,
projetou situações e personagens em antítese: Mofina Mendes é a negação da Virgem
Maria e a Cananeia é a antonomásia da perseverança; e os aldeões que não acodem
ao rogo da oferta de lume às candeias de José opõem-se aos pastores que seguem
o anjo a Belém. No todo, os dois autos são versões contrárias de sentimentos
humanos: a negligência e a perseverança.
***
Se
o Auto de Mofina Mendes espelha a
mistura de géneros, à laia do que se fazia ao tempo noutros reinos, o Auto da Cananeia, menos propenso à
mistura de géneros, tem uma fonte genuinamente bíblica: quando se sugere que
dona Violante, abadessa do mosteiro de Odivelas, pediu a Gil Vicente a
representação do “evangelho da Cananeia”, a sugestão vinha de excertos de
originais bíblicos, o Evangelho de Mateus (15,21-28) e o de Marcos (7,24-30). No primeiro, uma mulher
cananeia roga a Jesus por sua filha endemoninhada, o que ele inicialmente
recusa, aduzindo não ter sido enviado “senão
às ovelhas perdidas da casa de Israel”. No segundo, trata-se de mulher grega,
de origem siro-fenícia, a fazer o mesmo rogo, com igual recusa da parte de
Jesus, insinuando a condição de estrangeira: “não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. Em
ambos os textos, é pela fé e perseverança da mulher que é salva a filha
amaldiçoada.
Cananeia é uma peça menos alegórica que Mofina Mendes, porém, cheia de potencialidades
espirituais e duma análise evocativa do posicionamento da e sobre a redenção.
Começa com a alegoria das três pastoras – Silvestra,
Hebreia e Veredina –, que representam respetivamente os pagãos, os hebreus
e a Igreja. Silvestra diz a respeito do povo gentio, a considerar que se trata
de gente perdida:
“Serra
que tal gado tem/ não na subirá ninguém” (Cananeia 26-27).
Sobre
o povo judeu, que caiu em perdição ao longo dos séculos diz Hebreia:
“Os
patriarcas primeiros/ eram gados celestiais/ ovelhas santos carneiros/ e os
profetas cordeiros/ e os d’agora lobos tais” (Cananeia 63-67).
E,
por sua vez, diz Veredina, a respeito dos cristãos da Igreja:
“Um
só Deus que no céu mora/ ele m’enviou agora/ das alturas cá em terra/ pera ser
flor dessa serra” (Cananeia 87-89).
O
papel de cada uma das pastoras alegóricas será elucidado, quando o dramaturgo
tecer as suas considerações igualmente alegóricas sobre a origem estrangeira da
Cananeia. A história da mulher que pede a Cristo que liberte o corpo da filha
dos demónios é, na versão do mestre português, precedida de dois quadros: um
diálogo entre Satanás e Belzebu, em que o primeiro lamenta a sua inépcia em
tentar Cristo no deserto e o segundo noticia os tormentos que impõe à filha da
Cananeia; e um diálogo entre Cristo e os apóstolos, em que Ele ensina o valor
da oração verdadeira e contrita. Portanto, o episódio da estrangeira não
pertencente ao redil das “ovelhas
perdidas da casa de Israel”, como diz Marcos, é antecipado de quadros
dramáticos que deverão explicar o móbil central do auto. Gil Vicente parece
insinuar, assim, um diálogo em torno do tema da “ovelha perdida”, tópico
frequente nos evangelhos, em especial na totalidade do capítulo 15 do Evangelho
de Lucas, que apresenta a sequência de três parábolas sugestivas da
misericórdia (ou uma parábola com três topos, como querem alguns): a ovelha perdida (Lc
15,3-7), que também
consta em Mt 18,10-14 e no Evangelho apócrifo de Tomé; a dracma perdida (Lc
15,8-10); e a
história do Pai (Lc 15,11-32) que tinha dois filhos (o
filho perdido e reencontrado e o filho mais velho que não aceitou o reencontro
do irmão). Nessa
“trilogia da redenção misericordiosa” apresentada por Lucas, em que Jesus responde
aos que o acusam de receber pecadores e comer com eles, depreende-se o tema
comum do penitente arrependido que retorna a Deus, por intermédio de narrativas
que envolvem perda, busca e reencontro. São narrativas de pessoas, animais e
objetos perdidos que, reencontrados, dão sentido novo à vida daquele que os
perdeu, metaforizando o regozijo de Deus pelo retorno do homem: “há júbilo diante dos anjos de Deus por um
pecador que se arrepende”, sentencia Jesus, na sua exegese do caso da
dracma perdida (Lc 15,10). A “trilogia da redenção misericordiosa” de Lucas
(perda,
busca e reencontro como motivações narrativas) constitui uma sequência doutrinal de feição
teológica, mas com extraordinário potencial literário, como é comum a todas as
parábolas bíblicas, passíveis de transposição dramatúrgica, o que Vicente intuiu.
Todavia, é preciso considerar que, metaforicamente, quando se pensa a
recuperação do que foi perdido, se insinua também a salvação dos gentios e dos
estrangeiros, perdidos como ovelhas desgarradas do rebanho, mas capazes de serem
reencontrados.
Cananeia é a história de uma ovelha
perdida e reencontrada, mas em roupagem dramatúrgica inteiramente nova. Com uma
tonalidade mais grave e circunspecta, sem a sobreposição de quadros sacros e
profanos, o último auto religioso do mestre português é essencialmente um
exercício de releitura dramática dum fragmento do Evangelho. É uma peça de
maturidade, em que Gil Vicente abandona a veia cómica e a obsessão pela sátira.
José Augusto Bernardes (2006, v. II, p. 92-93) identifica a personagem central
com o “lirismo do arrependimento”, caraterístico de boa parte do teatro religioso
vicentino, e que se manifesta em personagens de índole penitencial, como os
dignitários da Barca da Glória, a Sibila Cassandra ou mesmo a peregrina
do Auto da Alma. Cananeia, antítese da vã Mofina
Mendes, é mulher forte e determinada: penitencia-se, confessa-se pecadora e
indigna (“confesso
que sou cadela/ e de cadela nasci/ e sou mais perra que ela”: Cananeia 586-588), mas não perde a fé, mesmo
diante das duras provas que Jesus lhe impõe.
Em
síntese, é uma peça sobre a perseverança e o ato penitencial, evocados em
função do estrangeiro e da maldição da personagem: cananeia ou grega, de origem
siro-fenícia, como se lhe referem respetivamente os evangelhos de Mateus e
Marcos. Gil Vicente parece ter optado pela versão de Mateus, pensando que a
referência explícita à etnia da personagem poderia dar-nos a compreensão mais
notória da sua maldição. Os cananeus terão sido um dos sete povos, ou divisões
étnicas, expulsos pelos israelitas após o Êxodo, o que fez cair sobre eles a
calamidade da traição, já que recusaram unir-se aos irmãos mais velhos nas
terras de Ham.
A
cananeia não é a única voz, nos evangelhos, do estrangeiro amaldiçoado, mas
espiritualmente hábil, qual ovelha perdida mas reencontrada na presença de
Cristo. Também o caso da samaritana no poço de Jacob, narrado em João (4,4-26), evidencia a personagem que,
mesmo estranhando o facto de Jesus lhe dirigir a palavra, O reconhece como Messias.
O centurião romano (Mt 8,5-13), estrangeiro e gentio que roga a Cristo que lhe
cure o servo paralítico (o que diz a célebre sentença “Não sou
digno de que entreis em minha morada”)
será outro modelo de redenção adventícia, compreendendo a grandeza do Messias,
mesmo não sendo de Israel e confessando-se um adorador crente, a ponto de
Jesus, ao reconhecer-lhe a fé, se admirar: “Não
encontrei semelhante fé em ninguém de Israel” (Mt
8,10).
O
estrangeirismo amaldiçoado da mulher e cananeia já nos é antecipado, no auto
vicentino, pelo prólogo das três pastoras: a pastora dos gentios, a dos hebreus
e a dos cristãos. Cananeia é gado gentio. A fé e a determinação da personagem
central, portanto, são plenamente potencializadas em função da sua típica persistência
de ádvena (se ganhou coragem, leva tudo por diante), em função da sua pertença a um
“gado estrangeiro”, perdido, aos cuidados duma pastora silvestre – a Natureza –
que, no prólogo do auto, lhe sentencia: “Serra
que tal gado tem/ não na subirá ninguém” (Cananeia 26-27). Mais adiante, os 47 versos do
discurso de Belzebu (Cananeia 481-528), no confronto entre as diversas
personagens em cena (a estrangeira, Cristo, os apóstolos, os
demónios), mostram
algo altamente revelador e confirmador da sentença da pastora Silvestra, ou
seja, o estrangeirismo amaldiçoado, intensificado por uma fatalidade trágica,
determinada pelo nascimento, pelo destino e pela astrologia: “E esta moça de Canão/ e filha desta senhora/
foi nascer na conjunção/ que reinava a nossa hora” (Cananeia
515-519). Os 49
versos da resposta da estrangeira (Cananeia 584-633), o auge da profundeza doutrinária
do auto, a confirmar a ainda mais longa peroração de Cristo nos 73 versos sobre
a natureza contemplativa da oração (Cananeia 368-295), revelam a síntese da peça e a
verdade sentenciadora de Vicente: a felicidade no reencontro da ovelha perdida.
Não basta a Natureza, a Lei é insuficiente e satisfaz plenamente a Graça.
Cananeia é, pois, um auto sobre a
confissão e o arrependimento, conforme se depreende do discurso contrito da
personagem central (temas já abordados na trilogia das Barcas e no Auto da alma),
mas é, sobretudo, uma peça sobre o direito dos amaldiçoados em se redimirem. Em
síntese, um auto sobre a recuperação do que foi perdido, a exemplo da “trilogia
da redenção misericordiosa” exposta no capítulo 15 de Lucas (ovelha
perdida, dracma perdida e filho pródigo),
em que a sequência “perda, busca e reencontro” move o sentido mais profundo da
recuperação do perdido. Por outras palavras, é a proposta de salvação dos
gentios e estrangeiros (os agrestes e selvagens pastoreados por
Silvestra),
representados por cananeus, gregos, samaritanos e romanos nos evangelhos. E
nisto, Cananeia identifica-se com o
Auto de Mofina Mendes, quando este põe em cena os que se acharam e os que se
perderam, o gado perdido e o gado reencontrado. À mulher cananeia, que se
reencontra, nada é oferecido, senão o estigma do estrangeirismo, condição
oposta à dos aldeões de Mofina Mendes, que se perdem, mas a quem tudo é
oferecido.
Gil
Vicente, que ingenuamente creu na conversão pacífica dos judeus ao
cristianismo, parecia insistir, em seu último discurso religioso, na salvação dos
estrangeiros, como estipula o desfecho do Evangelho de Mateus: “fazei discípulos de todas as nações” (Mt
28,19). Propondo a
dramatização das coisas perdidas estruturada nos tópicos da perda, procura e
reencontro, o nosso dramaturgo, no seu teatro religioso tardio, parece já não disposto
à investigação das coisas do além, como fizera na trilogia das Barcas, mas consciente da universalidade
do Evangelho. Mais que um testemunho sobre a aceitação ou a recusa dos
convidados e eleitos, as duas peças finais de seu acervo devocional propõem uma
acutilante reflexão sobre a aceitação ou a recusa dos que não parecem ter sido
convidados ou eleitos (mas que o são), ou seja, os gentios, os que
não são das ovelhas perdidas da casa de Israel. E, de forma devota, Vicente, no
final da vida, embora recebendo a incumbência de terceiros, mostra-se
pessoalmente interessado no retorno à temática devocional. De facto, no teatro
religioso vicentino, o desfecho é sempre a vinda de Cristo, seja o Cristo da
Natividade, seja o Cristo Morte e da Ressurreição; e, nesse sentido, o mal faz
necessariamente brilhar o plano da salvação. Ora, a considerar tudo isso na
totalidade do primeiro teatro religioso de Vicente, o mestre, depois do seu
longo percurso no teatro profano, tinha algo novo a dizer e a dizer de forma
nova: as ovelhas perdidas e reencontradas
são ainda mais amadas por Deus do que as ovelhas que jamais se perderam.
***
Deve
recordar-se o facto de o dramaturgo ir perdendo a proteção real, no quadro da
perseguição aos judeus e à iminência do estabelecimento da Inquisição (que
Dom Manuel pedira e cujo pedido ao Papa Dom João III reiterara). Vicente usara o prestígio ganho
para criticar acerbamente o clero, a nobreza e os magistrados e defender a
pureza dos valores religiosos e a riqueza dos valores humanistas. E, em 1531,
em carta ao rei, defendeu os cristãos-novos, a quem atribuíram a culpa do terramoto
de Santarém; e, no Auto da Índia,
apresentou a visão antiépica da expansão.
Será,
pois, segundo alguns, a Cananeia a
voz lancinante do decrépito dramaturgo a pedir contemporização futura para os cristãos-novos
e talvez para si!
2017.08.21 – Louro de Carvalho
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