segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O Evangelho da Cananeia ou da Universalidade da Salvação

A perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 15,21-28) tomada para a Liturgia da Palavra do XX domingo do Tempo Comum do Ano A é conhecida como o Evangelho da Cananeia. Porém, melhor seria que nos fixássemos na proclamação da universalidade da Salvação.
O episódio vem inserido na secção da “instrução sobre o Reino” (cf Mt 13,1-17,27), logo após a apresentação do Reino em parábolas (cf Mt 13,1-52). Segundo Mateus, a resposta dos interlocutores de Jesus à sua proposta (cf Mt 14,1-17,27) foi, em geral, uma resposta negativa. Tanto os habitantes de Nazaré como Herodes, os escribas, os fariseus e os saduceus recusaram aderir à pregação do Reino, que estava próximo.  
A perícopa proposta para proclamação e meditação na Missa desta dominga vem na sequência dum confronto entre Jesus, dum lado, e os fariseus e doutores da Lei, do outro, por mercê das tradições (cf Mt 15,1-9) relacionadas com a pureza legal e ritual em preterição da interioridade do coração para que a Lei aponta. Em rutura com os irredutíveis interlocutores, Jesus retirou-Se para os lados de Tiro e de Sídon. A recusa de Israel, povo escolhido, do acolhimento ao Reino messiânico pregado e vivido por Jesus induz que a pregação do Senhor se dirija para fora das fronteiras de Israel. Mas a comunidade dos discípulos – o grupo que escutou e acolheu a proposta do Reino – segue Jesus, que pretende repousar um pouco e seguir com a pregação.
Por isso, o episódio ocorre na região de Tiro e Sídon, cujos habitantes já conheciam a fama de Jesus, sendo que muitos já o terão escutado quer na Galileia quer a partir das suas terras, próximas da Galileia. Apresenta-se-Lhe uma “mulher cananeia” – uma expressão bíblica arcaizante que Marcos (Mc 7,24-30) preteriu em prol da mulher helénica “siro-fenícia”, pois os cananeus constituíam a população que ocupava a Palestina antes da chegada dos israelitas com Josué (século XIII aC) e sobreviveram, sobretudo no Norte, à conquista israelita, constituindo uma contínua ameaça ao monoteísmo hebraico. A mulher era da fenícia da Síria, província romana incorporada na Síria, diferente dos fenícios da Líbia ou líbio-fenícios a que se refere Estrabão.
É o caso único em que se narra uma atividade apostólica do Mestre em território pagão. Com efeito, a Fenícia gozava, na história evangélica, de particular estima das populações não israelitas, como acontecera já no Antigo Testamento, sobretudo nos tempos de David e de Salomão (cf 2Sm 5,11-25; 1Rs 17,9-16), não tanto por motivos de política de boa vizinhança, mas de abertura, embora embrionária, à revelação divina para lá dos limites de Israel. Contudo, não era, aos olhos dos judeus, uma região recomendável. De lá tinham vindo, com frequência, exércitos inimigos e muitas influências religiosas nefastas que afastavam os israelitas da fé em Javé e os levavam a correr atrás dos deuses cananeus. Jezabel, mulher do rei Acab, que potenciou o culto a Baal e Asserá (meados do séc. IX a.C., nos tempos de Elias) e que deixou memória tão má entre os fiéis a Javé, era filha dum rei de Sídon. Não admira, pois, que fariseus e doutores da Lei, defensores intransigentes da Lei, considerassem os seus habitantes e os seus deuses como “cães” (designação que tinha sentido altamente pejorativo para os judeus).
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A mulher, prostrando-se aos pés de Jesus, gritando insistentemente à boa maneira oriental, tratando Jesus pelo título messiânico de Filho de David (já encontrado em Mt 9,27, clamado pelos dois cegos) e rogando a cura da filha doente (possessa do demónio ou com sintomas equivalentes), entende que tem acesso aos benefícios do messianismo esperado por Israel. Crê que também pode aceder à salvação que Jesus veio propor. A questão que se coloca é se Jesus, passando por cima dos preconceitos religiosos dos judeus, oferecerá a salvação a esta pagã, ou seja, se uma mulher fenícia (estrangeira, inimiga, oriunda de uma região com má fama e mulher) merecerá a salvação.
A sugestão dos discípulos de a mandar embora, talvez insinuada pela própria mulher ou para se verem livres dela não surte efeito. Durante muito tempo, Jesus não responde palavra. Mas a mulher insiste. E as suas três intervenções mostram a sua ânsia de salvação e a fé firme e convicta que a anima. A designação de “filho de David” – equivalente a “Messias” e “Senhor”, “Kyrios” – com que se dirige a Jesus, lida em contexto cristão, significa uma confissão de fé. A mulher é então uma figura humana que impressiona pela fé, pela humildade e também pelo sofrimento que transparece no seu apelo.
Não obstante, surpreende, numa primeira leitura, a forma como Jesus trata a mulher que pede ajuda. Começa por passar em silêncio, aparentemente insensível aos apelos da mulher (v. 23). E, face à insistência dos discípulos, responde: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (v. 24), aliás em coerência com o que indicou aos discípulos em missão, de que não fossem “pelos caminhos dos gentios”, mas que apenas se dirigissem às ovelhas perdidas de Israel” (cf Mt 10,6). Era uma questão pedagógica: começar pelos mais próximos. Aliás, a cultura britânica acolhe o aforismo “Charity begins at home”. Por fim, ante o dramático último apelo da mulher “Socorre-me, Senhor”, responde: “Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cães” (v. 26). Jesus assume aqui e agora a mentalidade israelita de quem se julga privilegiado por Deus e com o direito de reclamar para si o exclusivo da Graça. Todavia, a atitude rude e insensível do galileu, sempre preocupado em traduzir em gestos concretos o amor e a misericórdia de Deus pelos homens, parece estranha e mesmo absurda.
Como se deixou entrever, faz sentido esta atitude de Jesus (em cuja boca tais palavras não têm a conotação pejorativa dos judeus, mas a do contraste entre o pensar israelita e o fenício), se a encararmos como uma estratégia pedagógica, destinada a mostrar o sem sentido dos preconceitos judaicos contra os pagãos e a espevitar a fé da humilde suplicante. Claro, Jesus não partilha da discriminação racial e xenófoba do judaísmo, mas deseja pôr à prova a humildade e a fé da mulher. E liderou o acontecimento de forma a demonstrar o ridículo das atitudes discriminatórias em relação aos pagãos propostas pela catequese oficial judaica. Endurecendo progressivamente a sua atitude face ao apelo da cananeia, dá-lhe a possibilidade de demonstrar a firmeza e a convicção da sua fé e prova aos judeus que os pagãos são dignos – talvez mais dignos do que esses santinhos do Povo de Deus – de se sentar à mesa do Reino. E a mulher, humilde, nem sequer reivindica equiparar-se a esse Povo eleito, bastando-lhe ficar apenas com as migalhas que eventualmente caiam da mesa (v. 27). Mas pede insistentemente a permissão do acesso à salvação que Jesus traz, em contraste com a postura dos fariseus e doutores que, encalacrados na autossuficiência e nos preconceitos, rejeitam ostensivamente a salvação que Jesus não cessa de lhes oferecer.
E, ante os discípulos, declarou-se vencido pela fé da cananeia, declarando, “Grande é a tua fé! Faça-se como desejas.”, tal como o fizera em relação à fé do centurião (cf Mt 8,10).
Jesus elogiou a fé desta mulher em contraste com a falta de fé de tantos em Israel, incluindo os nazarenos e mesmo os seus familiares, que não criam nele, pelo que não que pôde ali fazer milagres (vd Mt 13,58). E naquele instante fez-se o milagre. Foi um milagre à distância. A mulher voltou a casa cheia de fé na Palavra de Jesus; e, ao chegar, encontrou-a plenamente curada. Este milagre, apesar da aparente dureza inicial, é repleto de ternura: fala do coração de Cristo, dos planos do Pai, das suas exceções, da confiança duma mulher pagã. Em termos apologéticos, é um milagre à distância sem autossugestões e de cura instantânea; na ordem do plano de Deus, evidencia o privilégio que os judeus tiveram, mas acaba por, de igual modo, ostentar a vocação dos pagãos à salvação única de todos pela fé.
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No cume desta caminhada de afirmação da bondade de Deus e do merecimento dos pagãos que a catequese oficial de Israel desprezava, Jesus conclui: “Grande é a tua fé. Faça-se como desejas”. A exclamação de Jesus é a anuência ao facto de, na verdade, a mulher estar disposta a acolhê-Lo como o enviado do Pai e a aceitar o pão do Reino, o pão com que Deus mata a fome de vida de todos os filhos, a aceder à salvação destinada a todos os que têm o coração aberto ao dom de Deus.
Provavelmente, Mateus responde, com esta catequese, a uma situação concreta da comunidade. De facto, no fim do século I (o Evangelho de Mateus aparece na década de 80), alguns judeo-cristãos ainda tinham dificuldade em aceitar a entrada dos pagãos na Igreja. Mateus recorda que para o decisivo não é a raça, a história, a eleição, mas a adesão firme e convicta à proposta de salvação que, em Jesus, Deus faz aos homens. O texto mostra que esta proposta é para todos, sendo a comunidade de Jesus uma verdadeira comunidade universal. E o decisivo no acesso à salvação é a fé – pessoal e comunitária – com a capacidade de aderir a Jesus e à sua proposta de vida.
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Este belo texto bíblico proporciona-nos uma grande e dupla lição de vida: a da confiança nos benefícios da salvação através da fé viva e da postura humilde e persistente; e a da partilha da mesa do Reino por todos, desde que aceitem a proposta de Jesus e queiram contar com Ele e com a comunidade dos discípulos para a ultrapassagem das dificuldades.
Quando um problema nos bate à porta, seja qual for a sua origem, ficamos ansiosos para que o mesmo seja resolvido. E, às vezes, por estarmos com um problema, não conseguimos escutar a voz de Deus e parece que Ele nos abandonou, ficando muito distante de nós. Mas Deus permite os problemas para que venhamos a crescer, nos aprimoremos como pessoas e aprendamos as lições que nos podem dar os desafios da vida. Através das situações adversas, aprendemos a confiar em Deus, a buscar a Deus e a entregarmo-nos a Ele por completo e, por ele, ao próximo.
Assim, nunca podemos ter vergonha de expor os nossos problemas e, principalmente, de insistentemente clamar por socorro e ajuda, quando as coisas fogem ao nosso controlo. Muitas vezes temos vergonha de expor aquilo que nos aflige e guardamos dentro do coração, por meses e anos, uma luta que deveríamos entregar para Deus, expondo-nos perante Ele, clamando por socorro. Ficamos preocupados com o que os outros possam dizer ou pensar. A resolução do problema tem de pesar mais que a vergonha
Seremos provados. Mas é a hora de nos voltarmos para Deus, pois os momentos de prova são passageiros. Não podemos maximizar os problemas, que aos nossos olhas parecem muito maiores do que realmente são. Na verdade, “Perto está o SENHOR dos que têm o coração quebrantado e salva os contritos de espírito” (Sl 34/33,18).
O problema, a luta e a tribulação ou aflição, quando encarados como provação, como prova a ser transpassada, vencida, resulta em vitória e em produção e aumento da fé. Ora, “nós vivemos pela fé, e não pela visão” (2Cor 5,7), “porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim vem pela fé, como está escrito: O justo viverá pela fé” (Rm 1,17). E “a fé é a certeza do que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Heb11,1).
Em suma, quando nos encontramos com um problema, em vez de desesperar e achar que não há saída ou solução, devemos voltar intensamente para Deus e olhar para o problema como uma provação a ser passada para gerar uma lição, uma vitória e uma grande aprendizagem. Com isso, poderemos tornar-nos um canal de bênção para as outras pessoas, a quem podemos, através das nossas experiências, transmitir consolo e auxílio, sobretudo se elas se encontram nas mesmas condições ou em condições até muito mais adversas que aquelas em que um dia nos teremos encontrado. Precisamos de saber suportar as aflições na certeza de que as mesmas produzirão fé, e assim agradaremos a Deus e receberemos a vitória. Com efeito Pedro interpela e conforta:

“Pois que vantagem há em suportar açoites recebidos por terdes cometido o mal? Mas se vós suportais o sofrimento por terdes feito o bem, isso é louvável diante de Deus.” (1Pe 2,20).
2017.08.20 – Louro de Carvalho

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