A perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 15,21-28) tomada para a Liturgia da Palavra do XX domingo
do Tempo Comum do Ano A é conhecida como o Evangelho da Cananeia. Porém, melhor
seria que nos fixássemos na proclamação da universalidade da Salvação.
O episódio vem inserido na secção da “instrução sobre
o Reino” (cf Mt 13,1-17,27), logo após
a apresentação do Reino em parábolas (cf Mt 13,1-52). Segundo Mateus, a resposta dos interlocutores de
Jesus à sua proposta (cf Mt 14,1-17,27) foi, em
geral, uma resposta negativa. Tanto os habitantes de Nazaré como Herodes, os
escribas, os fariseus e os saduceus recusaram aderir à pregação do Reino, que
estava próximo.
A perícopa proposta para proclamação e meditação na
Missa desta dominga vem na sequência dum confronto entre Jesus, dum lado, e os
fariseus e doutores da Lei, do outro, por mercê das tradições (cf Mt 15,1-9) relacionadas com a pureza legal e ritual em
preterição da interioridade do coração para que a Lei aponta. Em rutura com os
irredutíveis interlocutores, Jesus retirou-Se para os lados de Tiro e de Sídon.
A recusa de Israel, povo escolhido, do acolhimento ao Reino messiânico pregado
e vivido por Jesus induz que a pregação do Senhor se dirija para fora das
fronteiras de Israel. Mas a comunidade dos discípulos – o grupo que escutou e
acolheu a proposta do Reino – segue Jesus, que pretende repousar um pouco e
seguir com a pregação.
Por isso, o episódio ocorre na região de Tiro e Sídon,
cujos habitantes já conheciam a fama de Jesus, sendo que muitos já o terão
escutado quer na Galileia quer a partir das suas terras, próximas da Galileia. Apresenta-se-Lhe
uma “mulher cananeia” – uma expressão bíblica arcaizante que Marcos (Mc 7,24-30) preteriu em prol da mulher helénica “siro-fenícia”,
pois os cananeus constituíam a população que ocupava a Palestina antes da
chegada dos israelitas com Josué (século XIII aC) e sobreviveram, sobretudo no Norte, à conquista
israelita, constituindo uma contínua ameaça ao monoteísmo hebraico. A mulher
era da fenícia da Síria, província romana incorporada na Síria, diferente dos
fenícios da Líbia ou líbio-fenícios a que se refere Estrabão.
É o caso único em que se narra uma atividade
apostólica do Mestre em território pagão. Com efeito, a Fenícia gozava, na
história evangélica, de particular estima das populações não israelitas, como
acontecera já no Antigo Testamento, sobretudo nos tempos de David e de Salomão
(cf 2Sm 5,11-25;
1Rs 17,9-16), não tanto
por motivos de política de boa vizinhança, mas de abertura, embora embrionária,
à revelação divina para lá dos limites de Israel. Contudo, não era, aos olhos
dos judeus, uma região recomendável. De lá tinham vindo, com frequência,
exércitos inimigos e muitas influências religiosas nefastas que afastavam os
israelitas da fé em Javé e os levavam a correr atrás dos deuses cananeus. Jezabel,
mulher do rei Acab, que potenciou o culto a Baal e Asserá (meados do
séc. IX a.C., nos tempos de Elias) e que deixou
memória tão má entre os fiéis a Javé, era filha dum rei de Sídon. Não admira,
pois, que fariseus e doutores da Lei, defensores intransigentes da Lei,
considerassem os seus habitantes e os seus deuses como “cães” (designação
que tinha sentido altamente pejorativo para os judeus).
***
A mulher, prostrando-se aos pés de Jesus, gritando
insistentemente à boa maneira oriental, tratando Jesus pelo título messiânico
de Filho de David (já encontrado em Mt 9,27, clamado pelos dois cegos) e rogando a cura da filha doente (possessa do
demónio ou com sintomas equivalentes), entende
que tem acesso aos benefícios do messianismo esperado por Israel. Crê que também
pode aceder à salvação que Jesus veio propor. A questão que se coloca é se Jesus,
passando por cima dos preconceitos religiosos dos judeus, oferecerá a salvação
a esta pagã, ou seja, se uma mulher fenícia (estrangeira, inimiga, oriunda de uma
região com má fama e mulher) merecerá a
salvação.
A sugestão dos discípulos de a mandar embora, talvez
insinuada pela própria mulher ou para se verem livres dela não surte efeito.
Durante muito tempo, Jesus não responde palavra. Mas a mulher insiste. E as
suas três intervenções mostram a sua ânsia de salvação e a fé firme e convicta
que a anima. A designação de “filho de David” – equivalente a “Messias” e
“Senhor”, “Kyrios” – com que se dirige a Jesus, lida em contexto cristão, significa
uma confissão de fé. A mulher é então uma figura humana que impressiona pela
fé, pela humildade e também pelo sofrimento que transparece no seu apelo.
Não obstante, surpreende, numa primeira leitura, a
forma como Jesus trata a mulher que pede ajuda. Começa por passar em silêncio,
aparentemente insensível aos apelos da mulher (v. 23). E, face à insistência dos discípulos, responde: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (v. 24), aliás em coerência com o que indicou aos discípulos
em missão, de que não fossem “pelos caminhos dos gentios”, mas que apenas se
dirigissem às ovelhas perdidas de Israel” (cf Mt 10,6). Era uma questão pedagógica: começar pelos mais
próximos. Aliás, a cultura britânica acolhe o aforismo “Charity begins at home”. Por fim, ante o dramático último apelo da
mulher “Socorre-me, Senhor”,
responde: “Não é justo que se tome o pão
dos filhos para o lançar aos cães” (v. 26). Jesus assume aqui e agora a mentalidade israelita de quem se julga
privilegiado por Deus e com o direito de reclamar para si o exclusivo da Graça.
Todavia, a atitude rude e insensível do galileu, sempre preocupado em traduzir
em gestos concretos o amor e a misericórdia de Deus pelos homens, parece estranha
e mesmo absurda.
Como se deixou entrever, faz sentido esta atitude de
Jesus (em cuja boca
tais palavras não têm a conotação pejorativa dos judeus, mas a do contraste
entre o pensar israelita e o fenício), se a
encararmos como uma estratégia pedagógica, destinada a mostrar o sem sentido
dos preconceitos judaicos contra os pagãos e a espevitar a fé da humilde suplicante.
Claro, Jesus não partilha da discriminação racial e xenófoba do judaísmo, mas
deseja pôr à prova a humildade e a fé da mulher. E liderou o acontecimento de
forma a demonstrar o ridículo das atitudes discriminatórias em relação aos
pagãos propostas pela catequese oficial judaica. Endurecendo progressivamente a
sua atitude face ao apelo da cananeia, dá-lhe a possibilidade de demonstrar a
firmeza e a convicção da sua fé e prova aos judeus que os pagãos são dignos – talvez
mais dignos do que esses santinhos do Povo de Deus – de se sentar à mesa do
Reino. E a mulher, humilde, nem sequer reivindica equiparar-se a esse Povo
eleito, bastando-lhe ficar apenas com as migalhas que eventualmente caiam da
mesa (v. 27). Mas pede insistentemente a permissão do acesso à
salvação que Jesus traz, em contraste com a postura dos fariseus e doutores
que, encalacrados na autossuficiência e nos preconceitos, rejeitam
ostensivamente a salvação que Jesus não cessa de lhes oferecer.
E, ante os discípulos, declarou-se vencido pela fé da
cananeia, declarando, “Grande é a tua fé!
Faça-se como desejas.”, tal como o fizera em relação à fé do centurião (cf Mt 8,10).
Jesus elogiou a fé desta mulher em contraste com a
falta de fé de tantos em Israel, incluindo os nazarenos e mesmo os seus
familiares, que não criam nele, pelo que não que pôde ali fazer milagres (vd Mt 13,58). E naquele instante fez-se o milagre. Foi um milagre
à distância. A mulher voltou a casa cheia de fé na Palavra de Jesus; e, ao
chegar, encontrou-a plenamente curada. Este milagre, apesar da aparente dureza
inicial, é repleto de ternura: fala do coração de Cristo, dos planos do Pai,
das suas exceções, da confiança duma mulher pagã. Em termos apologéticos, é um
milagre à distância sem autossugestões e de cura instantânea; na ordem do plano
de Deus, evidencia o privilégio que os judeus tiveram, mas acaba por, de igual
modo, ostentar a vocação dos pagãos à salvação única de todos pela fé.
***
No cume desta caminhada de afirmação da bondade de
Deus e do merecimento dos pagãos que a catequese oficial de Israel desprezava,
Jesus conclui: “Grande é a tua fé. Faça-se como desejas”. A exclamação de
Jesus é a anuência ao facto de, na verdade, a mulher estar disposta a acolhê-Lo
como o enviado do Pai e a aceitar o pão do Reino, o pão com que Deus mata a
fome de vida de todos os filhos, a aceder à salvação destinada a todos os que
têm o coração aberto ao dom de Deus.
Provavelmente, Mateus responde, com esta catequese, a
uma situação concreta da comunidade. De facto, no fim do século I (o Evangelho de
Mateus aparece na década de 80), alguns
judeo-cristãos ainda tinham dificuldade em aceitar a entrada dos pagãos na Igreja.
Mateus recorda que para o decisivo não é a raça, a história, a eleição, mas a
adesão firme e convicta à proposta de salvação que, em Jesus, Deus faz aos
homens. O texto mostra que esta proposta é para todos, sendo a comunidade de
Jesus uma verdadeira comunidade universal. E o decisivo no acesso à salvação é
a fé – pessoal e comunitária – com a capacidade de aderir a Jesus e à sua
proposta de vida.
***
Este belo texto bíblico proporciona-nos uma grande
e dupla lição de vida: a da confiança nos benefícios da salvação através da fé
viva e da postura humilde e persistente; e a da partilha da mesa do Reino por
todos, desde que aceitem a proposta de Jesus e queiram contar com Ele e com a
comunidade dos discípulos para a ultrapassagem das dificuldades.
Quando um
problema nos bate à porta, seja qual for a sua origem, ficamos ansiosos para
que o mesmo seja resolvido. E, às vezes, por estarmos com um problema, não
conseguimos escutar a voz de Deus e parece que Ele nos abandonou, ficando muito
distante de nós. Mas Deus permite os problemas para que venhamos a crescer, nos
aprimoremos como pessoas e aprendamos as lições que nos podem dar os desafios
da vida. Através das situações adversas, aprendemos a confiar em Deus, a buscar
a Deus e a entregarmo-nos a Ele por completo e, por ele, ao próximo.
Assim, nunca podemos
ter vergonha de expor os nossos problemas e, principalmente, de insistentemente
clamar por socorro e ajuda, quando as coisas fogem ao nosso controlo. Muitas
vezes temos vergonha de expor aquilo que nos aflige e guardamos dentro do
coração, por meses e anos, uma luta que deveríamos entregar para Deus, expondo-nos
perante Ele, clamando por socorro. Ficamos preocupados com o que os outros
possam dizer ou pensar. A resolução do problema tem de pesar mais que a
vergonha
Seremos
provados. Mas é a hora de nos voltarmos para Deus, pois os momentos de prova
são passageiros. Não podemos maximizar os problemas, que aos nossos olhas
parecem muito maiores do que realmente são. Na verdade, “Perto está o SENHOR dos
que têm o coração quebrantado e salva os contritos de espírito” (Sl 34/33,18).
O problema,
a luta e a tribulação ou aflição, quando encarados como provação, como prova a ser
transpassada, vencida, resulta em vitória e em produção e aumento da fé. Ora,
“nós vivemos pela fé, e não pela visão” (2Cor 5,7), “porque no evangelho é revelada a justiça de Deus,
uma justiça que do princípio ao fim vem pela fé, como está escrito: O justo viverá pela fé” (Rm 1,17). E “a fé é a
certeza do que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Heb11,1).
Em suma, quando nos
encontramos com um problema, em vez de desesperar e achar que não há saída ou
solução, devemos voltar intensamente para Deus e olhar para o problema como uma
provação a ser passada para gerar uma lição, uma vitória e uma grande
aprendizagem. Com isso, poderemos tornar-nos um canal de bênção para as outras
pessoas, a quem podemos, através das nossas experiências, transmitir consolo e
auxílio, sobretudo se elas se encontram nas mesmas condições ou em condições
até muito mais adversas que aquelas em que um dia nos teremos encontrado.
Precisamos de saber suportar as aflições na certeza de que as mesmas produzirão
fé, e assim agradaremos a Deus e receberemos a vitória. Com efeito Pedro
interpela e conforta:
“Pois que vantagem há em suportar açoites recebidos por terdes cometido o
mal? Mas se vós suportais o sofrimento por terdes feito o bem, isso é louvável
diante de Deus.” (1Pe 2,20).
2017.08.20 – Louro de Carvalho
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