sexta-feira, 30 de junho de 2023

Jair Bolsonaro não pode concorrer a cargos políticos até 2030

 

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil decidiu declarar, a 30 de junho, por cinco votos contra dois, a inelegibilidade, até 2030, do ex-presidente Jair Bolsonaro, por motivo de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação, por atacar, sem provas, o sistema de voto eletrónico, numa reunião com embaixadores, convocada para o efeito no Palácio da Alvorada, em julho de 2022. Por isso, Bolsonaro, que deve recorrer pra o Supremo Tribunal Federal (STF), falhará as duas próximas eleições presidenciais. Já Braga Netto, candidato a vice-presidente, em 2022, que também estava em julgamento mas foi absolvido, por sete votos.

É a primeira vez que um ex-presidente vê os seus direitos políticos retirados pelo TSE, em nove décadas de vida deste órgão fundado em 1932. No passado, Collor de Mello (presidente entre 1990 e 92) foi impedido de concorrer por ter sido destituído pelo Congresso Federal, e Lula da Silva (2003-11) foi impedido de se candidatar às eleições de 2018, por ter sido condenado em segunda instância, no âmbito da Operação Lava Jato. Ou seja, foram declarados inelegíveis, não pelo TSE, mas por outros órgãos do poder político.

Ao longo dos quatros anos que durou a presidência de Jair Bolsonaro, houve mais de 150 pedidos de destituição, na sua maioria relacionados com a crise pandémica da covid-19, que fez mais de 687 mil mortes no Brasil.

Carmen Lúcia e Alexandre de Moraes, membros daquele órgão colegial e juízes do STF, juntaram-se a outros três magistrados que haviam votado anteriormente e formaram a maioria de cinco votos em sete possíveis, para a condenação do ex-presidente. Porém, Nunes Marques, que também acumula cargos no TSE e no STF, divergiu, assim como um outro colega. “Toda a produção daquele evento no Alvorada foi feita para que a TV Brasil divulgasse e a máquina de desinformação das redes sociais multiplicasse, de forma a chegar ao eleitorado”, disse Moraes.

A quarta sessão deste julgamento quase se assemelhou a um jogo de futebol, com o Brasil de os olhos postos no placard de contagem. Os votos dos juízes a favor da inabilitação do ex-presidente iam caindo: Benedito Gonçalves (o primeiro), André Ramos Tavares, Floriano de Azevedo Marques, Cármen Lúcia (voto decisivo) e, por fim, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes. A favor de Bolsonaro votaram Kássio Nunes Marques e Raul Araújo.

A única mulher que integra o TSE foi a primeira a votar na quarta sessão do julgamento de Jair Bolsonaro. E declarou que ele fizera um discurso em “monólogo” numa reunião com os embaixadores, em julho de 2022, sem dar oportunidade aos diplomatas presentes de lhe levantarem questões.

Em linha com o que dissera Benedito Gonçalves, juiz relator do processo, a 27 de junho, Cármen Lúcia destacou a “autopromoção [e] desqualificação do Poder Judiciário” por Jair Bolsonaro, no referido encontro com os 72 diplomatas acreditados em Brasília. Com efeito, aduziu, um servidor público não pode usar o espaço público para “ser eleitoreiro” e fazer “achaques” contra ministros, como se não estivesse atingindo a própria instituição. “Não há democracia sem Poder Judiciário independente”, disse a juíza.

Uma semana após o início do julgamento (a 22 de junho), Alexandre de Moraes, presidente do TSE, acusou Bolsonaro de espalhar mentiras na reunião com embaixadores e ao longo de todo o processo eleitoral, para instigar o eleitorado contra o sistema, desacreditando o voto eletrónico.

Na argumentação do presidente do TSE, seria “ingenuidade ou hipocrisia” pensar que o encontro com os diplomatas não teria impacto, pois a ideia era que toda a máquina de desinformação, na comunicação social e nas redes sociais, chegasse diretamente ao eleitorado.

No entanto, este processo não determina a prisão do ex-presidente em circunstância alguma, porque não é uma ação de âmbito penal.

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A ação que levou à cassação dos direitos políticos passivos de Bolsonaro pelo TSE foi interposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que o acusa de “abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação.

Trata-se de um partido fundado em Lisboa, a 15 de junho de 1979, quando o Brasil ainda vivia em ditadura militar. Sob a égide do democrata Leonel Brizola, o PDT é fruto de um encontro dos trabalhistas brasileiros que viviam no Brasil com que os que estavam no exílio.

Brizola, político trabalhista que morreu em 2004 e que era grande amigo do antigo presidente português Mário Soares, foi candidato derrotado às eleições presidenciais de 1989, em que Lula da Silva e Collor de Mello passaram à segunda volta, vencida por este último.

O objetivo do PDT, como refere Renato Lessa, um dos signatários da sua carta fundadora, “era resgatar a memória e os princípios do Partido Trabalhista Brasileiro de Getúlio Vargas”.

Entretanto, os deputados do Partido Liberal (PL), formação de Jair Bolsonaro, estão a preparar um projeto de lei, a apresentar ao Congresso Nacional, para amnistiar crimes ligados ao processo eleitoral. O próprio ex-chefe de Estado reagiu, de imediato, ao resultado: “Tentaram matar-me em Juiz de Fora, há pouco tempo, com uma facada na barriga, [e] hoje levei uma facada nas costas, com a inelegibilidade por abuso de poder político.”

Todavia, é pouco provável que a tentativa do PL de salvar o seu chefe da sanção aplicada pelo TSE tenha qualquer efeito, já que pode ser vetada pelo presidente Lula da Silva.

Neste momento, a única certeza é que Bolsonaro, que, antes, sinalizara a intenção de reconquistar a presidência, em 2026, e que chegou a pedir desculpa por ter associado, indevidamente, a vacinas da covid um determinado produto nefasto, é inelegível, até 2030, e está impedido de se candidatar às eleições municipais, estaduais e federais.

Agora que o ex-presidente foi condenado, a defesa anunciou que “recebe a decisão com profundo respeito”, e que aguarda a publicação do acórdão, para decidir a melhor estratégia de recurso. Segundo O Globo, ex-presidente pode interpor recurso para o próprio TSE ou para o TSF. 

Os recursos para o TSE ou para o STF têm um prazo de três dias para serem interpostos.

O advogado de Bolsonaro, Tarcísio Vieira, inclina-se para recorrer para o STF. E, se optar por esta via, terá de enunciar os pontos em que a decisão contraria os princípios constitucionais.

Porém, sucede que três dos ministros que votaram a favor da inelegibilidade de Bolsonaro no TSE – Benedito Gonçalves, Carmen Lúcia e Alexandre de Moraes – fazem parte do STF e irão votar o recurso, a havê-lo. Por outro lado, o TSE também tem em trâmite mais 15 ações contra Bolsonaro, que poderiam decretar a sua inelegibilidade. Entre elas, destacam-se declarações do ex-chefe de Estado, a tentar pôr em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, a concessão de benefícios financeiros no período eleitoral, a campanha nos palácios do Planalto e da Alvorada, fake news contra o voto eletrónico, etc.

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Por sua vez, o Partido dos Trabalhadores (PT), de Lula da Silva, escreveu nas redes sociais que este foi “um grande dia”. “Por maioria, no TSE, Bolsonaro acaba de se tornar inelegível, por oito anos, por todos os ataques à democracia e pelos crimes que cometeu contra o nosso país.”

O ex-candidato presidencial Ciro Gomes, do PDT, partido que moveu a ação, disse que o partido “queria proteger a democracia e punir o abuso de poder político praticado por Bolsonaro” e que este “é inelegível, por império da lei”.

Como a condenação já era um cenário provável, Bolsonaro e o PL planeiam as próximas eleições municipais, em 2024, sob o mote da suposta “perseguição política”. “A ideia é que, com esse cenário, sejam transferidos ainda mais votos para quem Bolsonaro apoiar na eleição municipal do ano que vem, [pois] a intenção do PL é aumentar o número de cidades geridas pelo partido de 300 para mil”, escreveu a colunista Bela Megale, de O Globo, ainda antes do julgamento

E o partido prepara as presidenciais de 2026, sem o inelegível Bolsonaro e, talvez, sem Lula da Silva, que prometeu, em campanha, não concorrer à reeleição, mas dá agora sinais de que não vai cumprir a promessa. Por isso, a via da sucessão já começou a ser trilhada pelo PL, cujos spots publicitários das últimas semanas, nas televisões brasileiras, tornaram Michelle Bolsonaro, a ex-primeira-dama e atual presidente do PL Mulher, a protagonista. Apesar de envolvida no caso das joias sauditas desviadas pelo marido do acervo presidencial para a própria casa, continua a ser aposta pessoal de Valdemar Costa Neto, presidente do PL, que a vê com potencial eleitoral, até porque será apoiada pelo marido.

Entretanto, outros nomes se perfilam para erguer a bandeira do “bolsonarismo sem Jair”. Desde logo, o do candidato (derrotado) a vice-presidente Braga Netto, general que assumiu o cargo de secretário de Relações Institucionais do PL e que erigiu o observatório político do partido, como centro de elaboração de propostas de oposição ao governo Lula, saiu incólume do julgamento e já viaja pelo país a acompanhar Michelle. Tido como quadro relevante, concorrerá à prefeitura do Rio de Janeiro, em 2024, para ganhar corpo para a disputa presidencial de 2026.

Também são naturais “candidatos a candidatos” e estão no palco político os governadores Tarcísio Freitas e Romeu Zema, do Republicanos e do Novo, partidos na órbita do PL. Freitas conquistou o governo de São Paulo, o mais populoso e rico do país, batendo Fernando Haddad, agora ministro das Finanças, e, dado o seu perfil técnico e realizador, é visto como principal expoente da face mais palatável do bolsonarismo. Contudo, tem contra si o facto de estar em primeiro mandato, sob pressão de tentar a reeleição, ao contrário de Zema, a cumprir o segundo, e, por isso, mais livre para assumir o desafio nacional em 2026.

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Acresce que a ação relativa à dita reunião com embaixadores, para relatar fraudes sem provas, foi apenas uma de 16 investigações no TSE. Entre elas, sobressaem o uso eleitoral de programas sociais na campanha eleitoral, como a antecipação da transferência do benefício do Auxílio-Brasil e do Auxílio-Gás; o aumento do número de famílias beneficiadas pelo Auxílio-Brasil; a antecipação de pagamento de auxílio a camionistas e taxistas: programa de negociação de dívidas com bancos públicos, entre outros. Por outro lado, Bolsonaro enfrenta a denúncia do PT de uso de um “ecossistema de desinformação”, formado por perfis bolsonaristas a partir da estratégia digital do vereador Carlos Bolsonaro, além de três ações sobre uso eleitoral do desfile de 7 de setembro de 2022, nas comemorações do bicentenário da Independência.

Outras três ações apuram se o ex-presidente cometeu abuso nas viagens oficiais para o funeral da rainha Isabel II e para a Organização das Nações Unidas (ONU). E há ações a contestar a utilização do Palácio da Alvorada para a campanha eleitoral, por meio de lives e eventos, a denúncia de tratamento privilegiado da emissora de direita Jovem Pan, no período eleitoral e uma suposta campanha paralela protagonizada por empresários, pastores e entidades religiosas.

Na esfera penal, a 3 de maio, a polícia federal cumpriu mandado de busca e apreensão na casa do ex-presidente, em Brasília, para apurar a suposta fraude no cartão de vacinação contra a covid-19. E Bolsonaro está na mira da justiça, ainda, por causa do citado escândalo do referido desvio de joias sauditas e o do envolvimento nos ataques de 8 de janeiro aos Três Poderes.

Aliás, desde 2014, é suspeito de um total de 25 crimes, por omissão na pandemia, por incitamento à violação de uma deputada e por outros, pelos quais terá de responder.

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Por fim, é de sublinhar o facto de o Brasil ser um dos poucos países a possuir um tribunal superior exclusivamente para ilícitos eleitorais e o facto de, ao invés do que muitos apregoavam, haver bolsonarismo sem Bolsonaro, pois a onda chegou ao Brasil para ficar, como no resto do Mundo.

 2023.06.30 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de junho de 2023

A trágica situação atual precisa de solução humana

 

O cardeal Matteo Maria Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI), encerrou, a 29 de junho, como enviado especial do Papa a Moscovo, a sua missão de paz, depois de se ter encontrado com Yuri Ushakov, assessor presidencial para a política externa da Rússia. “Congratulamo-nos com a disponibilidade do Papa para contribuir a pôr fim ao conflito armado na Ucrânia”, indica uma nota do Kremlin.

Segundo a Santa Sé, a viagem de dois dias (28 e 29 de junho), do cardeal Zuppi – acompanhado por um funcionário da Secretaria de Estado – com uma agenda “reservada”, tinha como objetivo principal “encorajar gestos de humanidade, que possam contribuir e favorecer uma solução para a trágica situação atual”. Na verdade, é preciso “encontrar caminhos para chegar a uma paz justa”.

Na tarde do dia 28, o enviado do Papa Francisco, reuniu-se com os bispos católicos na Nunciatura Apostólica, em Moscovo, ao passo que Francisco recebeu, na Casa Santa Marta, sua residência no Vaticano, um grupo de 18 mulheres, esposas de diplomatas ucranianos em missão pelo Mundo, perante quem afirmou: “A guerra é sempre uma derrota.”

Entretanto, o Vaticano destacava a divulgação da imagem do cardeal Zuppi, em oração diante do ícone da Mãe de Deus de Vladimir, conhecido como a “Virgem da Ternura”. Este é o ícone mariano mais antigo da Rússia e está guardado na Galeria Tretiakov, em Moscovo.

O portal Vatican News admitia que o enviado do Papa se encontraria com representantes da comissária russa para os Direitos das Crianças e com o patriarca ortodoxo de Moscovo, kirill.

“A maior atenção está voltada para a questão dos mais de 19 mil menores ucranianos deportados para a Rússia, questão para a qual o presidente Zelensky tinha pedido a ajuda da Santa Sé, na audiência de maio com o Papa Francisco”, acrescentavam os serviços de informação do Vaticano.

Segundo Andriy Yermak, chefe de gabinete do presidente ucraniano, Kiev aprecia os “esforços” da Santa Sé para “ajudar na libertação de prisioneiros do cativeiro russo e no regresso a casa de crianças ucranianas deportadas ilegalmente”.

“Se o objetivo da missão for diferente, não precisamos de mediação com a Rússia. Temos uma experiência muito má a esse respeito, todos os resultados da mediação com este país são zero”, acrescentou, numa intervenção divulgada pela Embaixada da Ucrânia junto da Santa Sé.

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A viagem do purpurado a Moscovo é a segunda de duas etapas de concretização de um excecional gesto diplomático junto dos dois países em guerra, tendo a primeira ocorrido, a 5 e 6 de junho, em Kiev.

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A notícia da nomeação de Zuppi como enviado especial do Papa às capitais da guerra foi divulgada pela Sala de Imprensa do Vaticano, a 20 de maio, mas, anteriormente – no voo de regresso da viagem à Hungria –, foi o próprio Papa quem falou de uma “missão” de paz para a Ucrânia. Mais tarde, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, ao ser questionado, forneceu mais pormenores sobre a natureza da missão, especificando que ela não tinha “a mediação como objetivo imediato”, mas o objetivo de “tentar, acima de tudo, favorecer o clima, favorecer um ambiente que possa levar a caminhos de paz”. Os “interlocutores serão Moscou e Kiev por enquanto, depois veremos”, dizia Parolin, em resposta à questão sobre se Washington e Pequim poderiam participar. Nesse diálogo, garantiu, “não queremos excluir ninguém”.

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Efetivamente, durante os dois dias (5 e 6 de junho) em que esteve em Kiev, Zuppi realizou uma série de reuniões e encontros de oração, que o fizeram abordar vários aspetos de uma tragédia que já dura 15 meses. Desde a sua chegada, a 5 de junho, o cardeal – que partiu para “alcançar uma justa paz e apoiar gestos de humanidade para aliviar as tensões”, como afirmava o comunicado da Santa Sé, na véspera da primeira viagem – além de se encontrar com Zelensky, parou para rezar em Bucha, cidade a poucos quilómetros da capital que foi manchete na comunicação social, no início do conflito, pelo massacre indiscriminado de civis, deixados nas ruas ou lançados em valas comuns, à beira das quais também rezara o cardeal Krajewski, esmoleiro apostólico, quando lá passou, por vontade do Papa, que o mandou, seis vezes, à Ucrânia, em ajuda humana e cristã.

Na capital do atormentado país do Leste Europeu, o cardeal Zuppi parou para conversar com Dmytro Lubinets, comissário parlamentar ucraniano para direitos humanos, com membros do Conselho de Igrejas e com organizações religiosas. “Os resultados dessas conversas”, informava uma nota do Vaticano, no final da viagem, “como as [tidas] com os representantes religiosos, bem como a experiência direta do sofrimento atroz do povo ucraniano, devido à guerra em curso, serão levados à atenção do Santo Padre e, sem dúvida, serão úteis para avaliar os passos a serem continuados, tanto a nível humanitário como na busca de caminhos para uma paz justa e duradoura”. É o mesmo desejo, este último, que foi reiterado no anúncio da viagem a Moscovo. Com efeito, é necessário “fomentar um clima que possa levar a caminhos de paz”.

A mesma nota referia que, a 6 de junho, Sua Eminência o cardeal Matteo Zuppi, enviado do Papa Francisco, concluíra a “sua breve, mas intensa visita a Kiev”, acompanhado por um oficial da Secretaria de Estado, durante a qual teve a oportunidade de se deter em oração na antiga igreja de Santa Sofia. No final da sua missão, agradeceu cordialmente às autoridades civis pelos encontros realizados, em particular com o presidente Volodymyr Zelensky.

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Nas últimas semanas, o cardeal Zuppi foi questionado, várias vezes, à margem dos inúmeros eventos em que participou, sobre a continuidade da sua missão como enviado do Papa. Em resposta, esclareceu, na conferência de encerramento do Conselho Permanente da CEI, que é um Papa que está “envolvido até às lágrimas” no conflito que decorre há um ano e meio na Ucrânia. Na Universidade Lumsa, em Roma, para a apresentação de um livro, o mesmo arcebispo de Bolonha havia explicado que se encontraria com o Papa (então internado no Hospital Gemelli para uma operação no abdómen), para lhe dar pormenores da etapa ucraniana da russa.

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Como previsto, nos dias 28 e 29 de junho, o cardeal Matteo Maria Zuppi esteve na Rússia, onde foram registadas, a 24 de junho, tensões que levantaram temores de guerra civil. Trata-se da segunda etapa da missão que foi confiada ao presidente dos bispos italianos, que, já no passado, foi mediador dos acordos de Moçambique com a Comunidade de Santo Egídio.

A primeira imagem divulgada da missão, em Moscovo, do Cardeal Zuppi – enviado do Papa nestes dois dias – é a do purpurado de joelhos diante de um ícone mariano, a efígie da Mãe de Deus de Vladimir, conhecida como a Virgem da Ternura, o ícone mariano mais antigo da Rússia, guardado na Galeria Tretyakov, não muito distante do Kremlin, o que revela ser a oração o ato primordial da missão do presidente da CEI.

No dia 28, foi recebido por Yuri Ushakov, 76 anos, que foi embaixador nos Estados Unidos da América (EUA), de 1998 a 2008. O encontro tratou do conflito na Ucrânia e dos “possíveis caminhos para uma solução política e diplomática”, como relatado por agências russas, incluindo a Interfax, que divulgou o comentário do porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, num encontro com a imprensa, no final da manhã, após a reunião Zuppi-Ushakov: “Em geral, já afirmamos, várias vezes, que apreciamos muito os esforços e iniciativas do Vaticano, para encontrar uma solução pacífica para a crise, e saudamos esta vontade do Papa de contribuir para acabar com o conflito armado na Ucrânia”, afirmou.

De tarde, o purpurado reuniu-se com os bispos católicos da Rússia, na sede da Nunciatura, liderada por Dom Giovanni D’Aniello. Depois, foi anunciada uma celebração na catedral latina da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, sede episcopal da Arquidiocese metropolitana da Mãe de Deus, em Moscovo, agendada para o dia 29.

No dia 29, encontrou-se com a comissária para os Direitos das Crianças, Maria Lvova-Belova. A reunião teve como tema principal os mais de 19 mil menores ucranianos deportados para a Rússia, problema para cuja solução o presidente Volodymir Zelensky pedira a ajuda do Papa.

Também estava previsto um encontro, no dia 29, do cardeal Zuppi com o Patriarca Kirill. Foi Dom Giovanni D’Aniello, núncio apostólico em Moscovo, quem revelou aos jornalistas este compromisso. O bispo disse que a missão do cardeal é “identificar e encorajar iniciativas humanitárias” que permitam iniciar um caminho que leve à “tão desejada paz”. 

E, efetivamente, o purpurado encontrou-se com o Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia, Kirill. Esteve no centro do diálogo o trabalho comum das igrejas para servir a causa da paz e da justiça.

A reunião decorreu na sede do patriarcado. Sentados a uma mesa, com a presença de tradutores, colaboradores do patriarca e do núncio Giovanni D’Aniello, falaram sobre a importância de que “todas as forças do mundo se unam para evitar um grande conflito armado”.

Palavras semelhantes às compartilhadas na videochamada de Kirill e do Papa Francisco, a 16 de março de 2022, menos de um mês após o primeiro ataque em Kiev. Na ocasião, o Sumo Pontífice reiterou a importância de se unirem como pastores “num esforço para ajudar a paz” e no sentido de a Igreja não usar “a linguagem da política, mas a linguagem de Jesus”.

Segundo as agências estatais russas, Kirill saudou o cardeal, dizendo-se contente pela sua vinda a Moscovo, “acompanhado de irmãos que conheço bem”. “Apreciamos que Sua Santidade o tenha enviado a Moscovo. O senhor é o chefe de uma das maiores dioceses metropolitanas da Itália e é um famoso arcebispo, que está a realizar um importante serviço para o seu povo”, disse Kirill.

Este encontro foi o primeiro do patriarca ortodoxo com um representante do Papa, desde o início da guerra, depois de ter sido levantada a hipótese de um encontro entre ele e Francisco como o de Cuba, em 2016, concluído com a assinatura de uma declaração conjunta.

O secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin, à margem de um evento, em Roma, há alguns meses, afirmava: “Estamos num momento difícil, devemos reconhecê-lo. Mas isso não significa que estejamos no ponto zero ou que haja um gelo entre a Igreja ortodoxa russa e a católica. Há canais e tentativas para dialogar.”

No passado dia 3 de maio, o metropolita Antonij di Volokolamsk, presidente do Departamento para as relações eclesiásticas externas do patriarcado de Moscovo, visitou Roma e, na ocasião, participou, na audiência geral e saudou o Papa.  No dia anterior, havia-se encontrado com o arcebispo Claudio Gugerotti, prefeito do Dicastério para as Igrejas Orientais, para discutir “uma ampla gama de questões de recíproco interesse”. E, em meados de junho, voltou à Itália, para um encontro com o fundador da Comunidade de Santo Egídio, Andrea Riccardi.

Por fim, após o encontro no patriarcado de Moscovo, o cardeal Zuppi visitou a Catedral dedicada à Mãe de Deus, sede do bispo da arquidiocese metropolitana da Mãe de Deus, em Moscovo. Ali, presidiu a uma solene concelebração e encontrou-se com a comunidade católica, à qual transmitiu “a saudação, a proximidade e as orações do Santo Padre”.

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É prematuro tirar conclusões sobre os resultados destas jornadas rumo à consecução da paz, mas, certamente, que o esforço paciente, contra toda a tentação de desistência, dará frutos a prazo. Importa que a diplomacia funcione mais do que as armas e que, os crentes não esqueçam a força da oração disponível. A paz tardará, mas virá. A esperança não pode faltar!  

2023.06.29 – Louro de Carvalho

O racismo está arreigado e politicamente organizado no país

 

Carmo Afonso, no artigo “Um relatório internacional veio lembrar-nos de que o Chega é racista”, publicado, a 28 de junho, no jornal Público, alerta para o teor do novo relatório, sobre Portugal, da Global Project Against Hate and Extremism (GPAHE), organização não-governamental norte-americana, que identifica o Chega como “um dos 13 grupos de ódio e de extrema-direita portugueses, a par de movimentos e [de] organizações neonazis, como os Proud Boys ou os Hammerskins”. E observa que o país vive “uma situação inaceitável”, pois “todos sabemos que o Chega é racista e existe uma lei que determina a extinção dos partidos racistas”, mas o partido continua na legalidade e é a terceira força política no Parlamento.

De acordo com o dito relatório, de 27 de junho, o partido “tem trabalhado para envenenar o discurso nacional com retórica racista, anti-LGBTQ+, anti-imigração e anticigana”.

Os Portugueses não precisavam de que uma organização estrangeira viesse a terreiro afirmar a retórica racista, anticigana, antiginista e anti-imigratória do Chega. Porém, o relatório em causa constitui um reforço da convicção da generalidade dos cidadãos sobre o partido de André Ventura, reforço que “deve ser pretexto para fazermos aqui um ponto de situação relativamente ao Chega”, como escreve a ilustre jornalista do Público.

A Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece, no artigo 46.º, n.º 4: “Não são consentidas associações armadas, nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.” E, em linha com a Lei n.º 64/78, de 6 de outubro (que proíbe as organizações fascistas), a Lei dos Partidos Políticos, aprovada pela Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, prevê, no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), a extinção – por decreto do Tribunal Constitucional (TC), a requerimento do Ministério Público (MP) – de partido qualificado “como partido armado ou de tipo militar, militarizado ou paramilitar, ou como organização racista ou que perfilha a ideologia fascista”. Por isso, a jornalista lamenta: “Fala-se muito da Constituição e de fazer cumprir a Constituição, mas, para aferir da legalidade do partido, basta-nos ir à lei ordinária”.

Já na última campanha para as eleições presidenciais, a candidata Ana Gomes questionava a não ilegalização do Chega, face à sua caraterização racista e antidemocrática, pelo menos, ao nível do discurso, o que mereceu o quase silêncio dos outros candidatos.

Como assinala Carmo Afonso, ao equacionar-se a ilegalização do Chega, é usual a opinião contrária a essa medida judicial estribar-se no argumento da assinalável representatividade do partido e dos valores democráticos que, à partida, nos obrigam a tolerar valores diferentes e até opostos aos nossos”. Todavia, para a jornalista, “não está em causa a opinião de quem quer que seja relativamente à ilegalização do Chega ou sequer uma avaliação das consequências sociais dessa ilegalização”, mas avaliar “se o Chega propaga ou não uma mensagem racista”. E, a dar fé ao relatório da GPAHE, deve exigir-se à Procuradoria-Geral da República (PGR) e ao TC a assunção das suas responsabilidades, que são cumprir e aplicar a Constituição e a lei ordinária: um partido racista tem de ser extinto.

O relatório só vem clarificar e reforçar as inúmeras vezes em que se tem chamado racista ao partido de Ventura. Luís Montenegro, numa das vezes em que aparentou traçar uma linha vermelha ao Chega, garantiu que nunca alinharia “com políticas e políticos xenófobos, racistas”. Era uma referência indisfarçável ao Chega, entendida por muitos como “a clarificação definitiva da posição do PSD, em relação ao partido de extrema-direita”, o que não corresponde à verdade.

Por outro lado, aplicar a lei não é uma questão de ser a favor ou contra. Como diz a jornalista, “o Estado democrático existe com base no cumprimento da lei”.

O Chega é racista e há uma lei, consequente com a CRP, que determina a extinção dos partidos racistas. Mas o Chega figura no boletim de voto, como se a lei fosse omissa.

E não vale argumentar que o legislador exagerou ao nivelar racismo e fascismo. As consequências do incentivo ao racismo por parte de um dirigente político, enquanto nega que ele existe, são evidentes: os racistas julgam-se legitimados e impunes; o ódio cresce e habitua; as minorias sentem-se desprotegidas; e está a desenvolver-se uma sociedade polarizada, com uns a pugnar por este ideário e outros a quer erradicá-lo.

E, enquanto o relatório da GPAHE avisa que “a segurança comum e das democracias está em risco”, diz Carmo Afonso, os dois maiores partidos portugueses protegem o Chega: ao Partido Socialista (PS) convém como arma de arremesso contra a direita moderada; e o Partido Social Democrata (PSD) “corre tristemente atrás do prejuízo”. Além disso, bate-se nas teclas de que o Chega capitaliza o descontentamento da sociedade perante os políticos e de que o combate se faz com a discussão de ideias e com a apresentação de propostas.

Teremos essas posturas face ao crime público e ao crime organizado? Discurso, mais nada?!    

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A GPAHE considera o Chega, fundado em 2019, como o principal partido político de extrema-direita em Portugal e o terceiro partido mais representado no nosso Parlamento.

Desde a queda do Estado Novo, em 1974, não houve presença significativa, nas legislaturas nacionais, de um partido de extrema-direita até ao advento do Chega, cuja ascensão espoletou um aumento significativo do discurso de ódio e da mobilização de rua da extrema-direita, sob a batuta do líder “carismático e populista André Ventura”, em torno do qual o partido está altamente centralizado, a ponto de o TC lhe ter rejeitado, por várias vezes, os estatutos, por concentrar o poder, de forma excessiva, no líder.

O Chega, cujo boletim oficial é a  Folha Nacional, é anti-imigração e antimuçulmano. Ventura diz crer que “o crescimento da imigração ilegal destrói a Europa”. De facto, após o ataque terrorista islâmico extremista de Nice, em julho de 2016, Ventura propôs a redução drástica da presença islâmica na União Europeia (UE). Embora a liderança não tenha mencionado a teoria da conspiração da “Grande Substituição” da supremacia branca, Ventura já perorou sobre uma “substituição demográfica”, supostamente a surgir na Europa, que argumenta como aquela teoria da conspiração. E há manifesto ódio especial ao povo cigano da parte de Ventura e de outros membros do partido, alegando que os ciganos são “um sério problema de segurança pública”, “vivem quase exclusivamente de subsídios estatais” e estão “acima da lei”.

Em 2017, Ventura culpou uma família cigana por alegados ataques no Hospital de Beja e foi forçado a pagar multa de cerca de 3000 euros, pois o tribunal entendeu que ele “tinha o propósito de ofender para humilhar as pessoas de etnia cigana, aumentando a estigmatização e o preconceito contra a comunidade.” Na primeira onda da pandemia, defendeu um “plano de confinamento específico para a comunidade cigana”. E, em 2022, acusou os ciganos de serem “criminosos” e de “abusarem de benefícios sociais”.

A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), por várias vezes, multou Ventura, por comentários discriminatórios sobre a população cigana.

Na convenção do Chega, em setembro de 2020, Rui Roque, ex-líder do Partido Nacional Renovador (PNR) e da Associação Portugueses Primeiro, sugeriu políticas antimulher, com uma moção para remover os ovários de mulheres que abortem. Propuseram penas de prisão de dois a cinco anos para pessoas que filmem a polícia, sobretudo em casos relacionados com “grupos minoritários étnicos ou raciais.

O Chega fala  de conspiração para proibir o partido – uma possibilidade, pois tem havido pedidos de banição por ser organização racista que incorpora a ideologia fascista. Os partidários já usaram faixas com “All Lives Matter”, jogo de palavras racista com “Black Lives Matter”, chamaram à questão do racismo “uma distração” e usaram símbolos de mãos semelhantes à saudação nazi. Ao longo dos anos, albergaram-se nas suas fileiras muitos supremacistas brancos, identitários e neonazis. E, na pandemia, membros e apoiantes espalharam desinformação dos Médicos pela Verdade, grupo antivacinas e negacionista da covid.

Os membros da Chega republicaram a carta de queixa que os crentes portugueses do QAnon enviaram à PGR sobre ficheiros de computador que a polícia apreendeu ao hacker Rui Pinto, alegando que continham informações sobre círculos de pedofilia entre a elite política em Espanha e em Portugal. E o partido acredita que há uma conspiração “cultural marxista”, para mudar a sociedade e destruir a civilização europeia, impondo a cultura pró-LGBTQ+ na sociedade portuguesa – ideia avançada pelos supremacistas brancos americanos.

Também os partidários do Chega se afirmam contra a “ideologia de género”, chamando-lhe um eufemismo para os direitos LGBTQ+. E Ventura, mostrando desrespeito por muitos portugueses, afirmou que não seria presidente de todos portugueses, mas  dos “bons portugueses”, uma referência aos que não vivem de subsídios do Estado.

O Chega Juventude, liderado pela deputada Rita Matias, da fação Identitária do partido, é o ramo oficial da juventude do Chega. Embora as crenças do ramo de juventude não difiram do partido, tem membros mais radicais: alguns apoiaram a supremacia branca, a misoginia, elogiaram o salazarismo e defenderam o fascismo. Por exemplo, num tweet, que o Twitter removeu, Francisco Araújo, líder do capítulo do Porto, publicou a imagem de um soldado português a ser controlado por um soldado soviético e a de um banqueiro a apunhalar outro soldado pelas costas.

Referindo-se ao términus do regime de Salazar, Araújo escreveu: “Já se passaram 48 anos desde que: 1) a Maçonaria recuperou a carta-branca 2) estamos sob a ocupação de interesses globalistas estrangeiros 3) fomos traídos por soldados com interesses financeiros 4) escolhemos o suicídio demográfico e a subjugação económica”, sendo esta última uma referência à teoria da conspiração da “Grande Substituição” da supremacia branca. E, em janeiro de 2023, fez um discurso à liderança nacional no 5.º Congresso, em Santarém, que contou com membros da alta liderança dos partidos de extrema-direita europeus, como o eslovaco Boris Kollar (SME Rodina), o belga Tom van Grieken (Vlaams Belang), o holandês Geert Wilders (Partido pela Liberdade) e o francês Jordan Bardella (Rassemblement National).

Outros membros têm clara simpatia pelo fascismo e por sistemas de crenças antidemocráticos. João Antunes, do ramo de Coimbra, tirou fotografias frente a murais onde se lê: “És um fascista e nem sabias disso.” No seu fundo do Twitter, posou, através de Photoshop, numa imagem ao lado de Nick Fuentes, supremacista branco americano e negacionista do Holocausto. E aprendeu com os amigos americanos, fazendo tweets sobre “o estado absoluto dos cuck-servatives norte-americanos” (termo usado contra os conservadores que baniram Nick Fuentes da Conservative Political Action Conference  (CPAC) 2023.

No aniversário de Salazar, vários membros publicaram tweets, em tom positivo, a lembrar o ditador. Os membros do Chega Juventude servem como ligações a outros partidos políticos de extrema-direita. Por exemplo, João Antunes, do ramo de Coimbra, foi fotografado com José Pinto Coelho, presidente do partido Ergue-Te.

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Enfim, o relatório faz a radiografia desta e de outras organizações racistas, xenófobas e fascistas em ascensão. Por isso, a sociedade tem de se defender, com o discurso, e o Estado, com a Justiça.

Perfilham a ideologia fascista as organizações que, nos estatutos, nos manifestos e comunicados, nas declarações dos dirigentes ou responsáveis ou na sua atuação, mostrem adotar, defender, pretender difundir (ou difundir efetivamente) valores, princípios, expoentes, instituições e métodos caraterísticos dos regimes fascistas que a História regista, como o belicismo, a violência como forma de luta política, o colonialismo, o racismo, o corporativismo ou a exaltação das personalidades representativas desses regimes.

2023.06.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Riscos e incertezas do SNS condicionam a sua sustentabilidade

 

O relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) sobre o desempenho do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 2022, publicado a 28 de junho, identificando, na área assistencial, os constrangimentos da atividade dos cuidados primários como fator de pressão nos serviços de urgência e no internamento hospitalar, conclui que o SNS enfrenta “riscos e incertezas” que lhe condicionam a prestação de cuidados aos utentes e a sustentabilidade no futuro.

O número de utentes sem médico de família apresenta um crescimento superior a 30%, nos últimos dois anos, persistindo a trajetória ascendente iniciada em 2019. Assim, no final de 2022, cerca de 1,5 milhões de utentes não tinham médico de família atribuído (um aumento de mais de 355 mil utentes, em relação a 2021), correspondendo a 14,1% do total de inscritos no SNS, o que “torna menos exequível a cobertura plena da população” por estes especialistas em medicina geral e familiar. Por conseguinte, o aumento do recurso aos serviços de urgência, que daí resulta, segundo o CFP, “pressiona os hospitais e obriga-os a redirecionar recursos da atividade programada para acudir aos episódios de urgência”.

Por outro lado, o relatório avança que as consultas realizadas, em 2022, nos cuidados primários diminuíram, face a 2021, observando-se uma redução de 1,5 milhões no número de consultas médicas, bem como uma redução no volume de consultas de enfermagem, contrariando as subidas registadas nos dois anos anteriores.

O documento do órgão que avalia o cumprimento da política orçamental salienta que, no respeitante à atividade hospitalar, em 2022, se observou “um aumento contínuo da produção nas diversas áreas assistenciais”, tendo o número de consultas médicas hospitalares e de intervenções cirúrgicas programadas ultrapassado, nesse ano, os valores de 2019 e de 2021. Não obstante, esse aumento, segundo o relatório, “não foi suficiente para evitar a diminuição da capacidade de resposta do SNS nestas áreas”, pois o número de utentes em lista de espera para a primeira consulta e o de utentes em lista de inscritos para cirurgia voltaram a aumentar.

Em concreto, o número de 12,8 milhões de consultas médicas hospitalares realizadas em 2022 aumentou 2,9%, em relação a 2021. Também em 2022, foram realizadas 758 mil intervenções cirúrgicas programadas, face às 709 mil de 2021. Porém, quanto às urgências, o cumprimento dos tempos de triagem continuou a cumprir-se em “61% dos casos”, à semelhança de 2021. E, no internamento, verificou-se a taxa média de ocupação de 84%, ligeiramente superior à de 2021, que foi de 81%.

Todavia, segundo o documento, esta taxa de ocupação engloba situações discrepantes nas várias regiões do país, sendo superior a 100% no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, no Hospital de Magalhães Lemos, no Centro Hospitalar do Oeste e no Hospital de Vila Franca de Xira.

Após a retoma da atividade, em 2021, a generalidade das áreas assistenciais do SNS, 2022 caraterizou-se pela agudização de constrangimentos já patentes no período pré-pandemia.

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Em termos de contas, ressalta que o SNS registou um défice superior a 1.066 milhões de euros (1.066 ME), em 2022, ano em que a despesa atingiu 13.168 milhões de euros, o que representa um aumento de 4,6%, face a 2021, determinado pelo crescimento de 5,2% da despesa corrente, sobretudo, devido às despesas com pessoal, com fornecimentos e serviços externos e com compra de inventários. Assim, a despesa do SNS representou 5,5% do PIB e 12,3% da despesa pública total. Ora, este resultado representa uma melhoria de 214 milhões, face a 2021, bem como um défice menor do que esperado no orçamento inicial (1.260,6 ME).

O documento do CFP, salientando que, entre 2014 e 2022, o saldo orçamental do SNS foi sempre negativo, registando um valor acumulado de menos 5.231 milhões de euros, observa: “Para este resultado contribuiu um valor da despesa do SNS sistematicamente superior ao valor da receita para todos os anos, analisados.” Ao mesmo tempo, alerta que a despesa de capital correspondeu, em 2022, a apenas 1,8% da despesa total do SNS – “valor que se encontra em linha com a reduzida expressão que o investimento tem tido, nos últimos anos, na despesa do SNS” – frisa que esta despesa “ficou 323,6 milhões de euros abaixo do previsto no Orçamento do Estado para 2022”.

Tudo isto leva o CFP a concluir que há vários “riscos e incertezas”, a nível orçamental no SNS, sobressaindo, entre eles, a reduzida diversificação das suas fontes de financiamento.

Isto ocorre “num quadro em que o ritmo de crescimento da despesa pública em saúde tem sido superior ao da economia e em que as necessidades, em saúde, da população são crescentes”. Por isso, o CFP vinca a necessidade de garantir a comportabilidade orçamental do crescimento das despesas com pessoal e com medicamentos, áreas que têm registado maiores crescimentos, e julga necessário “garantir a utilização integral dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência [PRR], com concretização atempada das reformas e dos investimentos nele previstos, de forma a modernizar o SNS e a reformar a organização, a gestão e o funcionamento deste serviço público”.

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Nestas contas, insere-se uma contabilidade que deveria ser inadmissível num serviço público. Não há dinheiro para remunerar convenientemente os profissionais de saúde, que se esquivam para o privado ou para o estrangeiro, nem para equipamento, muito menos para construir uma carreira sólida e atrativa no SNS. Porém, há dinheiro para pagar a prestadores de serviços.

Assim, neste âmbito, o CFP revela que, no último ano, o SNS contratou “5,7 milhões de horas a prestadores de serviços médicos, o que implicou o gasto de 170 milhões de euros”, mais 19,4% do que em 2021 e mais 22,4% do que em 2020.

No entanto, o relatório refere que tal despesa não se reflete nas despesas com pessoal, por integrar a rubrica dos fornecimentos e serviços externos (Baralha-se este pessoal com mercadorias e com atos – consultas, exames, cirurgias – externos!). De qualquer modo, o volume de horas contratadas, referido, e a despesa considerada visam colmatar a falta de médicos e as falhas de equipamento.

No atinente ao pessoal, o CFP avança que, em 2022, a despesa com pessoal registou um aumento de 5,1% face ao ano anterior, explicada pelo aumento do número de trabalhadores e pela evolução das remunerações. As entidades do SNS tinham 147.190 trabalhadores, em 2022, mais 0,8% que em 2021. “Este valor tem aumentado ao longo dos últimos anos, em particular entre 2020 e 2022, dadas as exigências causadas pela pandemia de covid-19, tendo-se observado um crescimento de 14.165 trabalhadores desde 2019”, indica o relatório.

Todavia, em 2022, o número de trabalhadores é “influenciado pela alteração do perímetro das entidades englobadas na conta do SNS”, com a inclusão do Hospital de Loures na esfera da gestão pública, que operava com um contrato de parceria público-privada (PPP). Ora, “expurgando este efeito”, houve uma diminuição de 628 trabalhadores, em 2022, refere o CFP.

Seja como for, no final de 2022, o SNS representava aproximadamente 20% do emprego total das administrações públicas, constituindo-se como o segundo maior setor empregador na administração pública, atrás da Educação.

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Consideradas as despesas e o défice do SNS, é de ter em conta a sua dívida. E a conclusão de frontispício é a de que “sucessivas injeções de capital têm “sido incapazes” de reduzir a dívida.

Segundo o relatório, o desequilíbrio económico do SNS continua a “refletir-se na dívida a fornecedores externos”, que se mantinha acima dos 1,5 mil milhões de euros, no final de 2022. “De facto, estas injeções de capital têm-se repercutido apenas na melhoria dos pagamentos em atraso, que correspondem à dívida vencida há mais de 90 dias, os quais se encontram numa trajetória descendente desde 2018”, adianta o CFP.

Desde 2017, o SNS recebeu 4,5 mil milhões de euros de injeções de capital, montante que tem sido “incapaz de contribuir” para a redução estrutural da sua dívida, que “apenas recuou 252 milhões de euros, neste período”. Nestes seis anos, as injeções de capital no SNS foram iguais ou superiores a 500 milhões de euros anuais, destacando-se 2021 e 20022, com reforços superiores a mil milhões de euros. “Tal como 2021, o ano de 2022 evidencia bem esta incapacidade, uma vez que os reforços de capital, superiores a mil milhões de euros, se destinaram essencialmente a cobertura de prejuízos, enquanto a dívida a fornecedores externos sofreu até um aumento de 69 milhões de euros.”

O prazo médio de pagamento do SNS ascendia a 109 dias, em dezembro de 2022, e só 21% das entidades do SNS apresentavam um prazo médio de pagamento inferior a 60 dias.

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No dia em que o CFP dá à luz o relatório do SNS, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) vem a terreiro lamentar a falta de transparência e de diálogo da direção executiva do DNS (DE-SNS), falando de grande dispersão, de algumas dúvidas de como as coisas são coordenadas.

Carlos Cortes acusa a “falta de transparência e de diálogo” da DE-SNS, considerando que há “grande confusão e dispersão” na tomada de decisões, “em termos de regras e de linhas de intervenção técnicas” que têm de ser implementadas no sistema de saúde. A Direção-Geral da Saúde (DGS) faz o seu trabalho, mas o Ministério da Saúde (MS), através da secretária de Estado, também tem competências que podem colidir com a DGS e, depois temos a DE-SNS.

Em declarações à Lusa, o bastonário da OM disse compreender que há decisões que têm de ser políticas do MS e da DE-SNS, mas frisou que há decisões técnicas, do âmbito da DGS e da OM. E, questionado se, ao falar da “muita confusão”, da “pouca clareza” e da “pouca transparência”, visava algum tema específico, como as orientações sobre partos ou maternidades, disse sentir esta “confusão na generalidade”.

Mais referiu que ele próprio tem expressado a crítica da falta de transparência e de diálogo da DE-SNS, tendo pedido, publicamente, que esta seja mais dialogante e que tenha “a humildade de ir ao terreno e falar com os profissionais de saúde e com as organizações que têm competências na área da saúde”, nomeadamente com a OM, “inteiramente disponível”.

Criticando a estrutura liderada por Fernando Araújo, lamentou que a OM tenha conhecimento das novidades pela comunicação social. E exemplificou: “Ontem [dia 27] vi uma notícia sobre a intenção da Direção Executiva, aliás uma boa proposta, de criar centros onde as pessoas possam ir pedir atestados médicos, para descongestionar os centros de saúde e os hospitais.”

Recordando que a ideia chegou a ser desenvolvida pelo ex-ministro Adalberto Campos Fernandes, o qual, na altura, chamou a OM para participar na discussão, o bastonário acusou a DE-SNS de estar “a recuperar a mesma ideia”, excluindo os parceiros tradicionais do Ministério da Saúde, nomeadamente a OM: “A ordem podia dar contributos sobre as dificuldades em passar esses atestados, nas perspetivas de melhoria para a organização destes centros. Ouvimos falar muito de propostas, mas em termos de execução ainda temos muito pouco, a não ser uma organização que não compreendemos ainda das urgências, da rotatividade das urgências.”

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Penso que o SNS não pode ser concebido em função de um superavit. Todavia, considero um erro ter-se-lhe retirado a contratação com a ADSE e com as seguradoras, o que limitou, drasticamente, a diversidade de financiamento, ora tão propalada. Criar um novo ente, como a DE-SNS, em vez de reformar os existentes, dará resultado até adquirir os vícios existentes nos demais departamentos do Estado. Nada vejo que não pudesse ter sido feito sem a DE-SNS.

Por último, a criação dos centros de avaliação médica e psicológica (CAMP) é outro elemento de distração, face à urgente reforma do SNS, para ser robusto e eficaz. Além disso, parte da suposta índole oficinal dos hospitais (a ideia não é minha), funcionando como o IPO para o automóvel.

 2023.06.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de junho de 2023

Banca diz ajudar as famílias, mas os juros do crédito sobem

 

O presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB), Vítor Bento, em entrevista conjunta ao jornal Diário de Noticias (DN) e à rádio TSF, considera ser “do interesse geral dos bancos” ajudar os clientes com dificuldades no pagamento das prestações da casa. Além disso, afirmando que a banca vem ajudando as famílias em dificuldade, enumerou as medidas postas em prática, nomeadamente, a renegociação dos créditos ou a bonificação dos juros, e negou que haja “situações críticas”. Estão mesmo contentes as famílias?

O banqueiro disse ainda acreditar que a renumeração dos depósitos vai aumentar. “Não tenho dúvidas de que vai, inevitavelmente, haver um processo concorrencial, porque acima de tudo, nestas coisas, o que é essencial assegurar é que haja concorrência; e, para haver concorrência, [são precisos] os dois lados, isto é, é preciso também que os clientes sejam parte ativa nessa concorrência”, vincou. Venha daí esse aumento!

Furtando-se à pronúncia sobre a atualidade política, o presidente da APB, ao equiparar um governo a uma equipa de gestão, insinuou uma remodelação governamental: “As equipas de gestão são compostas por um líder e por uma equipa que tem de ser o mais funcional possível. Portanto, compete ao líder dotar-se da equipa que seja o mais funcional possível e, portanto, as fraquezas da equipa refletem-se na performance do líder e a performance do líder, as escolhas do líder, refletem-se nas capacidades da equipa.”

Por último, alertando para os riscos de a inflação perdurar no tempo e como isso potencia uma nova recessão, apelou a que se mantenha a inflação “contida”.

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Por sua vez, o governador do Banco de Portugal (BdP), em artigo de opinião, publicado a 23 junho, no Público (acesso condicionado), de olhos nas previsões de crescimento “exigentes”, pede “estabilidade” e chama os bancos a remunerar depósitos e os retalhistas a baixar preços, face à quebra da inflação. Parece estar em linha com as recomendações do Presidente da República (PR). Com efeito, segundo Mário Centeno, os cenários de crescimento da economia portuguesa acima de 2,7%, nos próximos três anos, só poderão materializar-se, se a “estabilidade e previsibilidade, financeira e de políticas” dos agentes económicos e sociais se mantiverem, já que as projeções são “exigentes para todos os que querem ver Portugal continuar a convergir com a Europa”. E deixa recado à banca, para aumentar as taxas de juro dos depósitos; e aos retalhistas, para começarem a refletir a inflexão do choque nos preços internacionais nos preços finais. Esperemos que a sede do lucro não obnubile o recado!  

Na verdade, o Boletim Económico, de junho, do BdP “não é otimista, nem benevolente”; ao invés, “é muito exigente”. Por isso, Mário Centeno frisou que “prolongar ciclos económicos não é simples e pode levar à acumulação de tensões”, que se fazem sentir nos preços, em situações em que os ativos ficam sobrevalorizados e, posteriormente, os ajustamentos podem ser abruptos e desestabilizadores, pelo que “as políticas não podem ser expansionistas nesta fase do ciclo”.

Para Centeno, a banca “deve continuar a reduzir os riscos, remunerar o seu passivo e apoiar a economia portuguesa”. 

Ademais, o governador do BdP recomenda que devem ser compreendidos os impactos de “natureza temporária” da crise inflacionista que, no ano de 2022, evoluiu de forma sucessiva, tendo-se alastrado em 2023, ainda que de forma menos expressiva. Em maio, o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou que a inflação se situou nos 4%.

Perante a descida da inflação, que acompanha a tendência internacional, Centeno quer que isso se reflita nos preços ao consumidor. E, em nome da estabilidade, sustenta que é “necessário manter a redução do endividamento e aumentar a poupança”, bem como apostar na valorização da mão-de-obra estrangeira: “É necessário […] abrir as nossas fronteiras ao conhecimento e ao trabalho de todos os que possam contribuir para o sucesso da nossa sociedade.”

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Entretanto, A vice-diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Gita Gopinath, alertou, num discurso, intitulado “Três verdades incómodas para a política monetária”, inserido no jantar de abertura do fórum anual do Banco Central Europeu (BCE), em Sintra, avisando que inflação está a ser mais persistente do que o esperado, defendeu que os governos devem “poupar” a receita extra que estão a conseguir com a subida de preços.

Referindo-se a “verdades desconfortáveis” com que se confronta a política monetária, a nível internacional, Gopinath afirmou que o BCE “deve continuar comprometido em combater a inflação” na Zona Euro, mesmo se, com isso, correr o risco de prejudicar o andamento da economia, e que os bancos centrais deverão continuar a sentir mais pressões inflacionistas do que antes da pandemia.

A vice-diretora do FMI notou que os mercados financeiros “estão particularmente otimistas”, antevendo que a inflação aliviará para “níveis próximos da meta, de forma relativamente rápida”. Todavia, há fatores que podem levar a que a subida dos preços seja domada mais tarde do que o esperado pelos investidores. Apesar do alívio da taxa de inflação homóloga a que se tem assistido na Zona Euro, o que está relacionado com o efeito de base e com a quebra nos preços da energia, Gita Gopinath apontou para outros fatores que ajudam a entender por que se tem mostrado persistente a inflação: apesar da maior subida de juros da história do BCE, a economia só desacelerou de forma modesta e a taxa de desemprego continua em “mínimos históricos”.

O mercado de trabalho resiliente, as famílias com poupanças do tempo da covid-19 e a procura por bens e serviços em níveis elevados são fatores que explicam por que os preços continuam a subir a ritmo acima do desejado por todos. Por isso, a oradora deixou uma mensagem aos responsáveis pela política orçamental: “No mínimo, é absolutamente crítico para os governos da Zona Euro que resistam a qualquer tentação de diluir a redução do défice que está atualmente projetada nas suas políticas.” E, se forem precisos apoios, devem ser “bem direcionados”, em vez de atribuídos de forma mais generalizada.

Já a receita fiscal extraordinária obtida pelos países com os preços mais elevados na economia “deve ser poupada”. Em simultâneo, os bancos também devem “poupar” os “lucros recorde” – que são “temporários”, avisou –, reforçando as respetivas almofadas de capital.

Por fim, alertou que, se as economias acabarem por tolerar uma inflação elevada por demasiado tempo, alimentando as expectativas de inflação dos agentes económicos e alterando as dinâmicas inflacionistas, “os custos de combater a inflação” serão “significativamente maiores”.

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Como previsto, está a decorrer, de 26 a 28 deste mês de junho, em Sintra, o Fórum BCE 2023, o simpósio anual dos bancos da Zona Euro, que trouxe ao país diversos especialistas da área e que foi inaugurado com um jantar em que discursou a convidada referida. Porém, o debate começou com o discurso de abertura da presidente do BCE, Christine Lagarde, pelas 9 horas do dia 27, após o que seguiram os painéis do programa, sobre os choques na oferta, os custos da inflação e mudanças estruturais nos mercados energéticos.

Segundo o site do BCE, o fórum tem como tema central “Estabilização macroeconómica num ambiente de inflação volátil” e decorre sob a moderação de Claire Jones, editora de Notícias de Economia, do Finantial Times.

Do programa, além do referido, constam sessões temáticas, em que é apresentado um artigo de título atinente ao tema, com subsequente debate, e painéis temáticos.

As sessões são as seguintes:

- Sessão 1: “Política monetária diante de múltiplos choques de oferta”; artigo “Política monetária diante de choques de oferta: o papel das expectativas de inflação”, de Silvana Tenreyro, do Banco de Inglaterra.

- Sessão 2: “Avaliando os custos da inflação”; artigo “Inflação e má alocação em novos modelos keynesianos”, de Frank Elderson, da Luiss University.

- Sessão 3: “Normalização da política comunitária”; artigo “Política de balanço acima do ELB” (Effective Lower Bound – Limite Mínimo Efetivo), de Annette Vissing-Jorgensen, conselheira sénior, do conselho de governadores do Federal Reserve System.

- Sessão 4: “A combinação ideal de política fiscal e monetária no contexto de alta inflação”; artigo “Política fiscal não convencional em tempos de alta inflação”, de Pierre-Olivier Gourinchas, conselheiro económico e diretor do Departamento de Pesquisa do FMI.

Os painéis são os seguintes:

Painel 1: “Mudança estrutural nos mercados de energia e implicações para a inflação”, moderado por Isabel Schnabel, membro o conselho executivo do BCE;

Painel 2: “Lições de experiências recentes em previsões macroeconómicas”, moderado por Philip R. Lane, membro o conselho executivo do BCE;

Painel de política, moderado por Sara Eisen, âncora do Closing Bell, CNBC (canal por assinatura da NBC Universal dedicado a notícias de negócios).

Para já e independentemente das conclusões do fórum, fica a premonição da presidente do BCE.

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De facto, Christine Lagarde antecipou, a 27 de junho, no Fórum do BCE, que, na reunião de 27 de julho, os juros voltarão a subir e que o ciclo não para, até estarem “em níveis suficientemente restritivos, para lograr um retorno atempado da inflação ao objetivo de médio prazo de 2%”. E garantiu que os juros elevados serão mantidos nesses níveis, enquanto for necessário.

A francesa que dirige o BCE centrou o foco no combate aos “espíritos vacilantes”, citando a ativista norte-americana socialista Helen Keller, a primeira surda e cega a graduar-se com um bacharelato, que escreveu, em 1903: “Os nossos piores inimigos não são circunstâncias beligerantes, mas espíritos vacilantes.”

Lagarde repisa que não há lugar para vacilação, tanto mais que entrámos numa “segunda fase” do processo inflacionista. A inflação global tem descido, mas a referida tecnicamente como subjacente (excluindo as componentes mais voláteis, como a energia), mantém-se em níveis persistentemente elevados.

A “segunda fase” do processo inflacionista tem, agora, protagonistas, a que não se pode fechar os olhos. Na mira estão uma vaga altista de salários nominais nos próximos anos e a estratégia empresarial de conservar ou de aumentar margens de lucro no quadro do processo inflacionista.

O primeiro protagonista é a dinâmica salarial. Os trabalhadores ficaram a perder com o choque inflacionista da primeira fase, pois sofreram grandes decréscimos dos salários reais, o que está a desencadear um processo sustentado de ‘convergência em alta’ dos salários, fazendo subir outras medidas da inflação subjacente que captam mais pressões internas sobre os preços – em particular, medidas da inflação sensível aos salários e medidas da inflação interna.

O segundo protagonista são as empresas. “A análise de sensibilidade realizada por especialistas do BCE sublinha os riscos que enfrentaríamos, se, ao invés, as empresas tentassem defender as suas margens”, referiu a presidente do BCE.

E a persistência do BCE em manter uma estratégia de aumento de juros sem vacilação advém ainda de uma outra “incerteza” – a de que o aperto monetário irá ter um impacto suficientemente restritivo na economia real em tempo útil. Assim, a ‘resistência’ do setor de serviços ao dinheiro mais caro e o atraso no choque decisivo sobre as famílias endividadas podem levar a que o ciclo de subida dos juros leve mais tempo e seja mais violento.

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Famílias sofrem, empresas arcam com maiores custos de produção e cidadãos protestam.

2023.06.27 – Louro de Carvalho