sexta-feira, 9 de junho de 2023

Punições coletivas em Panjshir pelos Talibãs são crimes de guerra

 

Na província de Panjshir, do Afeganistão, civis, detidos pelos Talibãs, são alvo de tortura e de execuções extrajudiciais (assassinatos ilegais). Detenções arbitrárias e em massa visam intimidar a população. Agnès Callamard sustenta que “milhares de pessoas estão a ser varridas pela opressão contínua do Talibãs.

São estas as principais evidências do novo relatório da Amnistia Internacional (AI) “Your Sons Are in the Moutains: The Collective Punishment of Civilians in Panjshir by the Taliban” (em Português: “Os vossos filhos estão nas montanhas: A punição coletiva de civis pelos Talibãs em Panjshir”), publicado a 8 de junho, que documenta graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, pelos Talibãs, em Panjshir, tais como execuções extrajudiciais, tortura e prisões e detenções arbitrárias em massa.

O relatório foi elaborado com base em entrevistas e em investigações de fonte aberta de material disponível nas redes sociais.

Na verdade, a AI entrevistou 29 habitantes de Panjshir. Todos os entrevistados solicitaram que não fossem revelados os seus nomes, por receio de represálias, por parte dos Talibãs.

Em paralelo, a organização realizou investigações de fonte aberta de material disponível nas redes sociais e analisou 61 fotografias e vídeos, alguns dos quais foram detetados online e outros fornecidos, em privado, por testemunhas, através de transferência segura. Provavelmente, muitos dos vídeos foram filmados por membros dos Talibãs.

Depois, a 25 de maio de 2023, a AI solicitou resposta oficial dos Talibãs aos casos documentados no relatório. Porém, aquando da publicação desta investigação, os Talibãs ainda não tinham fornecido qualquer declaração ou dado qualquer resposta.

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Devido ao regresso dos Talibãs ao poder, em agosto de 2021, vários membros das forças de segurança do antigo governo fugiram, com equipamento e armas, e juntaram-se à Frente Nacional de Resistência (NRF) em Panjshir. Por conseguinte, as autoridades do país estão a retaliar contra os combatentes, que vão detendo, e contra a população civil, provocando medo, submissão e sofrimento generalizados.

Como afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da AI, “em Panjshir, a tática cruel dos Talibãs de atacar civis, por suspeitarem da sua filiação à NRF, está a propagar miséria e medo”.

A lista de crimes de guerra e de outras violações do direito internacional humanitário cometidos pelos Talibãs é extensa: execuções extrajudiciais, tortura, tomada de reféns, detenções ilegais e destruição de casas de civis (sobretudo por incêndios). Cada ato individual é abominável e, no seu conjunto, tal conduta constitui uma punição coletiva – em si mesma, crime de guerra. E Agnès Callamard é perentória: “Milhares de pessoas estão a ser vítimas da opressão contínua dos Talibãs, com o propósito muito claro de intimidar e de punir. A associação dos civis em Panjshir como um alvo a abater tem de cessar imediatamente.”

Prenderam homens adultos e rapazes mais velhos em toda a província, sem qualquer acusação e sujeitam-nos a espancamentos e a outros abusos. Impuseram o único recolher obrigatório noturno em todo o Afeganistão, confiscaram casas de civis e restringiram o acesso dos pastores às suas terras de pastagem tradicionais.

Perante estes factos, a AI apela às autoridades para que investiguem os casos documentados e realizem os julgamentos justos perante tribunais civis comuns, sempre que tal se justifique. Entretanto, porque os Talibãs não se têm mostrado disponíveis nem capazes de conduzir investigações genuínas, nem de responsabilizar quaisquer membros das suas forças em julgamentos justos, a AI renova o seu apelo ao Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas sentido de criar um mecanismo internacional independente de responsabilização, centrado na preservação de provas para futuros processos judiciais, incluindo ações penais, bem como relatórios públicos e monitorização.

O relatório apresenta vários casos de execuções extrajudiciais em massa de combatentes da NRF pelos Talibãs. Num dos casos, pelo menos seis pessoas – possivelmente nove – foram executadas em setembro de 2022, na encosta de uma montanha perto de Darea Hazara, que faz parte da aldeia de Pochava, no distrito de Darah.

O Crisis Evidence Lab (em Português, Gabinete de Provas de Crise) da AI verificou e examinou, em pormenor, cinco vídeos que retratam partes do processo de execução. O primeiro mostra membros dos Talibãs a escoltarem seis homens com as mãos atadas atrás das costas, por uma encosta íngreme. Os entrevistados identificaram os seis como combatentes da NRF capturados pelos Talibãs: Mohammad-u Din, Ishaq, Daniyar, Modir Ahmad, Amir Hatam e Mohammad Yar.

Nos vídeos, os olhos dos detidos estão tapados com vendas e os membros armados dos Talibãs estão posicionados na encosta, atrás dos detidos. A seguir, as autoridades de facto do país disparam as armas, durante 19 segundos, matando cinco homens e fazendo com que os seus corpos deslizem pela encosta. Pelo menos cinco homens armados recorrem à combinação de espingardas de ferrolho e Kalashnikovs totalmente automáticas, o que torna difícil determinar o número exato de tiros disparados.

Com base na direção da luz solar e das sombras nos vídeos, entrevê-se que os assassinatos tenham ocorrido logo após o nascer do sol, pelas 05h30. Embora os vídeos mostrem, claramente, cinco pessoas a ser baleadas e mortas, uma testemunha entrevistada pela AI relatou que nove pessoas foram mortas nesta execução coletiva. As outras três vítimas foram designadas pelas vítimas como Feroz, Torabaz e Shah Faisal.

Em, pelo menos, três situações em Panjshir, os Talibãs torturaram, até à morte, civis previamente detidos. As vítimas eram agricultores e criadores de gado, que trabalhavam segundo as normas tradicionais que permitiam o envio dos animais para as montanhas no verão, acreditando que tinham autorização dos responsáveis Talibãs locais para aceder a zonas reservadas para o efeito.

Duas das vítimas, Noor Mohammad e Ghulam Ishan, eram residentes no distrito de Darah e foram torturadas no distrito de Rokha, quando procuravam o gado, em outubro de 2022. O terceiro homem, Abdull Muneer Amini, foi detido em Bazarak, em junho de 2022. Vídeos e fotografias capturadas depois de os seus corpos terem sido recuperados foram partilhados, nas redes sociais e em privado, com a AI. De acordo com a análise de um patologista forense, consultado pela AI, os três corpos apresentavam sinais extensos de tortura, como hematomas graves, provavelmente causados por violentas agressões.

Os Talibãs procederam a detenções arbitrárias de homens civis e de rapazes mais velhos por suspeita de filiação na NRF. Foram detidas cerca de 200 pessoas de cada vez. Em grande parte, estas detenções ocorreram nos distritos de Darah, Abshar e Khenj, entre maio e agosto de 2022. Esta prática ocorreu, quer nas detenções em massa, em toda a aldeia, quer visando agregados familiares que os Talibãs suspeitassem ter-se verificado a adesão das pessoas à NRF.

A detenção de membros da família para obrigar os combatentes a renderem-se foi verificada na investigação, sendo equivalente a tomada de reféns e constituindo crime de guerra. Os detidos permaneceram sob custódia dos Talibãs, em períodos que duravam de horas a meses.

No distrito de Darah, um homem afirmou que os Talibãs prenderam o pai na aldeia, em junho de 2022, na tentativa de o encontrar a si e aos irmãos, por suspeitas de adesão à NRF: “Levaram o meu pai por volta da uma da tarde. Levaram-no para a mesquita, onde lhe tiraram a venda dos olhos. Obrigaram-no a sentar-se num colchão. Aí, começaram a interrogá-lo: ‘Onde estão os teus filhos? Dizem que os teus filhos estão nas montanhas’.”

A detenção de familiares de pessoas suspeitas de serem combatentes da NRF, a prisão e a detenção em massa de civis, a tortura e as execuções dos pastores são outros exemplos da campanha de punição coletiva dos Talibãs contra civis, em Panjshir. Outras táticas talibãs de intimidação incluem a destruição e o confisco, a longo prazo, de bens de civis, bem como a imposição de restrições à circulação de civis.

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O povo do Afeganistão tem sofrido crimes à luz do direito internacional e outras graves violações de direitos humanos, que permanecem impunes, tanto antes como depois de agosto de 2021. A falta de infraestruturas nacionais credíveis para a responsabilização significa que as provas desses crimes enfrentam o sério risco de desaparecer ou de ser destruídas.

Uma vez mais, o apelo da AI vai para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, para que estabeleça um mecanismo internacional independente de responsabilização para o Afeganistão, com um mandato para monitorizar e informar, publicamente, os desenvolvimentos da situação no país e para recolher e preservar provas para futura justiça internacional. E a AI insta a que o mandato do Relator Especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos no Afeganistão seja dotado de todos os recursos necessários e a que os Estados-membros das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional (TPI) utilizem essas provas para conduzir investigações exaustivas sobre todas as partes envolvidas no conflito.

A este respeito, Agnès Callamard considera: “As pessoas que sofreram estas atrocidades em Panjshir e todas as outras vítimas dos crimes cometidos pelos Talibãs, no Afeganistão, merecem que se abra um caminho claro para a justiça, [para a] verdade e [para a] reparação, sem espaço para a impunidade. É essencial a criação de um mecanismo internacional independente de responsabilização, centrado na recolha e preservação de provas para responsabilizar todos os suspeitos de responsabilidade criminal.”

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Os crimes de guerra são cometidos em contexto bélico. O Afeganistão não está em guerra com outro país, nem formalmente em guerra civil. Não obstante, o ambiente é de severa repressão, as autoridades prendem, torturam e abatem combatentes da resistência e, como os atos que vêm sendo praticados são excessivamente violentos e sem responderem a uma ofensiva militar, são equivalentes a crimes de guerra. Com efeito, mesmo em guerra, há regras a observar, de acordo com as convenções internacionais, cuja inobservância pode comportar crimes de guerra, crimes que violam as leis ou os costumes de guerra definidos pelas convenções de Genebra e de Haia. Incluem ataques a civis, tortura, execução ou maus-tratos a prisioneiros.

Quanto à tortura, que é legal e desumana, é de referir que ocorre quando uma autoridade causa intencionalmente, dor e sofrimento com uma finalidade específica, como obter informações ou uma confissão, castigar, intimidar ou ameaçar. Pode ser física (por exemplo, espancamento) ou obrigar a uma situação dolorosa ou de natureza sexual como a violação. Pode ser psicológica, como privação do sono ou humilhação pública. Tem propósito cruel: quebrar o espírito humano, vencer toda a resistência física, psicológica e emocional dos seres humanos, pelo sofrimento. É prática bárbara, proibida internacionalmente, mas continua a ser usada, não raro, impunemente.

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O Afeganistão está longe de ser o único país a cometer atos equivalentes a crimes de guerra, nomeadamente, prisão sem julgamento, tortura, assassinato e execuções em massa. Porém, sobressai pela desumanidade, pela jugulação da resistência e pelo contraste com o regime anterior. A par de tudo isto, o país regrediu no aspeto cultural, como a opressão das crianças e das mulheres (obrigatoriedade do uso do véu islâmico e proibição de estudos a seguir ao ensino básico). Há todo um caminho civilizacional por fazer ou por refazer.

2023.06.09 – Louro de Carvalho

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