sexta-feira, 16 de junho de 2023

Inteligência Artificial na função pública será regulada em 2024

 

Desatualizada, face às tecnologias a implementar, a atual Lei da Modernização Administrativa, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril, e cuja última alteração lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 11/2023, de 10 de fevereiro, o governo quer fazer aprovar, na Assembleia da República (AR), até ao fim de 2024, uma nova lei dos serviços digitais da Administração Pública (AP) que regule a utilização das novas tecnologias de informação pela máquina do Estado – incluindo inteligência artificial (IA).

Quem deixou esta garantia foi o secretário de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa, Mário Campolargo, que atua na tutela direta do gabinete do primeiro-ministro.

Está em causa a substituição da legislação que não contempla novos serviços digitais, nem a proteção de dados. E o objetivo é tornar os serviços públicos mais modernos, ágeis e capazes de comunicar e de trocar informações entre si. Por exemplo, a IA é testada no assistente virtual ‘chatbox’ do portal da Segurança Social Direta, com limitações, e avançará, nos tribunais, para tarefas monótonas e repetitivas que tomam demasiado tempo aos funcio­nários judiciais, que podem aplicar-se ao que ninguém pode fazer, a não ser eles, com a sua experiência.

A nova lei encara o desafio da diminuição da burocracia e da melhoria da comunicação interna dos serviços do Estado (promoverá a interoperabilidade), cumprindo as leis europeias de proteção e de partilha de dados. Por exemplo, é necessário perceber como a Segurança Social ou a Saúde podem, legalmente, utilizar dados da Autoridade Tributária (AT). Efetivamente, como diz o governante, a troca de dados da AP tem de ser tratada conforme o Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD).

O trabalho é de “alta complexidade jurídica”. Porém, Mário Campolargo diz que está a decorrer o processo interno, tendo já feito uma reunião com sindicatos, patrões, ordens profissionais e entidades da Função Pública. E, ao mesmo tempo que avança com o projeto-lei, o governo continua a modernização a AP, através de financiamento previsto no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com duas medidas: o Portal Único, para juntar os serviços do Estado num sítio online (a alargar a mais 25 serviços até ao primeiro trimestre de 2026); e o projeto “Mosaico”, um guia para construir um site e fornecer um serviço digital, já usado pelo Ministério da Justiça, quando precisa de renovar um dos seus portais. Progressivamente, outras entidades públicas começarão a usar o projeto “Mosaico”, de forma generalizada.

A isto acresce o investimento público em cibersegurança, acelerado desde o início da guerra na Ucrânia, espoletada pela invasão russa.

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Entretanto, a 7 de junho, entrevista à estação ABC, o diretor executivo da Apple, Tim Cook, alertou que a tecnologia inerente aos ‘chatbots’ IA generativa é tão poderosa e muda tão rapidamente que os governos terão dificuldade em a regular. “A regulamentação [estatal] terá dificuldade em acompanhar o progresso desta tecnologia porque esta está a mover-se muito rápido”, vincou. Desta forma, as empresas “devem aplicar as suas próprias decisões éticas”, para lá das regras que os Estados estabelecem.

Tim Cook apontou que os modelos de linguagem (LLM, large language models) que estão por trás de ‘chatbots’ como o ChatGPT da OpenAI, o Bing da Microsoft e o Bard do Google são muito “promissores”, mas podem ser uma faca de dois gumes. Por isso, defende, acuradamente, a determinação e o cuidado no desenvolvimento e [na] implementação destes LLM, porque, sendo tão poderosos, suscitam “preocupação com coisas como a desinformação”.

Na semana anterior, um grupo de mais de 300 especialistas e investigadores do setor, incluindo o CEO do Google DeepMind, Demis Hassabis, o CEO da Anthropic, Dario Amodei, e o CEO da OpenAI, Sam Altman, alertaram, em carta, que a IA representa um “risco de extinção” comparável a pandemias ou à guerra nuclear.

Tim Cook confessou, na referida entrevista, que ele próprio utiliza o ChatGPT e que essa tecnologia é algo que a sua empresa “está a analisar de perto”. E, no atinente à IA, em geral, o principal representante da Apple lembrou que esta é uma tecnologia já integrada nos produtos da sua empresa, mas que, quando as pessoas a utilizam, não pensam “nela como IA”.

A Apple fez a Worldwide Developers Conference (WWDC), na sede, em Cupertino, nos Estados Unidos da América (EUA), com a apresentação de vários produtos, sendo o mais destacado o “Apple vision Pro”, um conjunto de óculos e de auscultadores de realidade mista com os quais os utilizadores podem viver experiências de realidade virtual (RV) e de realidade aumentada (RA).

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Por sua vez, o Parlamento Europeu (PE) deu, a 14 de junho, luz verde às primeiras regras da União Europeia (UE) para a IA, que negociará com o Conselho, para proibir a vigilância biométrica e para impor transparência em sistemas como ChatGPT

Na sessão plenária do PE, em Estrasburgo, os eurodeputados aprovaram, com 499 votos a favor, 28 contra e 93 abstenções, a negociação das conversações com os Estados-membros da UE (representados no Conselho) sobre a forma final da lei de Inteligência Artificial (IA), que a Comissão espera estar concretizada ainda este ano. “As regras visam promover a adoção de uma IA centrada no ser humano e fiável e proteger a saúde, a segurança, os direitos fundamentais e a democracia dos seus efeitos nocivos”, salienta o PE, em comunicado.

Os eurodeputados pretendem que as novas regras prevejam total proibição da IA para vigilância biométrica, para o reconhecimento de emoções e para o policiamento preventivo, que imponham que sistemas geradores desta tecnologia, como o ChatGPT, indiquem, de forma transparente, que os conteúdos foram gerados por IA e que os programas utilizados para influenciar os eleitores nas eleições sejam considerados de alto risco.

A Comissão Europeia já tinha apresentado, em abril de 2021, proposta para regular os sistemas de IA, a primeira legislação ao nível da UE, que visa salvaguardar os valores e direitos fundamentais da UE e a segurança dos utilizadores, obrigando os sistemas considerados de alto risco a cumprir requisitos obrigatórios relacionados com a sua fiabilidade. O documento tem estado em discussão entre os colegisladores e, em entrevista à agência Lusa e a outros media europeus em Bruxelas, no final de maio, Margrethe Vestager, vice-presidente executiva da Comissão responsável por Uma Europa Preparada para a Era Digital e para a Concorrência, disse esperar um acordo, neste ano, na UE, relativamente à primeira lei sobre IA.

Será a primeira regulação direcionada para a IA, apesar de os criadores e os responsáveis pelo desenvolvimento desta tecnologia estarem já sujeitos à legislação europeia, em matéria de direitos fundamentais, de proteção dos consumidores e de regras em matéria de segurança dos produtos e de responsabilidade. Prevê-se a introdução de requisitos adicionais para colmatar os riscos, como a existência de supervisão humana ou a obrigação de informação clara sobre as capacidades e as sobre as limitações da IA. Esta vem sendo cada vez mais usada em áreas como o entretenimento (personalização dos conteúdos), o comércio ‘online’ (previsão dos gostos do consumidor), os eletrodomésticos (programação inteligente) e os equipamentos eletrónicos (recurso a assistentes virtuais como a Siri ou a Alexa). E a Comissão tem tentado reforçar a cooperação entre os Estados-membros relativamente à IA, mas não há enquadramento legal comum, pelo que o objetivo é passar de uma abordagem voluntária para a esfera regulatória.

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Face à posição do governo, alinhada com a UE e tendo em linha de conta as advertências da Apple, os sindicatos pedem coordenação política.

Assim, José Abraão, presidente da Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP), reconhece o esforço da Secretaria de Estado, mas pede “melhorias na atuação”: é preciso mais “acompanhamento”, comunicação e coordenação entre “serviços, ministérios e projetos”. “As políticas têm de ser mais práticas e rápidas a chegar aos serviços, para não termos computadores do século passado a aplicar tecnologia de ponta”.

O dirigente sindical refere situações em que equipamentos novos em folha são enviados para serviços do Estado, onde as infraestruturas não os podem acomodar, por “problemas na instalação elétrica” do edifício, ou em que os sistemas informáticos da Segurança Social (SS) e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) precisam de interagir, mas têm problemas crónicos de interoperabilidade. E, na Justiça, onde se pretende que a IA auxilie os juízes, chegam, diariamente, a vários tribunais resmas de papéis que poderiam ser enviados digitalmente.

Ante estas pertinentes críticas, o secretário de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa, reage: “Uma área governativa como a minha define políticas. Seria muito mau que um membro do governo se tivesse de preocupar com a compra do equipamento A, B ou C.”

O começo da próxima ronda de reuniões entre governo e sindicatos públicos, para discutir carreiras, está agendado para o dia 21. E o presidente da FESAP acusa a pouca ambição do governo com um dos temas da agenda: a revisão das carreiras dos informáticos.

A secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires, propõe a extinção das atuais e a criação de duas novas carreiras especiais: especialista de sistemas e tecnologias de informação; e técnico de sistemas e tecnologias de informação. É um investimento de quase 12 milhões euros que se traduziria num aumento de 228 euros mensais, em início de carreira, e de 340 euros, no topo, para os especialistas, mas daria menos 350 euros aos técnicos mais qualificados. A proposta é, para José Abraão, menos competitiva, face aos salários mais elevados no setor privado.

Assim, a FESAP vai sugerir, em sede de concertação social, a criação de “um plano de modernização administrativa” que acautele todas as dimensões da digitalização do Estado. E sustenta que se justificaria um ministério para as novas tecnologias, transição digital e inteligência artificial. Governo e sindicatos concordam que a revolução digital em andamento será uma peça-chave da badalada reforma do Estado, mas a FESAP pensa que só é possível lá chegar com a aposta nos salários, na formação digital e nas carreiras dos funcionários públicos.

Contra as políticas desgarradas, precisa-se de visão mais global da transformação dos serviços e dos trabalhadores e das carreiras, melhorando as condições de recrutamento, de forma a evitar concursos desertos. Ora, Portugal é um dos países líderes das “Digital Nations”, uma rede de nove governos que afere o fornecimento de serviços digitais por parte do Estado, mas é um dos países da UE com a função pública mais envelhecida e com salários pouco atrativos. Não é suficiente ter bons conceitos e boa legislação; é preciso fazer boa aplicação prática.

Porém, enquanto o mencionado sindicalista defende que, para modernizar totalmente a máquina estatal, serão necessárias “uma ou duas legislaturas” de políticas bem implementadas, sendo a terceira esta, que já dura há ano e meio, o secretário de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa está confiante: “Se eu hoje estou aqui como secretário de Estado e diretamente dependente do primeiro-ministro, é porque este governo tem uma direção estratégica para fazer com que o digital ajude a Administração Pública e as empresas.

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Está em marcha, embora lenta, como é useiro e vezeiro na máquina estatal, uma reforma tecnológica e de regulação na AP. Contudo, é de questionar o poder político para quando uma regulamentação da utilização da IA no setor privado. Com efeito, não podemos confiar apenas na assunção ética por parte das empresas. É necessário um enquadramento legal que de defina um patamar, por mínimo que seja, de deveres, de precauções e de respeito pelos direitos das pessoas.

2023.06.16 – Louro de Carvalho

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