domingo, 4 de junho de 2023

A Santíssima Trindade sob o signo do silêncio e do testemunho

 

A Solenidade da Santíssima Trindade, que celebramos no domingo subsequente ao domingo do Pentecostes, não visa a decifração do mistério escondido por detrás de “um só Deus em três pessoas”, iguais e distintas, mas tem em vista concitar a contemplação e a adoração silenciosas, festejar a beleza, a grandeza e a misericórdia do nosso Deus e testemunhar, claramente, pela palavra e pela vida, a proximidade e o companheirismo de Deus com os homens, com o Povo. Configura o convite a adorar e a amar o Deus que é amor, que é família, que é comunidade.

Para nos ajudar à reflexão sobre a realidade da Trindade Santa, neste Ano A, dispomos de trechos do Livro do Êxodo, da 2.ª Carta aos Coríntios e do Evangelho de João.

São João da Cruz, poeta, sacerdote carmelita espanhol e Doutor da Igreja, considerava que, perante o mistério do Deus Triuno, a atitude do crente devia ser o silêncio. O mistério é insondável e Deus fala no silêncio, que proporciona o nosso recolhimento e atenção, enquanto o barulho distrai e perturba. Por isso, nunca é excessiva a reflexão silenciosa e orante.

No trecho da 2.ª Carta aos Coríntios (2Cor 13,11-13), Paulo exprime – com a fórmula litúrgica de saudação “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco” – a realidade de um Deus que é comunhão, que é família e que pretende atrair os homens para essa dinâmica de amor.

A 1.ª Carta aos Coríntios, ao criticar alguns membros da comunidade por atitudes pouco condicentes com os valores cristãos, provocou uma reação que originou uma campanha para desacreditar o apóstolo, o qual, informado de tudo, se dirigiu, apressadamente, para Corinto e confrontou os detratores. Depois, retirou-se para Éfeso. Tito, seu amigo, partiu para Corinto, a tentar a reconciliação. Entretanto, Paulo partiu para Tróade, onde reencontrou Tito, regressado de Corinto, que lhe trazia notícias animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os Coríntios estavam, de novo, em comunhão com o apóstolo. E Paulo, reconfortado, escreveu uma serena apologia do seu apostolado, a que juntou o apelo a uma coleta para os pobres da Igreja de Jerusalém. É a 2.ª Carta de Paulo aos Coríntios, nos anos 56/57.

O trecho em apreço é a conclusão desta missiva. Se compararmos esta despedida com a da 1.ª Carta aos Coríntios, ficamos surpreendidos pela sua brevidade e por uma certa impessoalidade. Afasta-se da tipicidade da despedida própria de uma carta de reconciliação, parecendo deixar entrever o tom da despedida entre partes em que persiste alguma tensão relacional. Contudo, vinca-se o vocativo “irmãos”, a saudação de todos os santos (era o denominativo dos cristãos, ao tempo) e a recomendação do “ósculo santo”.

Paulo deixa recomendações de caráter geral aos membros da comunidade, entendíveis no contexto das dificuldades e tensões vividas recentemente. Pede que sejam alegres, procurando, sem desistir, a perfeição; e que, na relação fraterna, se animem mutuamente, tendo os mesmos sentimentos e vivendo em paz. Porém, o mais notável da Carta é a fórmula final de saudação: “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”. É a fórmula mais claramente trinitária do Novo Testamento (NT), certamente de origem litúrgica. Seria a fórmula que os cristãos utilizavam quando, na celebração eucarística, faziam a saudação da paz. Esta fórmula constitui impressionante confissão de fé no Deus trino. Manifesta a fé dos crentes neste Deus que é amor e, portanto, que é família, que é comunidade. E, ao utilizá-la, os crentes reconhecem-se como membros da família de Deus e reconhecem que ser família de Deus exige que todos façam parte da única família de irmãos. Convocados para viverem em unidade, vivem em comunhão com Deus e em união com todos os irmãos.

No trecho do Livro do Êxodo, tomado como 1.ª leitura (Ex 34,4b-6.8-9), autoapresenta-se-nos o Deus da comunhão e da aliança, apostado em estabelecer laços familiares com o homem: o Deus clemente e compassivo, lento para a ira e rico de misericórdia.

O texto faz parte das tradições sobre a aliança do Sinai, cujo denominador comum é a reflexão sobre um compromisso (“berit” – “aliança”) que Israel assumiu com o Javé, o Senhor.

No texto bíblico, não há indicações suficientes para identificar o monte da aliança. Em si, o nome “Sinai” não designa um monte, mas a grande península de forma triangular, com mais ou menos 420 quilómetros de extensão norte/sul, entre o mar Mediterrâneo e o mar Vermelho (no sentido norte/sul) e o golfo do Suez e o golfo da Áqaba (no sentido oeste/este). É um deserto árido, acidentado, com várias montanhas que chegam a atingir 2400 metros de altura.

O texto pode ter sido a primitiva versão Javista da aliança do Sinai (século X a.C.), mas, na versão final do Pentateuco (séculos V-IV a.C.), foi utilizado para descrever a renovação da aliança, rompida pelo pecado do Povo.

No estado atual do Pentateuco, o esquema é: Israel comprometeu-se com Javé; mas, na ausência de Moisés, no cimo do monte, o Povo construiu um bezerro de ouro para representar Javé, o que era interdito pelos mandamentos; então, Moisés intercedeu e Deus renovou a aliança com Israel.

Obtido o perdão de Deus, Moisés subiu sozinho à presença do Senhor, levando as duas novas tábuas de pedra que havia talhado e sobre as quais seriam gravados os mandamentos da aliança.

É aqui que o autor insere a teofania. Deus aproxima-se de Moisés “na nuvem”. A nuvem, entre o Céu e a Terra, é o símbolo privilegiado da expressão da presença do Deus que vem ao encontro do homem. E, escondendo e manifestando, simultaneamente, indica o mistério de Deus, escondido e presente, cujo rosto o homem não pode ver, mas cuja presença sente.

A teofania continua com a autoapresentação do Senhor. Deus não refere a sua grandeza e omnipotência, mas vinca os atributos que O que fazem o parceiro ideal na aliança: é o “Deus clemente e compassivo, sem pressa para Se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade”. Num desenvolvimento que aparece no texto bíblico, mas que o trecho em apreço não contém, Javé fala da sua misericórdia “até à milésima geração”, que é ilimitada e desproporcional, se comparada à sua ira, “até à terceira e à quarta geração”. Os números, aqui, são uma forma de representar a desproporcional misericórdia de um Deus, infinitamente mais inclinado para o perdão do que para o castigo. E Israel é convidado a conhecer e a comprometer-se com esse Deus que é fiel aos seus compromissos e solidário com todos os que d’Ele necessitam e n’Ele creem.

Deus ama o seu Povo e cuida dele com bondade e ternura. A sua misericórdia é ilimitada e irá sempre triunfar. Israel, o Povo da aliança, pode estar confiante o Deus do amor e da misericórdia, garante a sua fidelidade a esses atributos que O caraterizam. Moisés responde à teofania com petições a Javé: que acompanhe o Povo em caminhada da terra da escravidão para a terra da liberdade; que entenda a dureza do coração do Povo e lhe perdoe; e que renove a eleição. E Deus, confirmando a sua autoapresentação, perdoa ao Povo e propõe-lhe a renovação da aliança.

No Evangelho (Jo 3,16-18), João convida-nos a contemplar um Deus cujo amor pelos homens é tão grande que enviou ao Mundo o seu Filho único; e Jesus, o Filho, obedecendo ao Pai, fez da sua vida dom total, até à morte na cruz, para oferecer aos homens a vida definitiva. Nesta história de amor, espelha-se a grandeza do coração de Deus.

O trecho em referência insere-se na secção introdutória do Quarto Evangelho (cf Jo 1,19-3,36), em que o Evangelista apresenta Jesus e procura – pelos contributos das diversas personagens que vão ocupando o centro do palco – dizer quem é Jesus. E a passagem proclamada na Solenidade em causa faz parte da conversa entre Jesus e Nicodemos, chefe dos judeus, que foi visitar Jesus “de noite”, o que dá a entender que não queria arriscar a sua posição na estrutura religiosa. Membro do Sinédrio, aparecerá, mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus e estará presente quando Jesus for descido da cruz e colocado no túmulo.

A conversa apresenta três etapas: Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, graças às suas obras e Jesus considera que isso não é suficiente, pois o essencial é reconhecê-Lo como o enviado do Pai; Jesus anuncia que, para entender a sua proposta, é preciso nascer de Deus, explicando que esse nascimento é o nascimento “da água e do Espírito”; e Jesus descreve o plano de salvação, como iniciativa do Pai, tornada presente no Mundo e na vida dos homens, através do Filho, e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus. O trecho em apreço pertence a esta última etapa. Após explicar a Nicodemos que o Messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a serpente” no deserto (evocando o episódio da caminhada pelo deserto em que os hebreus, mordidos pelas serpentes, olhavam uma serpente de bronze levantada num poste por Moisés e se curavam), a fim de que “todo aquele que n’Ele crê tenha vida definitiva”, Jesus expõe como a cruz se insere no plano de Deus. Esta explanação de Jesus procede em três passos.

Primeiro, indica o significado último da cruz. O Homem a levantar na cruz veio ao Mundo, assumiu a história humana, compartilha a nossa fragilidade; e, em consequência de uma vida gasta a lutar contra as forças das trevas e da morte os homens, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz é o último ato de uma vida vivida na doação.

Este Homem é “o Filho único de Deus”. A expressão evoca o sacrifício de Isaac: Deus comporta-Se como Abraão, que se desprendeu do próprio filho por amor a Deus e ao seu desígnio em favor dos homens. A cruz é, portanto, a expressão suprema do amor de Deus pelos homens. E o objetivo de Deus, ao enviar o seu Filho único ao encontro dos homens, é libertá-los da alienação e dar-lhes a vida eterna. Com Jesus – o Filho único que morreu na cruz – os homens aprendem que a vida está na obediência ao plano do Pai e no dom da vida aos homens.

Em segundo lugar, torna-se clara a intenção de Deus, ao enviar ao mundo o seu Filho único: Jesus veio ao Mundo, porque o Pai ama os homens e quer salvá-los. O Messias não veio com missão judicial, nem veio excluir ninguém. Ao invés, veio oferecer a todos os homens a vida definitiva, ensinando-os a amar e dando-lhes o Espírito que os transforma em Homens Novos.

Deus não enviou o seu Filho único ao encontro de homens perfeitos, mas enviou-O ao encontro de homens pecadores. E o amor de Jesus – bem como o Espírito que Jesus deixou – transformou os homens egoístas, orgulhosos, autossuficientes e inseriu-os na dinâmica de vida nova e plena.

Por fim, vêm as duas atitudes que o homem pode tomar: se aceita a oferta de Jesus, adere a Ele, recebe o Espírito, vive no amor e na doação, escolhe a vida; se continua escravo de esquemas de egoísmo e de autossuficiência, autoexclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são prémio ou castigo de Deus ao homem pelo seu bom ou mau comportamento, mas o resultado da escolha livre do homem, face à oferta incondicional de salvação que Deus lhe faz.

Na perspetiva joânica, mais do que o julgamento futuro, no final dos tempos, em que Deus pesa os pecados dos homens, a ver se os há de salvar ou condenar, o juízo realiza-se “aqui e agora”, dependendo da atitude que o homem assume face à proposta de Jesus. Porque ama a Humanidade, Deus enviou o seu Filho único com a oferta de salvação, que nunca foi retirada, antes continua aberta e à espera de resposta. O homem pode escolher a vida eterna ou excluir-se da salvação.

***

Feito o silêncio que a contemplação do mistério impõe e recolhidos os frutos da aprendizagem que o mesmo silêncio proporciona, os crentes não podem calar-se. Têm de festejar as maravilhas de Deus e vir para a rua (a festa é em comunidade). Têm de as proclamar de viva voz ou na discrição atitudinal, por palavras e por gestos de vida de amor, de entrega, pessoal e comunitária.

Embora a fórmula paulina da saudação do final da 2.ª Carta aos Coríntios seja a fórmula mais claramente trinitária em todo o NT, os Evangelhos e as Cartas estão perpassados do fenómeno unitivo de Pai e Filho, a par da procedência do Espírito Santo do Pai e do Filho. Assim o entenderam os Padres da Igreja. Assim, o entendem e vivem os crentes. Assim o testemunham a literatura, a liturgia e as artes visuais.

2023.06.04 – Louro de Carvalho

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