segunda-feira, 26 de junho de 2023

Viver como discípulo e como apóstolo comporta riscos, mas é urgente

 

Já os profetas, que eram chamados a falar ao povo em nome de Deus, arrostaram com as agruras da calúnia e da perseguição. João Batista, o precursor dos tempos messiânicos e do Messias, foi vítima da ousadia de enfrentar a imoralidade de Herodes. E Jesus, o Messias ou Cristo, pagou, com a morte na cruz, o arrojamento de britar a frieza da interpretação da Lei e de apresentar, com autoridade, a doutrina que não era sua, mas do Pai que O enviou.

Ora, os discípulos, que Jesus tornou apóstolos e seus irmãos (no que nós nos assimilamos pelo batismo), não são mais do que o seu Mestre.

A Liturgia da Palavra do 12.º domingo do Tempo Comum, no Ano A, releva a dificuldade em viver como discípulo, dando testemunho do desígnio de Deus para o Mundo. Com efeito, a calúnia e a perseguição, estando sempre no horizonte do discípulo, garantem a solicitude e o amor de Deus, que não abandonam o discípulo que testemunha a salvação.

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A 1.ª leitura (Jr 20,10-13) apresenta o exemplo de Jeremias (o que chora muito), profeta do Antigo Testamento (AT), como o paradigma do profeta sofredor, que experimenta a perseguição, a solidão, o abandono por causa da Palavra, mas que não esmorece na confiança em Deus e no anúncio – coerente e fiel – da oferta da salvação por Deus à Humanidade.

Jeremias, nascido em Anatot por volta de 650 a.C., ficou admirado com a sua vocação à profecia e exerceu o múnus profético desde 627/626 a.C., sobretudo no reino de Judá, até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.).

A sua mensagem traduz-se, numa primeira fase, no constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à aliança, principalmente pelo abandono da idolatria.

Na segunda fase, surge a crítica às injustiças sociais (às vezes, fomentadas pelo rei) e à infidelidade religiosa (traduzida, sobretudo, na busca de alianças políticas). Jeremias está convicto de que Judá ultrapassou todas as medidas e de que está iminente a invasão babilónica, para castigo dos pecados do Povo de Deus. Di-lo aos habitantes de Jerusalém. E as previsões funestas concretizam-se em 597 a.C., com Nabucodonosor a invadir Judá e a deportar para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.

No trono de Judá, fica Sedecias (597-586 a.C.). É quando decorre a terceira fase do múnus profética de Jeremias. Discordando da reiterada política das alianças com o Egito, o profeta é ignorado pelo rei e pelos notáveis, que o consideram um amaro “profeta da desgraça”. E Jeremias só consegue criar o vazio à sua volta.

Num momento de euforia nacional, anuncia novo cerco e a destruição de Jerusalém. Acusado de traição, é preso e corre perigo de vida. E, enquanto Jeremias prega a rendição, Nabucodonosor toma Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

Jeremias é o paradigma do profeta que sofre pela Palavra. Sensível e cordial, este homem de paz, que anseia pelo sossego da família e pelo convívio com os amigos, não foi feito para o confronto. Porém, como o Senhor o chamou para “arrancar e destruir, para exterminar e demolir”, para predizer desgraças e anunciar a violência, a destruição e a morte, apaixonou-se pela Palavra de Deus e criou em si a convicção de que não teria descanso, se não a proclamasse com fidelidade.

Como consequência, foi continuamente objeto de desprezo e de irrisão, todos se afastavam dele e o maldiziam. E este homem bom, sensível e delicado sofria terrivelmente pelo abandono e pela solidão a que a missão profética o votava.

Por isso, nos momentos negros de solidão e de frustração, deixou, às vezes, que a amargura que lhe ia no coração lhe subisse à boca e se transformasse em palavras. Dirigia-se a Deus e censurava-O por causa dos problemas que a missão lhe trazia. Chegou a comparar-se a uma donzela inocente e ingénua, de quem Deus se apoderou e a quem forçou a fazer o que o profeta não queria.

O Livro de Jeremias apresenta, a cada passo, queixas e lamentos de um homem condenado à vida de aparente fracasso. Alguns desses segmentos textuais perfilam-se como “confissões de Jeremias”, em que o profeta expõe a Javé, com sinceridade rebelde, a suas desilusão, amargura e a frustração. O trecho desta dominga faz parte de uma dessas “confissões”.

O profeta descreve o quadro que o envolve: a multidão, saturada de anúncios de castigos e de terrores, quer pôr um ponto final no derrotismo de Jeremias, calando-o. Jeremias, o “terror por toda a parte” (é dessa forma irónica que a multidão o designa), é preso, julgado e silenciado. Todo o ambiente sugere a montagem de um esquema de julgamento sumário e de linchamento popular. No entanto, o que mais dói a Jeremias é que até os amigos mais íntimos lhe voltaram as costas e se juntaram aos que maquinavam a sua perda.

Porém, o lamento de Jeremias é bruscamente cortado por um inesperado hino de louvor ao Senhor, expressão extraordinária da confiança no Deus que não falha. Este hino, provavelmente entoado por Jeremias noutro contexto, reproduz a certeza de que, apesar do sofrimento e da incompreensão que tem de enfrentar, o profeta não está só: confia em Deus, no seu poder, na sua justiça, no seu amor; e sabe que o Senhor nunca abandona o pobre que n’Ele confia (aqui, entenda-se “pobre” no sentido de desprotegido ou perseguido injustamente pelos poderosos).

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No Evangelho (Mt 10,26-33), Jesus, ao enviar os discípulos, alerta-os para a inevitabilidade da incompreensão e das perseguições. Porém, exorta: “Não temais.” E garante-lhes a presença contínua, a solicitude e o amor de Deus, em toda a sua peregrinação pelo Mundo.

Os discípulos – que Jesus chamou e que responderam ao chamamento, que escutaram o seu ensino e que testemunharam os seus sinais – vão ser enviados ao Mundo, para continuarem a obra libertadora e salvadora de Jesus. É o “discurso da missão”, que vai de 9,36 a 11,1.

Em Roma, nos anos 81 a 96, pontifica o imperador Domiciano, que não está disposto a tolerar o cristianismo. No horizonte das comunidades cristãs, está a hostilidade crescente, que rapidamente se converterá em perseguição organizada contra o cristianismo. De facto, no ano 95, por iniciativa de Domiciano, começa uma terrível perseguição contra os cristãos em todo o Império.

A comunidade cristã a quem Mateus e dirige (talvez a comunidade de Antioquia da Síria) tem grande sensibilidade missionária e está empenhada em levar a Boa Nova de Jesus a todos. No entanto, os missionários convivem, dia a dia, com as dificuldades e com as perseguições e manifestam um certo desânimo e alguma frustração. Neste contexto, o evangelista compôs uma espécie de “manual do missionário cristão”, que é o discurso da missão. Para mostrar que a atividade missionária é imperativo da vida cristã, Mateus visa a missão dos discípulos como a continuação da obra libertadora de Jesus e define os conteúdos do anúncio e as atitudes fundamentais que os missionários devem assumir, enquanto testemunhas do Reino.

O tema central do trecho em apreço é sugerido pela exortação “não temais”, que se repete por três vezes ao longo do texto. É uma exortação frequente, no AT, dirigida a Israel ou a um profeta. O contexto é sempre o da eleição: Javé elege alguém (Povo ou pessoa) para o seu serviço. Confia ao eleito uma missão profética no Mundo e, porque sabe que o eleito se confrontará com forças adversas, que lhe trarão sofrimento e perseguição, assegura-lhe a sua presença, ajuda e proteção.

Assim, ao enviar os eleitos, Jesus dá-lhes aquelas garantias, para eles superarem o medo e a angústia que resultam da perseguição. As palavras de Jesus correspondem à última bem-aventurança: “Bem-aventurados sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós!” (Mt 5,12).

Esta ordem de envio comporta três postulados: o medo não pode impedir a proclamação aberta da Boa Nova; não pode haver medo da morte física; é necessária absoluta confiança em Deus.

Jesus pede aos discípulos que não deixem o medo impedir a proclamação da Boa Nova nas praças. Com efeito, a mensagem libertadora não pode correr o risco de ficar – por causa do medo – circunscrita a um pequeno grupo fechado numa redoma, sem correr riscos, nem incomodar a ordem injusta das sociedades. Ao invés, porque é o bem universal, tem de ser proclamada com coragem, com convicção, com coerência, de cima dos telhados, para mudar o Mundo e se tornar Boa Nova libertadora para todos os homens e mulheres.

Depois, Jesus recomenda aos discípulos que não se deixem vencer pelo medo da morte física. O que é decisivo, para o discípulo, não é que os perseguidores o possam eliminar fisicamente, mas evitar a perda da possibilidade de chegar à vida plena e definitiva. Ora, o cristão sabe que essa vida definitiva é um dom de Deus aos que O acolhem e que aceitam pôr a própria vida ao serviço do Reino. Quem percorre, fielmente, a rota de Jesus não vive angustiado pelo medo da morte.

Por último, Jesus convida os discípulos a descobrirem que Deus merece a nossa confiança absoluta. Para ilustrar a solicitude de Deus, o evangelista evoca duas imagens: os pássaros de que Deus cuida (que revela a ternura e preocupação de Deus por todas as criaturas); e os cabelos que Deus conta (que revela a forma única e profunda como Deus conhece o homem, com os seus problemas e dificuldades). Deus é aqui apresentado como um Pai, cheio de amor e de ternura, sempre preocupado em cuidar dos seus filhos, em entendê-los e em protegê-los. Ora, depois de terem descoberto este rosto de Deus, os discípulos não têm qualquer razão para o medo. A certeza de ser filho de Deus alimenta a capacidade do discípulo em empenhar-se na missão. Nada nem ninguém consegue calar o discípulo que confia na solicitude e no amor de Deus Pai.

As últimas palavras do trecho em causa contêm uma séria advertência de Jesus: a atitude do discípulo face à perseguição condicionará o seu destino último. Quem se mantiver fiel a Deus e ao seu desígnio e testemunhar, com desassombro, a Palavra encontrará a vida definitiva; mas quem procurar proteger-se, comodamente instalado numa vida morna, sem riscos e sem coerência, recusa a vida em plenitude, pelo que não fará parte da comunidade de Jesus.

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Na 2.ª leitura (Rm 5,12-15), Paulo mostra aos cristãos de Roma como a fidelidade ao desígnio de Deus gera vida e a vida organizada na dinâmica de egoísmo e de autossuficiência gera morte.

Para deixar bem claro que a salvação foi oferecida por Deus aos homens através de Jesus Cristo, o apóstolo recorre à antítese, figura literária que aparece, com alguma frequência, nos seus escritos: em concreto, expõe o seu raciocínio num jogo de oposições entre Adão e Jesus.

Adão é a figura da Humanidade que prescinde de Deus e do seu desígnio, escolhendo rumos de egoísmo e de autossuficiência. Tal escolha produz injustiça, alienação e desarmonia. Porque a Humanidade preferiu, tantas vezes, esse rumo, o Mundo entrou na economia de pecado, que gera morte. E essa morte é físico-biológica, mas é, sobretudo, morte espiritual e escatológica, pois configura afastamento temporário ou definitivo de Deus, fonte da vida.

Por sua vez, em contraste, Cristo propôs um outro caminho. Viveu na permanente escuta do Pai e na obediência total ao desígnio do Pai. Ora, esse caminho, levando à superação do egoísmo e da autossuficiência, faz nascer o Homem Novo, livre, que vive em comunhão com o Deus que é fonte de vida. Foi esse o grande desafio que Jesus fez à Humanidade. Jesus Cristo libertou os homens da economia de pecado e introduziu uma dinâmica nova, uma economia de graça que gera a vida plena, a salvação.

É claro que, para o apóstolo, a intervenção de Cristo na História da Humanidade se traduz num dinamismo de esperança, de vida nova. Cristo propõe à Humanidade a rota de comunhão com Deus e de obediência ao seu desígnio. E direciona o homem para a vida plena, para a salvação.

Cristo chama à vida, envia à missão. E esta postula o confronto com as dificuldades. É a sina do profeta, do discípulo, do missionário, do cristão!

2023.06.25 – Louro de Carvalho

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