quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Balanço da viagem apostólica de Francisco aos Estados Unidos


É óbvio que não se trata do balanço oficial no atinente ao constante da conferência de imprensa do Papa aos jornalistas no voo de regresso de Filadélfia a Roma, no passado dia 27 de setembro. Não obstante, não deixa de ser genuíno, porque, sem que o Papa se afaste do seu rumo doutrinal e pastoral, responde espontânea e coloquialmente às questões levantadas pelos jornalistas, mediante a apresentação que deles ou delas o Padre Frederico Lombardi ia fazendo.
Sem me deter nos habituais pormenores dos agradecimentos mútuos e das mostras de cansaço ou de simpatia da parte de Francisco, convém elencar uma súmula dos temas abordados. Sintetizo-os nos seguintes:
Os aspetos de surpresa para o Pontífice nos EUA; os abusos sexuais por parte de alguns membros do clero; a temática do perdão; o processo de paz na Colômbia; a crise migratória na Europa e as barreiras de arame farpado; o processo de declaração de nulidade matrimonial; algumas questões atinentes à objeção consciência; a perseguição contra os cristãos e o Estado Islâmico; o convite ao Prefeito Marino, Presidente da Câmara de Roma; a possibilidade de relações da Santa Sé com a China; os sentimentos do Papa depois de uma viagem apostólica intensa; o papel das mulheres; e o sucesso papal na viagem aos Estados Unidos.
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Os aspetos de surpresa para o Pontífice nos EUA
Surpreendeu-o “o calor do povo, tão amável”, belo e variado. De Washington, destaca a receção “calorosa, mas um pouco mais formal”; de Nova Iorque, a receção “um pouco exuberante”; e de Filadélfia, a receção “muito expressiva”. São três modalidades diferentes, mas da mesma receção. Francisco diz-se muito impressionado com a bondade e acolhimento; e, nas cerimónias religiosas, também com a piedade e religiosidade. Confessou: “Via-se o povo a rezar: isto impressionou-me… e muito, muito mesmo. Foi belo”.
E, tendo declarado que não houve provocações, insultos ou desafios, entende que “devemos continuar a trabalhar com este povo crente, como trabalharam até agora, acompanhando o povo no crescimento, nas suas coisas belas e nas suas dificuldades; acompanhando o povo na alegria e nos momentos maus de dificuldade, quando não há trabalho, quando vem a doença...”.
Afirma, mesmo, que “o desafio da Igreja hoje é estar como sempre esteve: próxima das pessoas, próxima do povo dos Estados Unidos”; que “este é um desafio que a Igreja nos Estados Unidos compreendeu bem”; e que o Papa quer “que o vença”.
Os abusos sexuais por parte de alguns membros do clero
Sobre esta matéria, David O’Reilly refere que Filadélfia atravessou um período difícil com os abusos sexuais, que ainda constituem uma ferida aberta em Filadélfia. Por isso, questionou o Papa pelo facto de, no seu discurso aos bispos, em Washington, lhes ter oferecido consolação e conforto. Francisco, por sua vez, esclareceu que falando, em Washington, a todos os bispos dos Estados Unidos, sentiu a “necessidade de expressar compaixão”, porque “aconteceu uma coisa horrível e muitos deles sofreram, pois não sabiam disto”; ou, porque, “quando eclodiu o problema, sofreram tanto: homens de Igreja, de oração, verdadeiros pastores...”. Por isso, utilizando uma frase do Apocalipse, disse-lhes que sabia que eles “tinham vindo da grande tribulação” (cf Ap 7,14).
Mais: não se trata apenas de sofrimento afetivo. Aquilo foi, não “apostasia”, mas um “quase sacrilégio”. É certo que este tipo de abusos existe por toda parte – “no âmbito familiar, no âmbito da vizinhança, nas escolas, nos ginásios… por todo o lado” – mas, “quando um sacerdote comete um abuso, é gravíssimo, porque a vocação do sacerdote é fazer crescer aquele menino ou aquela menina para o Alto, para o amor de Deus, para a maturidade afetiva, para o bem”. Ao invés, “o mal esmagou-a, esmagou-o”. Por isso, “é quase um sacrilégio”. O sacerdote, pessoa consagrada, “traiu a vocação”.
Por isso “a Igreja, neste momento, é dura com isto. E não se deve encobrir; são culpáveis mesmo os que encobriram estas coisas. Alguns bispos – e mal – também encobriram isto.
Ora, as palavras de conforto não pretendiam dizer que estivessem tranquilos, mas que o Papa reconhece que foi horrível o que aconteceu e imagina que aqueles bispos tenham deplorado tanto os factos. E, em Filadélfia, falou com mais dureza.
A temática do perdão
Esta está circunstancialmente conexa com a anterior. Francisco, com efeito, foi questionado sobre o facto de muitos sacerdotes abusadores de menores não terem pedido perdão às vítimas.
O Papa responde que é preciso pedir e poder, saber e dispor-se a receber o perdão:
Se uma pessoa agiu mal, está consciente daquilo que fez e não pede perdão, peço a Deus que Se lembre dela. Eu perdoo-a, mas ela não recebe o perdão, está fechada ao perdão. Uma coisa é dar o perdão – todos somos obrigados a perdoar, porque todos nós fomos perdoados –, e outra coisa é receber o perdão. E, se aquele sacerdote está fechado ao perdão, ele não o recebe, porque fechou a porta à chave por dentro, e a única coisa que nos resta fazer é rezar para que o Senhor abra aquela porta. É preciso estar dispostos a dar o perdão, mas nem todos o podem receber, o sabem receber ou estão dispostos a recebê-lo.

Em relação às vítimas e famílias que não conseguiram perdoar ou não querem perdoar, o Santo Padre assegura a sua compreensão e oração por elas, mas não as julga. E, apresentando o exemplo da mulher que lhe revelou que, quando a sua mãe soube do abuso sexual à filha, “blasfemou contra Deus, perdeu a fé e morreu ateia”, assumiu compreender aquela mulher e que Deus a compreende. Sobre isto declarou:
Tenho a certeza de que Deus acolheu aquela mulher, porque aquilo que foi tocado, aquilo que foi destruído era sua própria carne, a carne de sua filha. Compreendo-as. Não julgo uma pessoa que não pode perdoar. Rezo e peço a Deus – porque Deus é um campeão a encontrar vias para uma solução –, peço-Lhe que resolva tudo.
O processo de paz na Colômbia
Sobre o processo de paz na Colômbia (em mente no voo de Roma para Havana) e a notícia do acordo histórico entre as FARC e o governo, apresentada por um dos jornalistas, Francisco reagiu assim:
Quando recebi a notícia de que em março seria assinado o acordo, disse ao Senhor: Senhor, faz que cheguemos a março, que se chegue lá com esta boa intenção, porque ainda faltam pequenas coisas, mas a vontade existe. Existe de ambos os lados. E, mesmo por parte do pequeno grupo, existe. Todos os três estão de acordo. Temos de chegar a março, ao acordo definitivo. Este era o ponto de chegada da justiça internacional, como sabe. Fiquei felicíssimo. E senti-me parte, no sentido de que sempre quis isto, falei duas vezes com o presidente Santos do problema, e a Santa Sé – não só eu, mas a Santa Sé – mostra-se amplamente disponível para ajudar, tanto quanto possível.

A crise migratória na Europa e as barreiras de arame farpado
Entrando-se num estado de crise após um longo processo, este foi desencadeado há anos, porque as guerras de que as pessoas escapam são guerras que já têm anos; “a fome é fome de anos”. Ao pensar na África, vem ao pensamento de Francisco o continente explorado, o dos grandes recursos e o do recrutamento de escravos. Mas agora, sob o pretexto das guerras tribais (algumas existem e têm graves consequências), surgem os interesses económicos. E o Papa Bergoglio opina:
Eu penso que, em vez de explorar um continente, um país ou uma terra, é preciso fazer investimentos para que aquelas pessoas tenham emprego; e assim se evitaria esta crise. É verdade que se trata duma crise de refugiados – como eu disse ao Congresso – nunca vista depois da última guerra mundial; é a maior.

Quanto ao arame farpado e outras barreiras, o Papa afiança:
Todos os muros caem… hoje, amanhã ou depois de 100 anos. Mas cairão. Não é uma solução. O muro não é uma solução. Neste momento, a Europa vê-se em dificuldade, é verdade. Devemos ser inteligentes, compreender por que vem toda aquela onda migratória, e não é fácil encontrar soluções. Mas, com o diálogo entre os países, devemos encontrá-la. Os muros, nunca são solução; pelo contrário, as pontes sim, sempre, sempre. Não sei que mais dizer. Que penso sobre os muros, sobre as barreiras? Durem pouco tempo ou muito, não são uma solução. O problema permanece, permanece até com mais ódio.

O processo de declaração de nulidade matrimonial
O Papa declarou ter fechado, neste tipo de processos, a porta à via administrativa (li, há dias da parte de um conceituado canonista, precisamente o contrário – a afirmação da transformação da via judicial em via administrativa), que “era aquela por onde podia entrar o divórcio”. Assegura que “estão errados quantos pensam no divórcio católico, porque este último documento fechou a porta ao divórcio, que podia entrar – teria sido mais fácil – por via administrativa. A estrada existente será sempre a via judicial”.
A simplicidade e agilização destes processos constituem um pedido da maioria dos Padres Sinodais, em outubro de 2014: agilizar os processos, porque havia processos que duravam de 10 a 15 anos. Uma sentença, e outra sentença; depois se houvesse apelação, tínhamos a apelação e depois havia outra apelação... Nunca mais terminava.
E faz o apontamento histórico, em que justifica a razão de ser da exigência da dupla sentença:
A dupla sentença, quando era válida [a primeira] e não havia apelação, foi introduzida pelo Papa Lambertini, Bento XIV, porque na Europa Central – não digo o país – existiram alguns abusos e, para os impedir, ele introduziu isto. Mas não é uma coisa essencial para o processo. Os processos mudam; a jurisprudência muda para melhor, melhora-se sempre. Naquele tempo, era urgente fazer aquilo. Depois, Pio X quis agilizar e fez qualquer coisa, mas não teve tempo ou possibilidade de o fazer.

O Motu Proprio “facilita os processos no tempo, mas não é um divórcio, porque o matrimónio é indissolúvel quando é sacramento; e isto a Igreja não o pode mudar. É doutrina. É um sacramento indissolúvel”.
O procedimento legal visa “provar que aquilo que parecia sacramento não foi um sacramento: por falta de liberdade, por exemplo, ou por falta de maturidade, ou por doença mental...”. E o Papa continua, aflorando outras situações, mas negando categoricamente o divórcio católico:
Depois, temos o problema das segundas núpcias, dos divorciados que fazem uma nova união. Vós, lede o que está no Instrumentum Laboris, o que se apresenta para discussão. Parece-me um pouco simplista dizer que o Sínodo... que a solução para estas pessoas é que possam fazer a comunhão. Esta não é a única solução. O problema das novas uniões dos divorciados não é o único problema. No Instrumentum Laboris, há tantos. Por exemplo: os jovens não se casam, não querem casar-se. É um problema pastoral para a Igreja. Outro problema: a maturidade afetiva para o matrimónio. Outro problema: a fé. Creio eu que isto é para sempre? “Sim, sim, eu creio...”. Mas creio verdadeiramente? A preparação para o matrimónio... Muitas vezes ponho-me a pensar: para se tornar sacerdote, há uma preparação de oito anos; e depois, como não é definitivo, a Igreja pode tirar-te o estado clerical. Para te casares, que é para toda a vida, fazem-se quatro cursos, quatro vezes... (…). O Sínodo deve pensar bem como se há de fazer a preparação para o matrimónio; é uma das coisas mais difíceis. (…). O divórcio católico: não, isto não existe. Ou não houve matrimónio – e isto é nulidade, não existiu – ou, se existiu, é indissolúvel.

Algumas questões atinentes à objeção consciência
São referentes à liberdade religiosa e ao direito/dever de agir de acordo com a consciência pessoal. Por isso, o Santo Padre visitou as Irmãzinhas dos Pobres e quis manifestar o seu apoio às irmãs mesmo em sede judiciária, bem como também revelou o seu apoio àqueles indivíduos – incluindo funcionários do governo – que dizem não poder, segundo a sua boa consciência, segundo a sua consciência pessoal, ater-se a certas leis ou exercer as suas funções de funcionários do governo, por exemplo, na emissão de licenças matrimoniais para casais do mesmo sexo.
Embora tenha admitido não conseguir “ter em mente todos os casos que possam existir de objecção de consciência”, sustenta que a objecção de consciência é um direito e tem a ver com cada direito humano. Afirma o Pontífice:
É um direito e, se não se permite a uma pessoa exercer a objeção de consciência, nega-se-lhe um direito. Qualquer estrutura judicial deve contemplar a objeção de consciência, porque é um direito, um direito humano. Caso contrário, acabamos na seleção dos direitos: este é um direito de qualidade, este não é um direito de qualidade... É um direito humano. A mim sempre – isto vai contra mim! – sempre me comoveu quando, na juventude, li – e várias vezes – a obra Chanson de Roland: estavam todos os muçulmanos em fila e, diante deles, aparecia a fonte batismal ou a espada, e eles tinham de escolher. Não lhes era permitida a objeção de consciência. Não estava certo; é um direito. E nós, se devemos fazer a paz, devemos respeitar todos os direitos. (…). Se o funcionário do governo é uma pessoa humana, tem este direito. É um direito humano.
A perseguição contra os cristãos e o Estado Islâmico
Francisco usou palavras muito fortes para denunciar o silêncio do mundo sobre a perseguição contra os cristãos, que são privados das suas casas, expulsos, privados dos bens, feitos escravos e brutalmente assassinados. Confrontado com a notícia de que o presidente Hollande anunciou o início dos bombardeamentos pela França sobre as bases do IS na Síria e questionado sobre o que pensava desta ação militar, respondeu com estas palavras:
Sobre o bombardeamento, verdadeiramente, recebi a notícia anteontem, e não li nada. Não sei bem como evoluirá a situação. Ouvi dizer que a Rússia tinha a sua posição, que a dos Estados Unidos ainda não era clara... Verdadeiramente não sei que dizer-te, porque não entendi como estão as coisas. Mas, quando ouço a palavra “bombardeamento”, morte, sangue... repito aquilo que disse ao Congresso e às Nações Unidas: evitem-se estas coisas. Mas a situação política não a julgo, porque não a conheço.

O convite ao Prefeito Marino, Presidente da Câmara de Roma
Quanto à declaração do Presidente da Câmara de Roma, cidade do Jubileu, de que veio ao Encontro Mundial das Famílias, à Missa, porque fora convidado pelo Papa e ao desmentido feito pelo Capitólio de que o Prefeito Marino nunca afirmou ter sido convidado pelo Santo Padre, o Papa esclareceu:
Eu não convidei o prefeito Marino. Fique claro. Eu não o fiz. Perguntei aos organizadores, mas nem eles o convidaram. Ele veio, professa-se católico, veio espontaneamente. Foi assim.

A possibilidade de relações da Santa Sé com a China
No atinente a este ponto, o Bispo de Roma exprimiu-se, ao nível do desejável, nos termos seguintes:
A China é uma grande nação, que oferece ao mundo uma grande cultura e tantas coisas boas. Uma vez, no voo de regresso da Coreia a Roma, disse que gostaria muito de ir à China. Amo o povo chinês, gosto dele. Espero que haja a possibilidade de haver boas relações, boas relações. Temos contactos, falamos sobre isso... Espero que se avance. Para mim ter um país amigo como a China, que tem tanta cultura e tantas possibilidades de fazer bem, seria uma alegria.

Os sentimentos do Papa depois duma viagem apostólica intensa
Não obstante tratar-se de uma questão pessoal, o Pontífice destacou:
Quando o avião parte depois duma visita, vêm-me à mente os olhares de tantas pessoas e dá-me vontade de rezar por elas e dizer ao Senhor: “Vim aqui para fazer alguma coisa, para fazer bem; talvez tenha feito mal, perdoa-me. Mas guarda toda esta gente que me viu, que pensou nas coisas que eu disse, que ouviu, mesmo aqueles que me criticaram, todos...”. Sinto isto. Não sei porquê.

Sobre o papel das mulheres
Francisco sublinha o papel das religiosas nos Estados Unidos:
As irmãs dos Estados Unidos fizeram maravilhas no campo da educação, no campo da saúde. O povo dos Estados Unidos ama as irmãs: não sei quanto ama os padres, mas as irmãs ama-as…, ama-as tanto. E são valorosas, são mulheres valorosas, valorosas. Cada uma segue a sua Congregação, as suas regras; há diferenças, mas são valorosas e, por isso, senti a obrigação de agradecer pelo que fizeram. Uma pessoa importante do governo dos Estados Unidos disse-me nestes dias: “O que tenho de cultura, devo-o primariamente às irmãs”. As irmãs têm escolas em todos os bairros – ricos, pobres –, trabalham com os pobres e nos hospitais...

Porém, apesar de alguns grupos o pedirem, como acontece já noutras Igrejas cristãs, o Papa argentino não permite vislumbrar a existência de mulheres ordenadas no sacerdócio ministerial:
“As mulheres sacerdotes”, isto não se pode fazer. O Papa São João Paulo II, em tempos de debate, depois de uma longa, longa reflexão, disse-o claramente. E não é porque as mulheres não tenham a capacidade. Senão veja: na Igreja, são mais importantes as mulheres do que os homens, porque a Igreja é mulher; é a Igreja, não o Igreja; a Igreja é a esposa de Cristo, e Nossa Senhora é mais importante do que Papas, bispos e sacerdotes. Há uma coisa que tenho de reconhecer: estamos um pouco atrasados na elaboração duma teologia da mulher. Temos de avançar mais nesta teologia.

O sucesso papal na visita aos Estados Unidos
Tendo sido a primeira vez que visitou os Estados Unidos, mas tendo falado ao Congresso e às Nações Unidas e tendo sentido os banhos de multidão, o Papa foi questionado sobre como encara esse sucesso, que até o guindou ao estatuto de “estrela”. E a sua resposta foi como segue:  
Não sei se tive sucesso ou não. Mas tenho medo de mim mesmo, porque me sinto sempre – não sei como dizer – fraco, no sentido de não ter poder. Depois, o poder é também uma coisa passageira: hoje existe, amanhã não... É importante se, com o poder, consegues fazer algum bem. E Jesus definiu assim o poder: o verdadeiro poder é servir, prestar serviço, fazer os serviços mais humildes. E eu tenho ainda de avançar por este caminho do serviço, porque sinto que não faço tudo o que devo fazer. Este é o sentido que tenho do poder.

Quanto à hipótese de ser bom para a Igreja que o Papa seja uma estrela, Francisco explicou em estilo bem coloquial:
Sabes qual era o título que usavam os Papas e que se deve usar? “Servo dos servos de Deus”. É um pouco diferente de estrela! As estrelas são bonitas quando as olhamos; eu gosto de olhar para elas, quando o céu está sereno no Verão... Mas o Papa deve ser – deve ser – o servo dos servos de Deus. Sim, nos mass media, usa-se isso; mas há outra verdade: quantas “star” vimos nós, que depois se apagam e caem... É uma coisa passageira. Pelo contrário, ser servo dos servos de Deus, isto é belo! Não passa. Não sei que mais dizer. É assim que eu penso.
*** 
Enfim, é um balanço de doutrina sobre a Igreja, sobre Deus, sobre o sentido do poder-serviço e sobre o matrimónio; de espiritualidade expressa na oração e no perdão pedido, dado, recebido ou não aceite; de tacto pastoral, na atenção ao sofrimento do povo, dos bispos, no apreço pelo trabalho de todos, nomeadamente as religiosas e os sacerdotes; de dimensão política humana, social e de relação internacional; de postura humanitária contra a guerra, a exploração, a fome e de respeito pela dignidade humana e pelos direitos humanos; em suma, de entendimento profícuo do exercício do ministério Petrino.
De facto, Habemus Papam!

2015.09.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A XXXI JMJ e o Ano da Misericórdia

Assinada com data do passado dia 15 de agosto, foi publicada hoje, dia 29 de setembro, a Mensagem do Papa Francisco para a XXXI Jornada Mundial da Juventude 2016, cujo epicentro se localizará em Cracóvia.
Por vontade do Pontífice, a JMJ de 2106 circula em torno do tema Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7), devidamente preparado e meditado – num longo e exigente caminho – com a meditação da bem-aventurança Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,3), em 2014, e com a da bem-aventurança “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8), em 2015.
Pode hoje dizer-se que o Ano da Misericórdia, em cujo decurso recai a JMJ de 2016, não foi uma ideia repentina de Francisco, mas terá sido gerada, pelo menos, no início do seu exercício do ministério o Petrino e acalentada desde então. Disto parecem ser testemunho as citações que, a propósito, o Papa faz de suas intervenções anteriores.
Se o 15 de agosto, significativa solenidade da Assunção de Maria, põe em evidência o cântico da misericórdia de Deus entoado pela mãe de Jesus – a Sua misericórdia se estende de geração em geração (Lc 1,50) – o 29 de setembro, festa dos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, constitui a expressão da comunicação e concretização da misericórdia divina entre os homens. Miguel, o arcanjo do grito Quem como Deus, é o protetor da Igreja de Deus e guia do cristão; Gabriel, o mensageiro da Encarnação (Deus, graças ao seu coração de misericórdia, visita-nos lá das alturas como sol nascente e vive com os homens – cf Lc 1,78; Jo 1,14), tornou-se o patrono das telecomunicações; e Rafael, por antonomásia a medicina de Deus (Deus que em Jesus Cristo revelou o seu rosto misericordioso na compaixão pelos pobres, doentes, pecadores e marginalizados), é conselheiro, companheiro de viagem, defensor e médico dos que precisam.
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O Papa não esconde o seu desígnio de, inserindo a JMJ no Ano Santo da Misericórdia, fazer dela “um verdadeiro e próprio Jubileu dos Jovens a nível mundial”, aduzindo que “não é a primeira vez que uma jornada mundial de juventude coincide com um Ano Jubilar. Tal sucedeu durante o Ano Santo da Redenção (1983/1984), em que São João Paulo II convocou pela primeira vez os jovens de todo o mundo para o Domingo de Ramos; e durante o Grande Jubileu do ano 2000, ano em que mais de dois milhões de jovens, provenientes de cerca 165 países, se reuniram em Roma para a XV JMJ. Também agora Francisco está convicto de que “o Jubileu dos Jovens em Cracóvia será um dos momentos fortes deste Ano Santo”.
Depois, explica pacientemente o sentido do ano jubilar:
 - O texto bíblico do capítulo 25 do livro do Levítico ajuda a compreender o significado do jubileu de Israel: de 50 em 50 anos, os judeus ouviam a trombeta (jobel) que os convocava (jobil) para um ano santo de reconciliação (jobal) para todos. Nele se devia recuperar ou reforçar a boa relação com Deus, com o próximo e com a criação, estribada na gratuidade. Assim, se promovia, por exemplo, o perdão das dívidas, particular ajuda a quem caíra na miséria, a melhoria das relações interpessoais e a libertação dos escravos.
- No fim dos tempos, “Jesus Cristo veio anunciar e realizar o tempo perene da graça do Senhor, levando a boa nova aos pobres, a liberdade aos prisioneiros, a vista aos cegos e a libertação aos oprimidos” (cf Lc 4,18-19). Jesus fez a leitura do livro de Isaías (Is 61,1-2), mas omitiu o segmento “e o dia em que o nosso Deus fará justiça” – o que irritou os ouvintes, por alegadamente não assumir a “Bíblia” hebraica por inteiro, o que chegou ao rubro quando perceberam que o Nazareno estava a aplicar a si a profecia de Isaías. Não obstante, é n’Ele e no seu Mistério Pascal que se realiza plenamente o sentido mais profundo do jubileu.
- À convocação dum jubileu pela Igreja em nome de Cristo deve corresponder a vivência, por parte de todos, de um tempo extraordinário de graça. E, particularmente neste, a Igreja – chamada a oferecer abundantes “sinais da presença e proximidade de Deus, a despertar nos corações a capacidade de olhar para o essencial” – deve “reencontrar o sentido da missão que o Senhor lhe confiou no dia de Páscoa: ser instrumento da misericórdia do Pai”.
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Sendo o lema do ano jubilar misericordiosos como o Pai, importa refletir sobre o sentido da misericórdia divina:
- O Antigo Testamento usa, para exprimir a semântica da misericórdia vários termos, sendo os mais significativos hesed e rahamim. O primeiro exprime a indefetível fidelidade amorosa de Deus à sua Aliança com o povo. O segundo, que pode ser traduzido por entranhas, evoca o símbolo do ventre maternal para nos fazer compreender o amor de Deus pelo seu povo, igual ao da mãe pelo seu filho (cf Is 49,15). Um amor tal, que revela o genuíno rosto materno de Deus, implica criar dentro de cada um espaço para o outro, sentir, sofrer e alegrar-se com o próximo. Por outro lado, a misericórdia inclui a vertente concreta do amor fiel, gratuito e que sabe perdoar. A propósito, Francisco cita o profeta Oseias para dar visualização ao amor de Deus, comparado ao do pai extremoso pelo seu filho:
Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egito o meu filho. Mas, quanto mais os chamei, mais se afastaram (...). Entretanto, Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços, mas não reconheceram que era Eu quem cuidava deles. Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer (Os 11,1-4).

O comportamento errado do filho mereceria punição, mas o amor do pai é fiel e perdoa sempre ao filho arrependido. É este o rosto da misericórdia!
- Por seu turno, o Novo Testamento apresenta-nos a misericórdia divina (eleos) como síntese da obra de Jesus no mundo em nome do Pai (cf Mt 9,13). A misericórdia do Senhor “manifesta-se sobretudo quando Se debruça sobre a miséria humana e demonstra a sua compaixão por quem precisa de compreensão, cura e perdão”. E o Papa exclama com eloquência: “Em Jesus, tudo fala de misericórdia. Mais ainda, Ele mesmo é a misericórdia”.
- Sobre as três parábolas da misericórdia (vd Lc 15) – a ovelha tresmalhada, a moeda perdida e a conhecida por filho pródigo – Francisco constata que “impressiona a alegria de Deus, a alegria que Ele sente quando reencontra um pecador e o perdoa” e explicita:
Sim, a alegria de Deus é perdoar! Aqui está a síntese de todo o Evangelho. Cada um de nós é aquela ovelha tresmalhada, a moeda perdida; cada um de nós é aquele filho que esbanjou a própria liberdade, seguindo ídolos falsos, miragens de felicidade, e perdeu tudo. Mas Deus não Se esquece de nós, o Pai nunca nos abandona. É um pai paciente, espera-nos sempre! Respeita a nossa liberdade, mas permanece sempre fiel. E, quando voltamos para Ele, acolhe-nos como filhos na sua casa, porque nunca, nem sequer por um momento, deixa de esperar por nós com amor. E o seu coração fica em festa por cada filho que volta para Ele. Fica em festa, porque Deus é alegria. Vive esta alegria, cada vez que um de nós, pecadores, vai ter com Ele e pede o seu perdão.
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Referindo-se à cruz das JMJ, que os jovens amam por significar o dom de São João Paulo II e que acompanha estes encontros mundiais desde 1984, perspetiva as muitas verdadeiras e próprias conversões de jovens – para lá  de outras mudanças positivas na vida dos jovens – a partir do encontro da singeleza daquela cruz – “o sinal mais eloquente da misericórdia de Deus. E aponta o comportamento de um dos malfeitores que foi crucificado ao lado de Jesus: não lançou insultos como o seu companheiro de malfeitoria, mas reconhece ter errado e volta-se para o Senhor clamando: Jesus, lembra-Te de mim, quando estiveres no teu Reino. Jesus fita-o com misericórdia e assegura: Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso (cf Lc 23,32.39-43). Torna-se imperioso que nos identifiquemos com aquele que, tendo sido malfeitor, “se reconhece necessitado da misericórdia divina e a implora de todo o coração”. E o Papa afiança-nos que, “no Senhor, que deu a sua vida por nós na cruz, encontraremos sempre o amor incondicional que reconhece a nossa vida como um bem e sempre nos dá a possibilidade de recomeçar”.
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Sublinhando “a alegria extraordinária de sermos instrumentos da misericórdia de Deus”, Francisco ensina que, iluminados pela Palavra de Deus, sentiremos a felicidade expressa na dádiva a Deus e ao próximo, no seguimento da espiritualidade da 1.ª carta de São João:  
Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor. (…) É nisto que está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nós devemos amar-nos uns aos outros (1Jo 4,7-11).

Depois, ilustra a doutrina e espiritualidade expostas com o exemplo do bem-aventurado Piergiorgio Frassati, um jovem que assumira o que significa ter um coração misericordioso, sensível aos mais necessitados, dando-lhes muito mais do que meras coisas materiais, dando-se a si mesmo, disponibilizando tempo, palavras, capacidade de escuta; e Santa Faustina, apóstola humilde da Misericórdia Divina (através da oração e das ações de misericórdia espirituais e corporais) nos nossos tempos e canonizada por São João Paulo II no ano jubilar de 2000.
Não tiveram qualquer inibição em seguir à risca o cap. 25 do Evangelho de Mateus: “Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40).
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Finalmente, perante o cansaço de tantos jovens neste mundo tão dividido, no qual se digladiam partidários de diferentes facções, existem muitas guerras e há até quem use a própria religião como justificação da violência”, o Pontífice crê que “temos de suplicar ao Senhor que nos dê a graça de ser misericordiosos com quem nos faz mal, como Jesus que, na cruz, assim rezava por aqueles que O crucificaram: Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem (Lc 23,34). E, acreditando que “o único caminho para vencer o mal é a misericórdia”, já que, sendo muito necessária a justiça, sozinha, não basta – justiça e misericórdia devem caminhar juntas – Francisco deseja a união de todos “numa oração coral, saída do mais fundo dos nossos corações, implorando que o Senhor tenha misericórdia de nós e do mundo inteiro”.
Além disso, indica Cracóvia como ponto de convergência da JMJ de 2106, cidade onde espera os jovens a sombra tutelar de Santa Faustina e de São João Paulo II.
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Quer-me parecer que o tom habitual das palavras usuais do Papa – contra a economia que mata, o deus dinheiro, o esmagamento dos pobres e o descarte dos incómodos – se radica no culto da misericórdia divina e no acatamento filial da profunda linha da espiritualidade do Papa polaco que instituiu o Dia da Divina Misericórdia, em 2000, e inaugurou o santuário do Senhor Misericordioso em Cracóvia, no ano de 2002.
É o fio condutor do pontificado contemporâneo no seu melhor!

2015.09.29 – Louro de Carvalho

“Os partidos” ou “o partido”?

O n.º 1177 da revisa Visão, de 24 a 30 de setembro, insere, na sua página 34, um texto de Sónia Sapage sob o título “Votos ou Mandatos – eis a (falsa) questão”. Refere a jornalista que, “em caso de empate técnico, será convidado a formar governo o líder do partido que tiver mais possibilidade de o fazer passar no Parlamento”.
Penso que assim deveria ser. No entanto, tal desejo não decorre necessariamente da leitura do texto constitucional. E, se a autora do texto ousa destacar o detalhe “do partido”, deveria também, no texto constitucional atender ao pormenor “os partidos”, que no corpo do referido texto jornalístico vem no parágrafo anterior ao do daquele detalhe. Com efeito, o art.º 187.º da CRP tem a seguinte redação, a partir da 1.ª revisão constitucional (vd LC n.º 1/1982, de 30 de setembro, aí no art.º 190.º):
1. O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.
2. Os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro.

Sendo assim, o PR (Presidente da República) – ele e só ele – fará a sua interpretação do texto. Não obstante a CRP não impor uma ou outra solução, parece-me que, em caso de divergência-limite entre o número de votos a favor de um partido ou coligação e o de mandatos a favor de outro/a, o PR deverá optar pelo partido ou coligação que tiver obtido maior número de mandatos (dado o caráter instrumental dos mandatos em detrimento dos votos), a menos que a outra componente do texto, a audição dos partidos com assento parlamentar, lhe garanta melhor a outra hipótese como forma iniludível de aceitar a viabilização do programa do governo e do 1.º orçamento.
Algo parecido se deve concluir para o caso de nenhuma das formações partidárias (Partido ou coligação. Recorde-se que em 1980, havia duas grandes coligações em concorrência, a FRS e a AD) obter a maioria absoluta dos mandatos. Assim, no caso de se verificar que uma formação partidária obtém uma maioria relativa dos votos convertidos em mandatos, será sensato que, à partida, o PR convoque o líder da força partidária vencedora para formar governo. É o que parece aconselhar uma leitura imediata do art.º 187.º. No entanto e porque o texto constitucional não limita o PR a esta opção, cumpre-lhe colocar outras hipóteses, sobretudo se for possível constituir uma maioria parlamentar clara, coerente e estável.
***
Entretanto, como parece que nestas eleições tudo pode acontecer, alguns constitucionalistas encarregaram-se de lançar ou deixaram instalar a confusão através da leitura apressada do art.º 22.º da lei eleitoral para a Assembleia da República. Da leitura que fiz do texto de Sónia Sapage não concluí inequivocamente que os constitucionalistas citados quisessem prender o PR a uma solução. Reconhecem, sim, a dificuldade, e até apontam uma ou outra via de solução de que o PR pode dispor para garantir a formação do governo e a viabilização da passagem parlamentar do programa do governo (que não precisa de aprovação expressa, bastando que nenhuma moção de censura apresentada por algum partido seja aprovada) e a aprovação do orçamento.
O predito art.º 22.º é citado só em parte. Com efeito, o seu n.º 2 estabelece que “as coligações deixam de existir logo que for tornado público o resultado definitivo das eleições, mas podem transformar-se em coligações de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º do Decreto-Lei nº 595/74, de 7 de novembro”. Ora, porque só foi transcrita a parte sublinhada parece que a articulista de Visão faz a correta interpretação. Porém, deve ter-se em conta a segunda parte do n.º 2, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa “mas”.
Pode acontecer, nestes termos, logo que a certeza dos resultados eleitorais se vislumbre, que os líderes dos partidos que formam a coligação com fins eleitorais a transmutem em coligação de partidos políticos. E o efeito de coligação eleitoral desfeita deixa de fazer sentido. E, no processo de escolha, o PR ouvirá os partidos; e os partidos que integram a coligação podem seguir o mesmo teor de proposta e ter negociado já apoios.
Se o PR tivesse, por imperativo constitucional com base no desfazer-se da coligação, de seguir a orientação que parece transparecer no artigo de Sónia Sapage, tal orientação valeria também no caso de uma coligação ter obtido a maioria absoluta, já que o número dos mandatos de um só dos partidos que a constituem podia não ser superior ao dos de outro partido que não integrasse a dita coligação.
Ademais, só faz sentido falar de empate técnico em termos eleitorais se considerarmos as sondagens ou as projeções; no “pós-eleições”, o empate ou é real ou não existe.
Leia-se, para dissipar dúvidas, com atenção a totalidade do art.º 22.º da lei eleitoral em vigor (coligações para fins eleitorais):
1 – As coligações de partidos para fins eleitorais devem ser anotadas pelo Tribunal Constitucional, e comunicadas até à apresentação efetiva das candidaturas em documento assinado conjuntamente pelos órgãos competentes dos respetivos partidos a esse Tribunal, com indicação das suas denominações, siglas e símbolos, bem como anunciadas dentro do mesmo prazo em dois dos jornais diários mais lidos.
2 – As coligações deixam de existir logo que for tornado público o resultado definitivo das eleições, mas podem transformar-se em coligações de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro.
3 – É aplicável às coligações de partidos para fins eleitorais o disposto no n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro.

Por outro lado, a remissão para o art.º 12.º do DL nº 595/74, de 7 de novembro, a primeira lei dos partidos políticos (LPP), deve entender-se como validamente feita para o art.º 11.º da atual lei dos partidos políticos (que mantém o mesmo teor) – a Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de maio, e que revoga o Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro. Veja-se o art.º 11.º (coligações):
1 – É livre a constituição de coligações de partidos políticos.
2 – As coligações têm a duração estabelecida no momento da sua constituição, a qual pode ser prorrogada ou antecipada.
3 – Uma coligação não constitui entidade distinta da dos partidos políticos que a integram.
4 – A constituição das coligações é comunicada ao Tribunal Constitucional para os efeitos previstos na lei.
5 – As coligações para fins eleitorais regem-se pelo disposto na lei eleitoral.

Sobre as coligações para fins eleitorais e coligações permanentes há que esclarecer o seguinte:
O n.º 2 do art.º 22.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da Republica distingue entre coligações eleitorais, constituídas especificamente para uma determinada eleição nos termos da lei eleitoral, e coligações permanentes de partidos, constituídas por tempo indefinido nos termos da LPP. Dado o fim específico que prosseguem, as coligações eleitorais (e apenas estas) extinguem-se com a divulgação dos resultados definitivos da eleição, podendo, contudo transformar-se em coligações permanentes de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 11.º da LPP.
Atualmente, a única coligação permanente é a CDU (Coligação Democrática Unitária), constituída pelo Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), que não carece de ser anotada pelo TC para cada nova eleição, devendo contudo, em cada processo de apresentação de candidaturas a um ato eleitoral, fazer prova bastante de que os competentes órgãos dos partidos coligados deliberaram apresentar listas conjuntas. A par desta coligação, formou-se a coligação PAF (Portugal à Frente) para os partidos PSD e CDS disputarem as próximas eleições. Transformar-se-á em coligação permanente, em consonância com a toada de Passos “amigos para sempre”, acompanhando a tuna académica do IP de Bragança ou será que Portas preferirá “um dia eu vou partir”?
Os partidos que integram coligações permanentes podem concorrer às eleições em listas conjuntas, sem necessidade, para cada eleição, de cumprirem os formalismos inerentes de anotação no TC (Tribunal Constitucional), para efeitos de renovação do controlo da regularidade da sua constituição, bem como da sua denominação, sigla e símbolo. No entanto, os competentes órgãos dos partidos assim coligados têm de fazer prova bastante, no processo de apresentação de candidaturas, de que deliberaram apresentar listas conjuntas (TC 267/85). Vd CNE, Lei Eleitoral para a Assembleia da República – anotada e comentada, pgs 62-63.
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O art.º 187.º da CRP configura um preceito fundamental para a estruturação do governo. São três os elementos essenciais do sistema: o poder inicial do PR, mediante a escolha do PM; os limites provindos da vertente parlamentar; e o papel crucial do PM na formação do governo.
Constitucionalmente, é um ato próprio do PR a escolha direta do PM, ao passo que a escolha do governo é também um poder seu, mas exercido mediante a pessoa do PM. É poder próprio, mas não discricionário, porque tem de considerar a composição da AR (Assembleia da República), ou seja, os resultados eleitorais das últimas eleições e a sua projeção na AR.
No entanto, a CRP não impõe que o PR faça recair a escolha de PM na pessoa do líder do partido mais votado, mesmo que maioritário, nem que o PM seja escolhido de entre os seus dirigentes. É que não há eleições para primeiro-ministro, embora, sobretudo no caso de os resultados das eleições gerarem uma maioria parlamentar inequívoca, o PR fique com a sua capacidade de decisão bastante limitada.
Também não está constitucionalmente excluída a formação de governos à margem do quadro partidário – como sucedeu com os governos de iniciativa presidencial – embora a prática o dificulte cada vez mais, o que pode acontecer no início de legislatura ou durante a mesma, no caso de se esgotarem as fórmulas possíveis de base parlamentar, sobretudo se for necessário formar um governo encarregado da gestão do país e da preparação de novas eleições.
São situações-limite aquelas em que, por exemplo, venha a eclodir uma crise política depois das eleições que leve a alteração significativa na correlação das forças partidárias ou a divisões internas no partido maioritário.  
E, embora a prudência possa induzir o PR, no quadro da cooperação entre os poderes, a tentar acautelar a viabilização do programa do Governo, não está constitucionalmente obrigado a fazê-lo, já que a responsabilidade dessa matéria – no âmbito da separação dos poderes – recai sobre o Governo, que apresenta o programa, e sobre a AR, que o rejeita ou deixa passar.
Por outro lado, a audição aos partidos com assento parlamentar – feita diretamente pelo PR e não por interposta pessoa, embora sem prejuízo de contactos exploratórios – deve ocorrer antes da nomeação formal do PM. Todavia, o PR não tem de auscultar os partidos sobre o nome da pessoa a designar nem está previsto um tempo máximo para a nomeação formal do PM, como este, depois de indigitado, não está obrigado ao cumprimento de um prazo, restando-lhe o necessário tempo para negociações partidárias e contactos de personalidades com vista à formação do Governo. E até à nomeação e posse (atos simultâneos) do novo governo, mantém-se em funções o governo cessante, que será exonerado aquando da nomeação e posse do novo governo (cf CRP, art.º 186.º/4).
Esclareça-se que, em termos constitucionais, as funções do PM se iniciam com a sua posse e cessam com a sua exoneração pelo PR (cf CRP, art.º 186.º/1); e as funções dos restantes membros do Governo iniciam-se com a sua posse e cessam com a sua exoneração ou com a exoneração do PM (cf CRP, art.º 186.º/4).
Pode o PR convocar o Conselho de Estado? Pode se quiser e julgar útil tal medida. Nada o impede nem obriga, ao invés do texto original que determinava: “o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho da Revolução e os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais (cf n.º 2 do art.º 190.º da CRP, texto de 1976). Os poderes do Conselho da Revolução enquanto órgão de consulta do PR passaram para o Conselho de Estado, mas o desta disposição constitucional eclipsou-se no quadro dos poderes genéricos deste órgão, nomeadamente o da alínea e) do art.º 145.º da CRP: pronunciar-se nos demais casos previstos na Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar.
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Pelo exposto se pode ver como a singularidade destas eleições pode trazer à ribalta da política mais factos novos. O Papel deste PR, a quem não assiste a faculdade de dissolver o Parlamento (vd CRP, art.º 172.º/1), pode resultar bastante espinhoso, porque, bem aconselhado ou não, é ele que tem de interpretar a justa medida dos seus poderes face à CRP e aos resultados eleitorais. Não sei mesmo se os partidos mais sedentos do poder (da sua manutenção ou da sua aquisição) se ficarão pelo habitual escrupuloso respeito dos resultados ou se virão a criar factos novos.

2015.09.28 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Brincar à autonomia de escola…impondo e amarrando

Até há relativamente pouco tempo produzi textos de reflexão sobre a marcha da autonomia nas escolas desde que tal atributo passou a ser reconhecido às escolas, embora com as limitações que naturalmente se impõem. Embora nada tenha escrito ex professo em torno do tema em relação ao pós-publicação do Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril, que define o regime de autonomia, administração e gestão (RAAG), alterado quatro anos depois pelo Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, já tenho deixado a perceber o meu entendimento sobre a matéria.
A talho de foice, diga-se que é correto definir autonomia de escola como a
Faculdade reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da ação social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira, no quadro das funções, competências e recursos que lhe estão atribuídos” (vd art.º 8.º do RAAG).

No projeto do DL n.º 75/2008, a autonomia era meramente a faculdade “concedida”.
Aceita-se perfeitamente todo o art.º 9.º e todo o art.º 9.º-A do RAAG. Porém, impor um número máximo de 21 dos elementos do órgão de direção estratégica (Conselho Geral) e tipificar a sua composição obrigatória (cf art.º 12.º) esbarra com o conceito de autonomia e com a diversidade de contextos. No projeto do DL n.º 75/2008, constava a proibição de um professor presidir ao conselho geral (CG) – era a capitis diminutio do professor. Agora o professor pode presidir, mas o somatório dos professores e dos funcionários não pode ultrapassar 50% da totalidade dos membros do CG. Se o número de elementos é impar, é óbvio que a divisão de número ímpar por 2 nunca dá número inteiro.
Depois, os professores e funcionários do CG continuam sujeitos ao poder hierárquico do diretor, o que faz com que um bom quinhão do CG se iniba na tomada da palavra e na votação das diversas matérias ou se torne um grupo satélite do diretor. Por outro lado, o facto de o CG reunir ordinariamente uma vez por trimestre (vd art.º 17.º) induz a pequena importância que se dá habitualmente a este órgão de direção estratégica.
Quanto ao órgão de administração e gestão, não vale a pena esconder que obrigar todas as escolas ou agrupamentos ao modelo único de gestão, impondo o órgão unipessoal, vai desnecessariamente contra o conceito de autonomia e presta-se a equívocos. Com efeito, encontrar um rosto de primeiro responsável perante o MEC e a Comunidade podia bem, como dantes, consubstanciar-se nas competências do órgão colegial. Depois, assume-se como poderes do diretor alguns que incumbiam dantes ao órgão colegial conselho executivo. Dou como exemplo a competência da alínea d) do n.º 4 do art.º 20.º – distribuir o serviço docente e não docente. É óbvio que ninguém quer esse poder, mas há que ter em conta que era poder do órgão colegial anterior (nas escolas que dispunham desse órgão ou do diretor executivo, nas escolas de gestão unipessoal), mas é preciso observar os critérios de ordem legal, pedagógica e administrativa.
Ademais, é excrescente e atentatória da autonomia a competência estabelecida no n.º 6 do art.º 20.º – o diretor exerce ainda as competências que lhe forem delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal. Porque não remeter para o regime de parceria?
Se considerarmos a composição do conselho pedagógico (CP), temos de referir, quanto ao número máximo dos seus elementos, o que se disse do CG. E voltou-se atrás, ao exigir que o diretor seja por inerência o presidente do CP (vd art.º 32.º).
O Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, altera o processo de designação dos coordenadores de departamento curricular, que eram de nomeação do diretor de entre os professores titulares em exercício de funções no respetivo departamento. Como acabou a categoria de professor titular, por força do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, o art.º 43.º do RAAG dispõe:
- O número de departamentos curriculares é definido no regulamento interno do agrupamento de escolas ou da escola não agrupada, no âmbito e no exercício da respetiva autonomia pedagógica e curricular (n.º 3) – em vez dos seis existentes;
- O coordenador de departamento curricular deve ser um docente de carreira detentor de formação especializada nas áreas de supervisão pedagógica, avaliação do desempenho docente ou administração educacional (n.º 5);
- O coordenador de departamento é eleito pelo respetivo departamento, de entre uma lista de três docentes, propostos pelo diretor para o exercício do cargo (n.º 7).

 O n.º 4 dispõe sobre as condições em que não possa ser dado estrito cumprimento ao estabelecido no n.º 5:
Quando não for possível a designação de docentes com os requisitos definidos no número anterior, por não existirem ou não existirem em número suficiente para dar cumprimento ao estabelecido no presente decreto-lei, podem ser designados docentes segundo a seguinte ordem de prioridade: docentes com experiência profissional, de pelo menos um ano, de supervisão pedagógica na formação inicial, na profissionalização ou na formação em exercício ou na profissionalização ou na formação em serviço de docentes; docentes com experiência de pelo menos um mandato de coordenador de departamento curricular ou de outras estruturas de coordenação educativa previstas no regulamento interno, delegado de grupo disciplinar ou representante de grupo de recrutamento; e docentes que, não reunindo os requisitos anteriores, sejam considerados competentes para o exercício da função.
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Mesmo admitindo que o RAAG era um bom documento, o seu mérito é a cada passo torpedeado por legislação complementar diversificada de execução prática em que tudo se regulamenta ao pormenor (e por inúmeras e assíduas indicações de frequência quase diária) ficando remetidos para a autonomia aspetos secundários, residuais ou de maior desconforto. Estão neste caso os decretos-lei que definem o currículo do ensino básico e do ensino secundário (nomeadamente o DL n.º 139/2012, de 5 de julho) que deixam às escolas a decisão de optar por tempos letivos de 45 minutos ou de 50 e, consequentemente, pela condicente grelha curricular. Estão neste caso os despachos normativos que anualmente se publicam sobre a organização do ano letivo – autêntica floresta de indicações quase contraditórias em relação ao ECD-Estatuto da Carreira Docente (reformulado profunda e largamente pelo DL n.º 15/2007, de 19 de janeiro, com alterações significativas introduzidas pelo DL n.º 75/2010, de 23 de junho, e pelo DL n.º 41/2012, de 21 de fevereiro). Estão neste caso os despachos sobre o calendário escolar, de incidência anual, os despachos sobre matrículas e os despachos normativos sobre a avaliação dos alunos do ensino básico e as portarias da avaliação dos alunos do ensino secundário.
Tudo se regulamenta, deixando para a autonomia escolar (leia-se “diretor”) alguma coisinha em que ele mostre que pode, quer e mande.
E, depois, por cada afirmação de autonomia, vem uma medida de entrega da gestão escolar às autarquias (art.º 2.º do DL n.º 144/2008, de 28 de julho, e o DL n.º 30/2015, de 12 de fevereiro), o que me faz supor que as escolas ficam autónomas com a autonomia (?!) dos municípios, como Oliveira Salazar sobre a independência das colónias fazia saber à ONU: são independentes por terem adquirido a independência juntamente com a mãe pátria.
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Ora, no quadro da abertura do ano letivo de 2015/2016 e segundo o que se lê no site respetivo, o MEC (Ministério da Educação e Ciência) enviou, a 22 de setembro passado, para publicação no Diário da República, os dois diplomas habituais de regulação da avaliação de alunos no ensino básico e secundário: o despacho de avaliação do ensino básico (Despacho normativo n.º 13/2014, de 15 de setembro) e a atualização da portaria de avaliação do ensino secundário (Portaria n.º 243/2012, de 10 de agosto).
Poucas mudanças são introduzidas. E estas consagram essencialmente as atualizações necessárias e já anunciadas.
Assim, verificam-se ajustamentos na avaliação dos alunos no Ensino Básico em função da introdução do Inglês como disciplina obrigatória a partir do 3.º ano de escolaridade; consagra-se a incorporação da prova Teste Preliminar de Inglês para Escolas (Preliminary English Test for Schools – PET) na classificação final dos alunos do 9.º ano, o que traduz o reforço da importância curricular da disciplina de Inglês, que passou de opcional a obrigatória durante sete anos de escolaridade.
No 1.º ciclo, a introdução do inglês a partir do 3.º ano gera algumas mudanças nos critérios de aprovação dos alunos, com vista à valorização do ensino desta língua. No 9.º ano, no fim do ensino curricular obrigatório de Inglês, a prova PET permitirá proceder a uma avaliação normativa da proficiência dos alunos com normas e critérios internacionais. O MEC indica como peso para esta avaliação na classificação final dos alunos um valor a determinar por cada escola entre 20 e 30% da classificação final do aluno nesta disciplina. Cá está: mais um para a autonomia residual sobre 10%.
É ainda consagrada, no Ensino Básico, a já legislada autonomia na avaliação dos alunos nos Estabelecimentos de Ensino com Contrato de Autonomia e dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo. Boa, dá para perguntar quais são os elementos específicos, os parâmetros, os critérios e os procedimentos dessa autonomia avaliativa. Facilitem a vida a essas escolas e digam se podem ou não inflacionar as notas!
Quanto ao Ensino Secundário, é dada uma maior autonomia a todas as escolas no que se refere à avaliação na disciplina de Português. A oralidade, que tinha o peso fixo de 25% na nota dos alunos, passa a ter o peso mínimo de 20%. Agora poderá ir a autonomia até 25% ou até aos 100%? Valerá 5%?
Refira-se que já estão publicados: o Desp. Norm. n.º 17-A/2015, de 22 de setembro (avaliação no ensino básico), e a portaria n.º 304-B/2015, de 22 de setembro (avaliação no ensino secundário).
Depois, ironiza o MEC: a avaliação é um elemento fundamental do ensino, permitindo verificar o grau de aprendizagem dos alunos. Que bonito! E: com a publicação destes diplomas anuais ficam disponíveis para as escolas todos os elementos necessários. Apetece-me exclamar: Porreiro, pá!
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Por seu turno, a Anproport (a nova Associação Nacional de Professores de Português) enviou carta ao Ministro da Educação a solicitar que revogue a alteração da avaliação da disciplina, por ele aprovada esta semana. No diploma, já publicado em Diário da República, estabelece-se que, na disciplina de Português, para a Oralidade o peso de pelo menos 20% no cálculo da classificação dos alunos, alterando assim os 25% que lhe tinham sido atribuídos em 2012. (Note-se que Anproport ignora que esta percentagem já vem determinada desde 2007, pela Portaria n.º 1322/2007, de 4 de outubro, e não apenas desde 2012).
Porém, pelos vistos, Anproport não defende nenhum dos valores percentuais, já que considera que a determinação, pelo MEC, de “um determinado peso no cálculo da classificação a atribuir a um dos domínios do programa vai contra a autonomia das escolas”, as quais apenas “deveriam cumprir o que está estipulado nos documentos programáticos”, como é o caso do Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Secundário, homologado em Janeiro de 2014, defende a associação. Ora, na carta enviada a Nuno Crato, “não só não é feita essa distribuição [peso de cada área na classificação], como o número de tempos letivos sugeridos para a Oralidade é, em todos os anos do ensino secundário, sempre o menor dos cinco domínios”. Os domínios estabelecidos no novo programa, que a Anproport elogiou, da disciplina são Oralidade, Leitura, Educação Literária, Escrita e Gramática.
Também a Anproport frisa que “em muitas escolas a discrepância entre a classificação interna [atribuída pelos professores] e a classificação de exame obtida pelos alunos tem sido imputada ao excessivo peso conferido à Oralidade, o que faz com que falte tempo para as necessárias atividades de Leitura, de Escrita e de Gramática, e estas sejam classificadas na avaliação interna com menor peso” do que nos exames.
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Também a FNE (Federação Nacional de Educação), liderada pelo socialdemocrata João Dias da Silva critica as alterações às regras de avaliação do ensino básico, justificadas com as mudanças introduzidas na disciplina de Inglês, que passa a ser obrigatória a partir do 3.º ano de escolaridade e que terá exame no 9.º ano a contar para a classificação final do aluno. Para a FNE, esta é uma decisão “inoportuna, desnecessária e sem consenso”, entendendo-se mal
Que, em final de mandato, um ministro entenda alterar as regras de avaliação dos alunos do ensino básico, quando as decisões que toma não resultam de uma necessidade urgente e que, não tendo sido adotadas em tempo oportuno, deveriam aguardar a serenidade que se espera de um novo governante que dentro de dois meses deverá estar a iniciar funções”.
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Parece-me acertada a crítica formulada pela FNE. Já, quanto à posição da Anproport, entendo que deveria ter estudado melhor o dossiê no atinente à legislação em vigor e aos programas da disciplina. Remeter a avaliação das aprendizagens para os programas é inútil. O texto lacónico é comum ao programa do ensino básico e ao do secundário:
O DecretoLei n.º 139/2012, de 5 de julho, na sua redação atual, estabelece os princípios orientadores da organização, da gestão e do desenvolvimento dos currículos do Ensino Básico, bem como da avaliação dos conhecimentos adquiridos e das capacidades desenvolvidas pelos alunos destes níveis de ensino.
Os resultados dos processos avaliativos devem contribuir para a regulação do ensino, de modo que se possam superar, em tempo útil e de forma apropriada, dificuldades de aprendizagem, ao mesmo tempo que se reforçam os progressos verificados. Tal implica uma avaliação processualmente diversificada, em termos de estratégias e de recursos, que permita aos alunos uma maior consciência dos desempenhos esperados e dos progressos obtidos.
As Metas Curriculares que acompanham este Programa constituem o documento de referência de todos os processos avaliativos, de acordo com o estabelecido nos descritores de desempenho. A classificação resultante da avaliação interna no final de cada período traduzirá, portanto, o nível de consecução dos desempenhos descritos.
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Posto isto, ou o Governo mantém a legitimidade de regulamentar a avaliação via despacho ou portaria, o que não é aceitável, ou os conselhos pedagógicos devem, na definição de critérios de avaliação, ter em conta a distribuição percentual proposta pelos professores para cada um dos domínios da lecionação disciplina, em vez de determinarem administrativamente quantos testes por período e se o seu peso é de 50%... ou 70% em confronto com outros trabalhos, oralidade e atitudes e comportamentos que traduzem valores. Depois, o professor é que deveria ser responsável pela avaliação, cabendo ao conselho de turma intervir apenas em caso de manifesta incoerência entre o juízo do professor sobre o aluno e a classificação atribuída.
Mais: o professor deve, sim, elaborar a matriz de teste para sua orientação, correspondendo ao que efetivamente lecionou, e não para a fornecer aos alunos (o que o aluno medíocre pretende saber é o que efetivamente calha do teste e não os critérios), ao contrário das informações de exame do IAVE, já que, no dos exames, se trata de provas públicas, sujeitas a escrutínio, incluindo o pedido de revisão de classificação. De resto, “judicializar” a educação com intervenção, muitas vezes sem justificação razoável (outras vezes afrontosa), com pedidos de classificação interna, tendo em conta os testes ou a bondade natural do aluno e a eventual antipatia do docente… que educação!

2015.09.27 – Louro de Carvalho