terça-feira, 8 de setembro de 2015

Uma experiência genuína da misericórdia de Deus

É o grande objetivo do Papa Francisco para todos os cristãos no âmbito do Ano da Misericórdia. Para que todos os crentes possam desfrutar de “um verdadeiro momento de encontro com a misericórdia de Deus”, o mesmo é dizer que todos e cada um hão de fazer “uma experiência viva da proximidade do Pai”, o Pontífice escreveu, no passado dia 1 de setembro, uma carta a D. Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, com a qual se concede a indulgência por ocasião deste jubileu extraordinário.
Francisco, confiando na intercessão da Mãe da Misericórdia, a cuja proteção entrega a preparação deste Ano Santo, entende que a proximidade do tempo jubilar lhe permite “focar alguns pontos” importantes para levar os crentes a “sentir pessoalmente” a ternura de Deus, de modo que a fé de cada um “se revigore” e o seu “testemunho se torne cada vez mais eficaz”.
O Papa assegura que a misericórdia divina vem ao encontro de todos com o rosto do Pai que acolhe e perdoa, esquecendo completamente o pecado cometido”. Por isso, deseja vivamente que todos os fiéis, em cada Diocese ou como peregrinos em Roma, vivam intensamente a graça do Jubileu, pelo que espera que a indulgência jubilar “chegue a cada um como uma experiência genuína da misericórdia de Deus”.
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É de anotar que Francisco não utiliza a expressão “indulgência plenária”, mas a expressão “indulgência Jubilar”.
Na doutrina católica,indulgência (do nome latino indulgentia, que provém do verbo indulgeo, ser complacente, conceder) é o perdão concedido fora dos sacramentos – total (indulgência plenária) ou parcial (indulgência parcial) – da pena temporal devida, à justiça divina, pelos pecados que foram já perdoados, ou seja, do mal causado ao mistério da “comunhão dos santos” (professada no símbolo dos Apóstolos) em consequência do pecado já perdoado. A remissão é concedida pela Igreja Católica no exercício do poder das chaves (vd Mt 16,18-19; 18,18), por meio da aplicação dos superabundantes méritos de Cristo, da Virgem Maria e dos Santos, por algum motivo justo e razoável. Embora no Sacramento da Penitência (ou da Reconciliação) a culpa do pecado seja totalmente removida e, por conseguinte, cesse o castigo eterno devido ao pecado mortal (matéria grave, perfeito conhecimento e advertência e pleno consentimento), ainda permanece a pena temporal exigida pela justiça divina – exigência a ser cumprida na vida presente (sendo a penitência que o confessor manda rezar ou fazer o testemunho dessa necessidade) ou depois da morte, isto é, no chamado estado de Purgatório (daí a obrigação de rezar pelos defuntos, que podem precisar das orações e boas obras dos crentes). A indulgência oferece ao pecador penitente os meios para cumprir esta dívida durante a sua vida na terra, reparando o mal decorrente do pecado cometido.
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Para obter a indulgência, são necessárias várias condições cumulativas, que o Papa enuncia:
- O gesto preceituado por quem concede a indulgência, neste caso, “uma breve peregrinação rumo à Porta Santa, aberta em cada Catedral ou nas igrejas estabelecidas pelo Bispo diocesano, e nas quatro Basílicas Papais em Roma, como sinal do profundo desejo de verdadeira conversão;
- A celebração do Sacramento da Reconciliação e da santa Eucaristia, neste caso, com uma reflexão sobre a misericórdia;
- O desapego de qualquer sentimento de afeição ao pecado, ora referido como o “profundo desejo de verdadeira conversão”;
- A profissão de fé;
- A oração pelo Santo Padre e suas intenções, que Francisco explicita assim: “a oração por mim e pelas intenções que trago no coração para o bem da Igreja e do mundo inteiro”.
É claro que é muito difícil lucrar a indulgência plenária na sua plenitude, já que o desapego absoluto do pecado não é fácil. Talvez, por isso, o Bispo de Roma se centre na espiritualidade inerente a este jubileu extraordinário e prefira a indulgência jubilar a que os crentes acederão na medida da misericórdia divina (que é infinita) e na medida das suas disposições de alcançar essa misericórdia e de a distribuir generosamente pelos irmãos na fé e na humanidade.
De igual modo, o Papa estabelece que a indulgência jubilar se possa igualmente obter “nos Santuários onde se abrir a Porta da Misericórdia e nas igrejas que tradicionalmente são identificadas como Jubilares”.
Ademais, o Sumo Pontífice oferece um gesto especialmente cordial para um bom número de pessoas que não podem cumprir as condições normais de indulgência. Vêm, em primeiro lugar, os doentes, os idosos e os sós:
Para “quantos, por diversos motivos, estiverem impossibilitados de ir até à Porta Santa, sobretudo os doentes e as pessoas idosas e sós, que muitas vezes se encontram em condições de não poder sair de casa, para eles será de grande ajuda viver a enfermidade e o sofrimento como experiência de proximidade ao Senhor que no mistério da sua paixão, morte e ressurreição indica a via mestra para dar sentido à dor e à solidão”.

Para estes o Papa dispõe o seguinte:
“Viver com fé e esperança jubilosa este momento de provação, recebendo a comunhão ou participando na santa Missa e na oração comunitária, inclusive através dos vários meios de comunicação, será para eles o modo de obter a indulgência jubilar”.

Mas Francisco apresenta uma medida inusitada para os reclusos. Considerando que o Jubileu “constituiu sempre a oportunidade de uma grande amnistia, destinada a envolver muitas pessoas que, mesmo merecedoras de punição, todavia, tomaram consciência da injustiça perpetrada e desejam sinceramente inserir-se de novo na sociedade, oferecendo o seu contributo honesto”, o pensamento pontifical (o Papa faz a ponte entre Deus e todos os seres humanos e vice-versa) “dirige-se também aos encarcerados, que experimentam a limitação da sua liberdade”.
Para que “a todos eles chegue concretamente a misericórdia do Pai que quer estar próximo de quem mais necessita do seu perdão”, o Papa determina:
“Nas capelas dos cárceres poderão obter a indulgência, e todas as vezes que passarem pela porta da sua cela, dirigindo o pensamento e a oração ao Pai, que este gesto signifique para eles a passagem pela Porta Santa, porque a misericórdia de Deus, capaz de mudar os corações, consegue também  transformar as grades em experiência de liberdade”.
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Também a carta papal não esquece alguns dados tradicionais:
- A aplicação da indulgência obtida em prol dos defuntos. Assim:
“A indulgência jubilar pode ser obtida também para quantos faleceram. A eles estamos unidos pelo testemunho de fé e caridade que nos deixaram. Assim como os recordamos na celebração eucarística, também podemos, no grande mistério da comunhão dos santos, rezar por eles, para que o rosto misericordioso do Pai os liberte de qualquer resíduo de culpa e possa abraçá-los na beatitude sem fim.”.

- O compromisso na intensificação e ampliação da prática das obras de misericórdia. Neste sentido, o Papa declara:
“Eu pedi que a Igreja redescubra neste tempo jubilar a riqueza contida nas obras de misericórdia corporais e espirituais. De facto, a experiência da misericórdia torna-se visível no testemunho de sinais concretos como o próprio Jesus nos ensinou. Todas as vezes que um fiel viver uma ou mais destas obras pessoalmente obterá sem dúvida a indulgência jubilar. Daqui o compromisso a viver de misericórdia para alcançar a graça do perdão completo e exaustivo pela força do amor do Pai que não exclui ninguém. Portanto, tratar-se-á de uma indulgência jubilar plena, fruto do próprio evento que é celebrado e vivido com fé, esperança e caridade.”.

Parece ser, segundo o Pontífice, a aliança entre a intensa espiritualidade em torno da misericórdia divina, manifesta naqueles gestos indicados supra, e a sua concretização da mesma através das suas obras que pode levar efetivamente os crentes à consecução da indulgência jubilar em plenitude (Indulgência plenária?!).
- Uma concessão deveras extraordinária marcante do Jubileu. Neste caso, vem, primeiro, a referência expressa à prática do aborto e, depois, o atinente à Fraternidade de São Pio X.
Quanto ao aborto, é pena que a Comunicação Social se tenha fixado exclusivamente na mulher e não também (e de igual modo) nos instigadores, cúmplices e colaboradores. Vejamos como Francisco enquadra doutrinal e psicossocialmente a situação, de que se faz esta condensação:
“Um grave problema atual é a relação com a vida. Mentalidade muito difundida fez perder a sensibilidade pessoal e social pelo acolhimento duma nova vida. O drama do aborto é vivido por uns com uma consciência superficial, sem darem conta do gravíssimo mal que tal gesto comporta. Outros, vivendo-o como uma derrota, julgam que não ter outro caminho. Penso, de modo particular, nas mulheres que recorreram ao aborto. Conheço os condicionamentos que as levaram à decisão. É um drama existencial e moral. Encontrei muitas que traziam a cicatriz desta escolha sofrida e dolorosa no coração. O que aconteceu é profundamente injusto; contudo, só a verdadeira compreensão pode impedir que se perca a esperança. O perdão de Deus não pode ser negado a quem esteja arrependido, sobretudo quando com coração sincero se aproxima do Sacramento da Confissão para obter a reconciliação com o Pai.”.  

Depois vem a medida:
“Decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado. Os sacerdotes se preparem para esta grande tarefa sabendo conjugar palavras de acolhimento genuíno com uma reflexão que ajude a compreender o pecado cometido, e indicar um percurso de conversão autêntica para conseguir entender o verdadeiro e generoso perdão do Pai, que tudo renova com a sua presença.”.

Quanto à Fraternidade de São Pio X, na convicção de que o Ano Jubilar não exclui ninguém e porque, de diversas partes, alguns Bispos lhe fizeram referências acerca da boa fé e prática sacramental das pessoas que frequentam as liturgias da instituição, porém unidas à dificuldade de viver uma condição pastoralmente árdua, o Papa – confiado em que no futuro próximo se possam encontrar soluções para recuperar a plena comunhão com os sacerdotes e os superiores da Fraternidade determina:
“Movido pela exigência de corresponder ao bem destes fiéis, estabeleço por minha própria vontade que quantos, durante o Ano Santo da Misericórdia, se aproximarem para celebrar o Sacramento da Reconciliação junto dos sacerdotes da Fraternidade São Pio X, recebam válida e licitamente a absolvição dos seus pecados”.
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Não se percebe como plausível a omissão, pela Comunicação Social, da concessão feita no Ano Jubilar à Fraternidade de São Pio X por Francisco, sobretudo atendendo aos motivos invocados.
Sei que alguns acham pouco o determinado quanto à absolvição alargada do ato abortivo, por ser possível apenas durante um ano, enquanto outros acham que foi uma porta que se abriu irreversivelmente. Em todo o caso, gostaria de que o Papa tivesse determinado de modo igual para quantos se confessem de pecados cuja absolvição está, pelo direito, reservada ao bispo diocesano (mesmo que não os especificasse), como sinal de maior liberalidade misericordiosa. Não obstante, há que recordar que, em todas as dioceses, há o cónego penitenciário (ou padre com iguais prerrogativas, caso não haja cónegos; e o respetivo confessor pode reportar com nome fictício de penitente a confissão a essa entidade, podendo mandar em paz o penitente depois de o informar) com a faculdade ordinária de os absolver presencialmente. Mais: nalgumas dioceses, os padres, sobretudo os párocos, gozam dessa prerrogativa, sobretudo durante a Quaresma.
Ademais, é importante que se respire todo o sentido doutrinal, prático e espiritual do todo da carta, em articulação com a leitura da bula Misericordiae Vultus.

2015.09.08 – Louro de Carvalho

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