sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Não trazer casos judiciais para a campanha eleitoral…

É correntemente referida e aceite como politicamente correta a asserção de que não se trazem para a campanha eleitoral os casos judiciais. A asserção tem variantes, algumas mais sentenciosas, outras verdadeiramente aforísticas. Nas primeiras, incluem-se enunciados como “a justiça tem o seu tempo, a política tem o seu tempo”; e, nas segundas, inserem-se estribilhos como “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”.
Todavia, não podemos ignorar que as coincidências parecem desmentir esta postura assumida, ao menos aparentemente, por muitos. E, muitas vezes, as coincidências, tão semelhantes à realidade, criam na opinião dos cidadãos a ideia de que a justiça e a política dispõem de tempos sobrepostos e interdependentes, passando os professantes daqueles enunciados acima transcritos ou similares, feitos verdades, a ser encostados ao muro da hipocrisia ou da duvidosa inocência.
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O período eleitoral em curso tinha inexoravelmente de trazer às pantalhas do debate político casos de justiça. Há políticos arguidos, de pelo menos dois quadrantes partidários. E um dos quadrantes alberga – queira-se ou não – o ex-primeiro-ministro. Não vale a pena fazer de conta que o problema não existe, que não tem a relevância que alguns lhe querem atribuir ou que há de ser tratado exclusivamente por outrem.
Era inevitável que o nome e a obra de Pinto de Sousa fossem convocados para a campanha eleitoral, tanto assim que se tornou facto já em tempo de pré-campanha. E falta a campanha onde esperamos que não venha a valer tudo.
O atual líder do PS e, por força das eleições legislativas, candidato a primeiro-ministro tem de se habituar à ideia, que ensaiou no debate “tritelevisivo” com Passos Coelho, de fazer a catarse da herança de Sócrates. Tendo feito uma gestão adequada do caso no âmbito do congresso que o confirmou como líder, tardou demasiado em se colar à governança de 2005-2011 e, ao mesmo tempo, em demarcar-se dela. Mas fê-lo e importa que o volte a fazer sempre que necessário. Pode não ter sido suficiente para todos os ouvidos, mas foi claro ao referir que ele e o seu partido assumem toda a história de governação do partido desde o primeiro dia de atuação de Mário Soares como primeiro-ministro, passando por todo o consulado de António Guterres, até ao último dia do governo de Sócrates. Ademais, disse que era necessário acentuar as reais virtualidades e evitar os erros cometidos, mas que os tempos são outros e o programa agora é diferente. Por outro lado, entende que o debate político hoje é com ele, António Costa, e não com o ex-primeiro-ministro. De igual modo, já hoje, dia 11 de setembro, Carlos Zorrinho declarou que teve muito gosto em participar no governo socialista de 2005 a 2011 e que está disposto a discuti-lo nos contextos daquele tempo.
Por seu turno, o atual “recandidato” a primeiro-ministro tem declarado que não comenta casos de justiça. Porém, no aludido debate “tritelevisivo” mencionou por sete vezes o nome de Sócrates e os alegados erros da sua governação. Penso que lhe assiste toda a legitimidade de o fazer no âmbito do debate político. Porém, não me parece plausível que venha esclarecer que não o evocou enquanto caso de justiça, mas como governante e, sobretudo, como primeiro-ministro, ou que tenha passado como gato por brasas ante a alusão clara ao caso da parte de Paulo Rangel no contexto da universidade de verão/2015, do PSD, em Castelo de Vide.
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Se, do meu ponto de vista, se torna conveniente e quase obrigatório proceder à catarse de um passado problemático por parte daqueles sobre quem impende esse difícil ónus e se é legítimo a quem se situa num quadrante político de adversário fazer a evocação política desse passado, se efetivamente entende ter o direito e o dever de o fazer, não percebo por que motivo se escamoteia a situação ou se fazem distinções artificiais. Desde quando é que a apreciação do perfil de um primeiro-ministro, ex-primeiro-ministro, ministro e secretário de Estado pode ignorar o cidadão, o político ou, eventualmente, o seu estatuto de arguido, empresário, académico, etc.? Além de exercício artificioso, parece hipócrita, e é inútil e contraproducente.   
Continuo a pensar que, embora deva distinguir política de política partidária, a nossa Constituição (CRP) não consagra propriamente a “separação de poderes” (a que tantos apelam), mas antes a “interdependência dos poderes”, garantindo o mecanismo da não ingerência direta na sua organização e funcionamento e atribuindo-lhes as prerrogativas da autonomia e da independência, mas também a do controlo recíproco (no sistema de contrapesos), com a ressalva de que as decisões definitivas dos tribunais se sobrepõem às dos demais órgãos de soberania. Depois, a CRP, no atinente à organização do poder político, que reside no povo e em nome dele é exercido nos termos da CRP e pelos órgãos nela consagrados, estabelece como órgãos do poder político: o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. E define as normas fundamentais da organização e funcionamento desses órgãos do poder político e as relações entre eles, remetendo para o legislador ordinário a definição de outros normativos.
Ora, como é que se pode dizer que os tribunais e os operadores da justiça não são “política”? Pode o Presidente da República dizer que não é político (às vezes, alguns querem dizê-lo…), que o Parlamento (ou os deputados) não é político e igualmente que os tribunais não são “política”?
Depois, não podemos esquecer que o homem é de si um ser político. E aquele que tem contacto com a coisa pública, por maior exercício de abstração que faça, não deixa de se condicionar num ou noutro sentido pelo “quefazer” político. Ademais, o dever de analisar atos e disposições dos cidadãos em confronto com a lei e deliberar e decidir sobre a sua vida futura é eminente ação política, ação da pólis e em prol da pólis.
A separação artificial entre a política (da pólis grega: a cidade) e a cidadania (da civitas latina: a cidade) faz-me lembrar: a separação que alguns querem fazer entre o conhecimento científico do professor e a sua ação pedagógica (não funciona a pedagogia sem que haja suporte científico); a distinção entre um papa teólogo (Bento XVI) e um papa pastor (Francisco), como se o pastor pudesse fazer ação pastoral sem conhecimento teológico aprofundado; ou o Vaticano II, como concílio pastoral sem doutrina dogmática, como alguns pretendem.
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Entretanto, hoje veio para a ribalta da Comunicação Social uma declaração do Presidente da República, que se pôde ler na agência Lusa: “O Chefe de Estado acredita que os seus apelos têm contribuído de alguma forma para um ambiente ‘menos crispado e tenso’ durante a pré-campanha para as legislativas, fazendo votos para que os casos judiciais continuem a ficar de fora da campanha”.
Como deixei explicitado acima, isso não é bem assim. Disse-se, mas não se fez, quer pela coincidência dos factos quer pelas contradições declaratórias de alguns políticos. As próprias revistas de tiragem semanal contêm dossiês quer de casos predominantemente políticos quer de casos predominantemente de justiça.
Depois, Cavaco Silva diz:
“Comparando com campanhas anteriores, parece muito claro que o nível de crispação e de tensão é muito menor. Esta é a fase em que cabe aos partidos políticos explicar e esclarecer os portugueses sobre os seus programas e espero que se continue a fazer isso com serenidade”.
Primeiro, não é bem assim. Alguma crispação tem ocorrido. Um dos líderes políticos já está tremendamente rouco. Depois, ainda a procissão pré-eleitoral vai no adro. Além disso, a governança atual está favorecida por alguns números de alguma melhoria, ao passo que a governança de 2011 estava na fase de decréscimo; hoje nenhum Presidente da República acaba de ser reeleito para um segundo mandato; e nenhum Presidente apelou ao sobressalto democrático! Ademais, dadas as contradições inerentes ao processo, creio ser desconfortável e enervante, quer para Passos quer para Costa, recordar 2011.
Ao ser questionado se não teme que as questões de Justiça possam vir a perturbar o debate eleitoral, o Presidente reiterou o politicamente correto, afirmando que “de forma sensata todos os agentes que participam nesta campanha têm dito” que “os casos judiciais pertencem à Justiça”.
Mais declarou que não comenta, comentando, qualquer caso judicial e que bem espera que aquilo que tem sido o “comportamento bastante generalizado dos agentes políticos” se mantenha até ao fim.
Colocado perante o facto de Sócrates ter sido chamado ao debate, bem poderia o Presidente ter-nos poupado a informação de que apenas que vira “uma parte do debate”. Não lhe fica bem e ninguém tem nada a ver com isso. Dizê-lo é que não!
Quando foi questionado se pensa que a moderação que diz ter existido poderá indiciar um caminho para o consenso, respondeu que todos vão “aprendendo alguma coisa nesta matéria”. E recordou, bem ao seu jeito, que ele próprio, no passado dia 22 de julho, fizera “um forte apelo a que as forças políticas se empenhassem acima de tudo no esclarecimento dos portugueses e que deixassem de lado as crispações, os insultos, as tensões”. Agora, pensa que até este momento isso está a verificar-se de alguma forma.
O Chefe de Estado advertiu que só no período pós-eleitoral se conhecerá a posição de cada um dos partidos. Mas, recorrendo ao exemplo de outros países europeus, perorou:
“Há uma campanha de esclarecimento durante o tempo fixado na lei, mas depois o que é normal e tem acontecido em todos os países da Europa é que cada um coloca sobre a mesa os seus programas eleitorais e tentam fazer os respetivos ajustes no caso de ninguém conseguir a maioria absoluta”.
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Enfim, a pré-campanha eleitoral prossegue e a campanha avizinha-se, com casos políticos e casos político-judiciais. As coisas são como são – disse alguém.

2015.09.11 – Louro de Carvalho 

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