É
correntemente referida e aceite como politicamente correta a asserção de que
não se trazem para a campanha eleitoral os casos judiciais. A asserção tem
variantes, algumas mais sentenciosas, outras verdadeiramente aforísticas. Nas primeiras,
incluem-se enunciados como “a justiça tem
o seu tempo, a política tem o seu tempo”; e, nas segundas, inserem-se
estribilhos como “à justiça o que é da
justiça, à política o que é da política”.
Todavia,
não podemos ignorar que as coincidências parecem desmentir esta postura
assumida, ao menos aparentemente, por muitos. E, muitas vezes, as
coincidências, tão semelhantes à realidade, criam na opinião dos cidadãos a
ideia de que a justiça e a política dispõem de tempos sobrepostos e
interdependentes, passando os professantes daqueles enunciados acima
transcritos ou similares, feitos verdades, a ser encostados ao muro da
hipocrisia ou da duvidosa inocência.
***
O
período eleitoral em curso tinha inexoravelmente de trazer às pantalhas do debate
político casos de justiça. Há políticos arguidos, de pelo menos dois quadrantes
partidários. E um dos quadrantes alberga – queira-se ou não – o
ex-primeiro-ministro. Não vale a pena fazer de conta que o problema não existe,
que não tem a relevância que alguns lhe querem atribuir ou que há de ser
tratado exclusivamente por outrem.
Era
inevitável que o nome e a obra de Pinto de Sousa fossem convocados para a
campanha eleitoral, tanto assim que se tornou facto já em tempo de
pré-campanha. E falta a campanha onde esperamos que não venha a valer tudo.
O
atual líder do PS e, por força das eleições legislativas, candidato a
primeiro-ministro tem de se habituar à ideia, que ensaiou no debate
“tritelevisivo” com Passos Coelho, de fazer a catarse da herança de Sócrates. Tendo
feito uma gestão adequada do caso no âmbito do congresso que o confirmou como
líder, tardou demasiado em se colar à governança de 2005-2011 e, ao mesmo
tempo, em demarcar-se dela. Mas fê-lo e importa que o volte a fazer sempre que
necessário. Pode não ter sido suficiente para todos os ouvidos, mas foi claro
ao referir que ele e o seu partido assumem toda a história de governação do
partido desde o primeiro dia de atuação de Mário Soares como primeiro-ministro,
passando por todo o consulado de António Guterres, até ao último dia do governo
de Sócrates. Ademais, disse que era necessário acentuar as reais virtualidades
e evitar os erros cometidos, mas que os tempos são outros e o programa agora é diferente.
Por outro lado, entende que o debate político hoje é com ele, António Costa, e
não com o ex-primeiro-ministro. De igual modo, já hoje, dia 11 de setembro,
Carlos Zorrinho declarou que teve muito gosto em participar no governo
socialista de 2005 a 2011 e que está disposto a discuti-lo nos contextos
daquele tempo.
Por
seu turno, o atual “recandidato” a primeiro-ministro tem declarado que não
comenta casos de justiça. Porém, no aludido debate “tritelevisivo” mencionou
por sete vezes o nome de Sócrates e os alegados erros da sua governação. Penso
que lhe assiste toda a legitimidade de o fazer no âmbito do debate político.
Porém, não me parece plausível que venha esclarecer que não o evocou enquanto
caso de justiça, mas como governante e, sobretudo, como primeiro-ministro, ou
que tenha passado como gato por brasas ante a alusão clara ao caso da parte de Paulo
Rangel no contexto da universidade de verão/2015, do PSD, em Castelo de Vide.
***
Se,
do meu ponto de vista, se torna conveniente e quase obrigatório proceder à
catarse de um passado problemático por parte daqueles sobre quem impende esse
difícil ónus e se é legítimo a quem se situa num quadrante político de
adversário fazer a evocação política desse passado, se efetivamente entende ter
o direito e o dever de o fazer, não percebo por que motivo se escamoteia a
situação ou se fazem distinções artificiais. Desde quando é que a apreciação do
perfil de um primeiro-ministro, ex-primeiro-ministro, ministro e secretário de
Estado pode ignorar o cidadão, o político ou, eventualmente, o seu estatuto de
arguido, empresário, académico, etc.? Além de exercício artificioso, parece hipócrita,
e é inútil e contraproducente.
Continuo
a pensar que, embora deva distinguir política de política partidária, a nossa
Constituição (CRP)
não consagra propriamente a “separação de poderes” (a
que tantos apelam),
mas antes a “interdependência dos poderes”, garantindo o mecanismo da não
ingerência direta na sua organização e funcionamento e atribuindo-lhes as
prerrogativas da autonomia e da independência, mas também a do controlo
recíproco (no sistema de contrapesos), com a ressalva de que as
decisões definitivas dos tribunais se sobrepõem às dos demais órgãos de
soberania. Depois, a CRP, no atinente à organização do poder político, que
reside no povo e em nome dele é exercido nos termos da CRP e pelos órgãos nela
consagrados, estabelece como órgãos do poder político: o Presidente da
República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. E define as
normas fundamentais da organização e funcionamento desses órgãos do poder
político e as relações entre eles, remetendo para o legislador ordinário a
definição de outros normativos.
Ora,
como é que se pode dizer que os tribunais e os operadores da justiça não são
“política”? Pode o Presidente da República dizer que não é político (às
vezes, alguns querem dizê-lo…),
que o Parlamento (ou os deputados) não é político e igualmente que
os tribunais não são “política”?
Depois,
não podemos esquecer que o homem é de si um ser político. E aquele que tem
contacto com a coisa pública, por maior exercício de abstração que faça, não
deixa de se condicionar num ou noutro sentido pelo “quefazer” político. Ademais,
o dever de analisar atos e disposições dos cidadãos em confronto com a lei e
deliberar e decidir sobre a sua vida futura é eminente ação política, ação da pólis e em prol da pólis.
A
separação artificial entre a política (da pólis grega: a cidade)
e a cidadania (da civitas
latina: a cidade)
faz-me lembrar: a separação que alguns querem fazer entre o conhecimento
científico do professor e a sua ação pedagógica (não funciona a
pedagogia sem que haja suporte científico);
a distinção entre um papa teólogo (Bento XVI) e um papa pastor (Francisco), como se o pastor pudesse fazer
ação pastoral sem conhecimento teológico aprofundado; ou o Vaticano II, como
concílio pastoral sem doutrina dogmática, como alguns pretendem.
***
Entretanto,
hoje veio para a ribalta da Comunicação Social uma declaração do Presidente da
República, que se pôde ler na agência Lusa: “O Chefe de Estado acredita que os seus apelos têm contribuído de alguma forma
para um ambiente ‘menos crispado e tenso’ durante a pré-campanha para as
legislativas, fazendo votos para que os casos judiciais continuem a ficar de
fora da campanha”.
Como deixei
explicitado acima, isso não é bem assim. Disse-se, mas não se fez, quer pela
coincidência dos factos quer pelas contradições declaratórias de alguns
políticos. As próprias revistas de tiragem semanal contêm dossiês quer de casos
predominantemente políticos quer de casos predominantemente de justiça.
Depois,
Cavaco Silva diz:
“Comparando
com campanhas anteriores, parece muito claro que o nível de crispação e de
tensão é muito menor. Esta é a fase em que cabe aos partidos políticos explicar
e esclarecer os portugueses sobre os seus programas e espero que se continue a
fazer isso com serenidade”.
Primeiro, não é bem assim. Alguma crispação tem
ocorrido. Um dos líderes políticos já está tremendamente rouco. Depois, ainda a
procissão pré-eleitoral vai no adro. Além disso, a governança atual está
favorecida por alguns números de alguma melhoria, ao passo que a governança de
2011 estava na fase de decréscimo; hoje nenhum Presidente da República acaba de
ser reeleito para um segundo mandato; e nenhum Presidente apelou ao sobressalto
democrático! Ademais, dadas as contradições inerentes ao processo, creio ser desconfortável
e enervante, quer para Passos quer para Costa, recordar 2011.
Ao ser questionado se não teme que as questões de
Justiça possam vir a perturbar o debate eleitoral, o Presidente reiterou o
politicamente correto, afirmando que “de forma sensata todos os agentes que
participam nesta campanha têm dito” que “os casos judiciais pertencem à
Justiça”.
Mais declarou que não comenta, comentando, qualquer caso judicial e que bem espera que aquilo que
tem sido o “comportamento bastante generalizado dos agentes políticos” se
mantenha até ao fim.
Colocado perante o facto de Sócrates ter sido chamado
ao debate, bem poderia o Presidente ter-nos poupado a informação de que apenas
que vira “uma parte do debate”. Não lhe fica bem e ninguém tem nada a ver com
isso. Dizê-lo é que não!
Quando foi questionado se pensa que a moderação que
diz ter existido poderá indiciar um caminho para o consenso, respondeu que
todos vão “aprendendo alguma coisa nesta matéria”. E recordou, bem ao seu
jeito, que ele próprio, no passado dia 22 de julho, fizera “um forte apelo a
que as forças políticas se empenhassem acima de tudo no esclarecimento dos
portugueses e que deixassem de lado as crispações, os insultos, as tensões”. Agora,
pensa que até este momento isso está a verificar-se de alguma forma.
O Chefe de Estado advertiu que só no período pós-eleitoral
se conhecerá a posição de cada um dos partidos. Mas, recorrendo ao exemplo de
outros países europeus, perorou:
“Há uma
campanha de esclarecimento durante o tempo fixado na lei, mas depois o que é
normal e tem acontecido em todos os países da Europa é que cada um coloca sobre
a mesa os seus programas eleitorais e tentam fazer os respetivos ajustes no
caso de ninguém conseguir a maioria absoluta”.
***
Enfim,
a pré-campanha eleitoral prossegue e a campanha avizinha-se, com casos políticos
e casos político-judiciais. As coisas são como são – disse alguém.
2015.09.11 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário