terça-feira, 1 de setembro de 2015

Igreja e poder político

A relação entre a Igreja Católica e o poder político é sempre uma relação complexa. Quando se aborda esta problemática em Portugal, a atenção fixa-se, segundo uns, no tempo do Estado Novo, e, para outros, na I República. No Estado Novo, diz-se recorrentemente que o relacionamento era próximo, apontando-se mesmo cumplicidade e conivência ou até a cooperação na génese do regime ditatorial; na I República, destaca-se a separação entre a Igreja e o Estado, enquanto medida tomada unilateralmente e acompanhada de leis e atos considerados inimigos da Igreja e da religião em geral (leis do registo civil, do casamento civil, do divórcio; perseguição clero; confisco de bens eclesiásticos, extinção das ordens religiosas, encerramento de templos…).
A situação, longe de ser exclusiva de Portugal e da contemporaneidade, torna-se constante e nada a preto e branco, mas bem complexa.
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Os cristãos começaram por criar e sofrer o impacto com a religião e costumes judaicos. Porque, na esteira do mestre e fundador, que, Filho de Deus, anunciou o Reino, punham em causa as tradições judaicas, foram objeto de perseguição da parte das autoridades político-religiosas. E, como, à semelhança de Cristo, consideravam o poder humano como um não absoluto, pondo em questão a autoridade imperial, ganhavam a crescente hostilidade dos representantes de Roma.
Foi com a perseguição em massa na área territorial dos judeus que a fuga para outras paragens levou à difusão do cristianismo. Mas aí embateram com alguma da filosofia grega, que rejeitava in limine e chacoteava a doutrina da ressurreição dos mortos e achava absurda a conceção de um Deus Criador, além da forte tendência para o hedonismo com a fruição total do momento presente. Da primeva postura de abjuramento da filosofia grega, os pensadores cristãos, sobretudo a partir de Justino, começaram a fazer a aproximação entre uma certa filosofia grega (a da profundidade do pensamento) e os dados fundamentais do cristianismo, culminando com a aproximação feita por Santo Agostinho relativamente a Platão e, já na Idade Média, a feita por São Tomás de Aquino Relativamente a Aristóteles.
Chegados à sede do império romano, os cristãos começaram por beneficiar da tolerância romana, a da aceitação das outras religiões, e do direito de associação, desde que não pusessem em causa as instituições religiosas do Império, com o seu plurinominal politeísmo, que incluía à boa maneira ateniense o Ignotus Deus (o Deus desconhecido), e reconhecessem a divindade do Imperador. Ora, é aqui que a questão eclode. Os cristãos professavam a fé num único Deus, o Deus de Jesus Cristo, que incarnou e nasceu de uma mulher, morreu e ressuscitou e, em seu nome, se prega a salvação dos homens. Em face desta profissão de fé e do consequente culto de adoração ao único Senhor, tinha de cessar qualquer outra confissão de fé e qualquer outro culto. Por outro lado, a doutrina cristã não era neutra em relação à organização social, económica e política.
Iam, assim, dando azo à perseguição ao recusar imolar carnes aos deuses romanos e a queimar incenso diante do divino Imperador ou das suas imagens e insígnias. O não reconhecimento da divindade imperial valeu-lhes o apelido de ateus; tratarem-se por irmãos, de acordo com o dinamismo da fraternidade cristã, aliado ao facto de os homens tomarem as mulheres por esposas mereceu-lhes a acusação de incestuosos; o culto à imagem de Cristo (descoberto pelos esbirros imperiais no ambiente catacumbal) levou ao tratamento de idólatras; e a descoberta da comunhão em que eles diziam comer o corpo de Cristo e beber o seu sangue deu ensejo ao labéu de antropófagos. Por outro lado, a contestação sistemática aos desmandos e atrocidades imperiais e a pregação da fraternidade e da partilha de bens, com a consequente hostilização da escravatura, pareciam pôr em causa a ordem estabelecida. E, vai daí, a onda persecutória passou a basear-se também na teoria da conspiração: e os cristãos acabaram por ser acusados de abertura à destruição do império com o acolhimento da barbárie e com o incêndio da cidade de Roma.
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Entretanto, em 313, o édito de Milão ou édito da Tolerância, emitido pelo tetrarca ocidental Constantino I e pelo tetrarca oriental Licínio, declarava a neutralidade do Império Romano em relação a qualquer credo religioso, acabando oficialmente com as perseguições, especialmente ao cristianismo. A aplicação do édito acarretou a devolução dos lugares de culto e as propriedades que tinham sido confiscadas aos cristãos e vendidas em hasta pública. O cristianismo e as outras religiões ganharam o estatuto de legitimidade, comparável com o paganismo, o qual ficou desestabelecido como a religião oficial do império romano e dos seus exércitos. Em breve, na tentativa de consolidar a totalidade do Império sob o seu domínio, Licínio marchou contra Constantino I e, como parte do seu esforço de ganhar a lealdade do exército, dispensou o exército e o serviço civil da política de tolerância do Édito de Milão, permitindo a expulsão dos cristãos, tendo alguns perdido as propriedades e outros a vida. Mas, por volta de 324, Constantino ganhou o domínio de todo o Império e ordenou a execução de Licínio, por traição.
Se o édito de Milão deu a paz à Igreja (Alguns até dizem que é necessário limpar todo o pó acumulado na “cadeira” desde Constantino!), nem por isso ela ficou inteiramente livre. Constantino, apesar das inúmeras benfeitorias, nunca deixou de exercer a sua superior tutela e a consequente vigilância sobre a Igreja. O maior sintoma dessa tutela foi a prerrogativa por si assumida de convocar o concílio de Niceia e de nele participar pessoalmente como bispo de fora (como se autointitulava). Não se intrometendo na estrita discussão teológica, não deixava de condicionar fortemente a discussão das matérias disciplinares cujas opções poderiam esbarrar contra os interesses do Império.
Depois, em 380, Teodósio estabeleceu, pelo édito de Tessalónica, que o cristianismo se tornaria, exclusivamente, a religião de estado no Império Romano, abolindo assim todas as práticas politeístas dentro do império e fechando os templos pagãos. Porém, esta oficialização do cristianismo como religião do Império, segundo consta, não foi por benevolência para com a Igreja, mas com a finalidade de preservar a unidade do Império (objetivo que se manteve por pouco tempo), ameaçada pelas consequências das desordens do tempo de Diocleciano. E, como máxima autoridade, Teodósio, que manteve todas as prerrogativas avocadas por Constantino I, incluiu o sacerdócio no quadro dos funcionários públicos, o que na prática os situava sob a sua autoridade. Convocou o I Concílio de Constantinopla para conciliar a ortodoxia cristã com os simpatizantes do arianismo e tratar a problemática da heresia macedónica. Porém, as teses arianas foram recusadas, foi confirmado o credo de Niceia e, posteriormente, foi emitido um édito imperial a dar caráter legal às conclusões do concílio. Sintoma do clima de tensão foi a excomunhão lançada sobre o imperador por Santo Ambrósio após a revolta e posterior matança em Tessalónica, onde teriam sido mortas cerca de seis mil pessoas.
Para aferirmos da ambiguidade da relação Igreja-Império nos anos subsequentes, pode ler-se o livrinho Os Padres da Igreja – de Clemente Romano a Santo Agostinho, de Bento XVI (Portugália Editora: 2008). Aí se vê como os imperadores votaram frequentemente ao exílio os inúmeros bispos e presbíteros que travavam a forte luta contra a heresia ariana, que se espalhava por todo o território imperial sob a égide do poder político ou que acusavam a imoralidade, a prepotência e o esbanjamento da corte. O próprio imperador Juliano, considerado o apóstata, que foi educado no cristianismo, cedo abraçou o arianismo com o fito de unificar o Império e restabelecer o paganismo.
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A Idade Média europeia é conotada com a preponderância da Igreja e a jugulação do poder secular por ela. Todavia, as coisas nem sempre são como parecem. A título de exemplo, podem referir-se a questão das investiduras – o conflito mais significativo entre a Igreja e o Estado, que consistiu na luta dos papas contra a intromissão das monarquias europeias nas  nomeações de bispos e abades – e a extinção dos templários, por Clemente V, a instâncias do rei Filipe, o Belo, que havia solicitado a sua entrada na Ordem, mas que não foi aceite por se recusar à abdicar de sua riquezas e poderes.
Outros casos há que assinalar, também a título de exemplo. A revolução francesa, em 1789, que resultou de um movimento geral que teve a simpatia de algum clero, acabou por perseguir a religião católica, substituindo no trono do altar-mor de Notre Dame a estátua da Virgem pela da deusa Razão. Não obstante, os padres que juraram a constituição civil do clero não tiveram problemas específicos. Depois, Napoleão Bonaparte, o cônsul que se tornou imperador, compreendeu que era necessário para França  o retorno seguro à religião e a reestruturação da mesma. Assim, em 1802, concertou com o Papa uma Concordata, prejudicial aos Estados Pontifícios, mercê dos famigerados artigos orgânicos. E, em 1804, Pio VII foi ‘convidado’ a coroar Napoleão Imperador dos Franceses. Mas, soberbamente, Napoleão autocoroou-se na presença do Pontífice, que viajara até Paris na esperança de apagar os vestígios da impiedade revolucionária. Porém, a soberba e a ironia de Napoleão não conheciam limites. Pretendendo dominar a Igreja Católica como o fez com outros países, nomeou bispos, obrigou religiosos a jurarem fidelidade à coroa e pretendeu manipular o próprio Papa, levando-o à aderir à sua política de alianças e de guerras. Ante a natural recusa de Pio VII, Napoleão ocupou os Estados Pontifícios, prendeu Pio VII e o seu secretário, o hábil cardeal Consalvi. O Papa esteve aprisionado sucessivamente em Savona e depois em Fontainebleau, só podendo regressar a Roma em 1814. 
Se Napoleão, o campo civil, publicou o código napoleónico a que a Europa (com exceção da Inglaterra) se submeteu, no âmbito religioso, proclamou o catecismo imperial. E o napoleonismo religioso perdura na velha Igreja galicana, dita católica, mas independente de Roma.
Também, apesar do ateísmo militante da ex-URSS, a Igreja Ortodoxa Russa vivia em relativa paz com o poder político, o que não acontecia com a Igreja Católica, uma Igreja do silêncio. Algo parecido se passa com a relação entre a Igreja Nacional Chinesa e o Estado, de relativa paz e cooperação, mas de hostilidade à Igreja Católica, pela sua ligação com Roma.
É certo e sabido que hoje, como ontem, em Estados de regime ditatorial, à esquerda extrema ou à direita extrema (as esquerdas e direitas moderadas vão tolerando, ora em cooperação, ora em tensão), e em Estados de feição teocrática, os cristãos (e não só) são escarnecidos e perseguidos, os templos são encerrados, o culto é proibido ou limitado, os bens são confiscados, o martírio marca presença evidente.
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Não há dúvidas de que, na sequência dos sofrimentos infligidos anteriormente aos católicos (com exceção dos padres que aderiram à constituição civil do clero), a voz dos pastores se manteve quase calada nos alvores do regime surgido após o movimento de 28 de Maio de 1926. Contudo não é de ignorar o ambiente geral de sobressalto por que passou a sociedade portuguesa durante a I República em que os governos se sucediam meteoricamente, Portugal participou na Grande Guerra, mesmo contra a opinião avisada de pessoas ligadas ao regime, entre as quais o republicano Aquilino Ribeiro, e a onda de jacobinismo vergastou inúmeras figuras do clero, criando a ideia de pretenso antagonismo entre republicanismo e catolicismo e dificultando a ação religiosa e social de pessoas e organizações.
Algo de parecido se passara com a revolução liberal em que a sociedade e se estremou: de um lado os absolutistas, de conotação religiosa católica; do outro, os liberais, de feição antirreligiosa, eivados do ideário da revolução francesa.
Tão pertinente é este apontamento – a recordar as aludidas e tumultuosas, embora agora tida por benéficas, leis de separação da Igreja e do Estado, de Família, do Registo Civil ou as abusivas e iníquas atitudes de silenciamento ou expulsão das Ordens Religiosas e esbulhamento de bens eclesiásticos – que alguns autores da revolução abrilina, evocando sensata e claramente a má e excrescente experiência da I República em torno da questão religiosa, achavam e declararam que tais problemas não deviam colocar-se ao regime democrático. 
Todavia, as perplexidades de antanho estão longe de se circunscreverem ao mundo católico. Os militares, o professorado, os titulares de profissões liberais e muitos políticos que mais tarde olharam de soslaio e com repugnância para o regime, estiveram desse lado, nele cresceram e dele obtiveram dividendos, até que ventos novos deram lucidez, ânimo e coragem – nem sempre pelos melhores motivos. 
Quanto aos membros do clero, é preciso reconhecer que, embora a maior parte se movesse bastante à vontade nos meandros do então novo regime, nunca beneficiaram de um estatuto económico compatível com as suas funções, muito menos na dependência do Estado, como acontece, por exemplo, na Espanha e na Alemanha. A Concordata celebrada entre a República Portuguesa e a Santa Sé, em 1940, bastante dificultada por Oliveira Salazar, longe de oferecer vantagens significativas aos titulares eclesiásticos, acautelava benefícios coletivos e facilitava procedimentos que visavam os cidadãos enquanto objeto da ação da Igreja e abriu caminho à legislação reguladora da existência, personalidade e atividade de futuras associações e fundações. Todavia, à sua luz, a nomeação dos bispos diocesanos, dependia do visto prévio do competente membro do governo a uma lista de três clérigos enquanto possíveis candidatos. Sem esquecer os casos em que figuras preponderantes da Igreja levantaram episodicamente a voz corajosa contra a ditadura em si mesma e suas consequências ao nível do estrangulamento das liberdades de pensamento, expressão, reunião e intervenção política ou da prolongada e abusiva colonização – entre os quais se contam D. António Ferreira Gomes, D. Sebastião Soares de Resende, D. Moisés Alves de Pinho, D. Manuel Vieira Pinto, Padre Abel Varzim e outros – é de inteira justiça sublinhar que muitas das vozes da Igreja nunca deixaram de emparceirar, ainda que a seu modo, com aqueles que denunciavam os abusos, os estrangulamentos e as prepotências regiminais. Nem se podem ocultar factos como a não restituição dos bens eclesiásticos, o que deu sérias discussões entre o bispo de Viseu e o ministro respetivo; a subsidiação da construção ou reparação de templos, a critério discricionário do ministro ou do chefe do governo; a tentativa gorada de apropriação da jornada da juventude católica pela Mocidade Portuguesa, no 3.º quartel do século passado; a retaliação do governo por atitudes da Ação Católica ou da Santa Sé contrariantes das vontades governamentais; e, a título de exemplo, o modo como o Patriarca António Ribeiro, antes vetado para Bispo da Beira, conduziu a diocese patriarcal de Lisboa da convivência já turbulenta com o canto do cisne do Estado Novo para a dos alvores do regime resultante da revolução abrilina. 
E sobretudo será temerário afirmar, por injusto, que as altas figuras da hierarquia tenham sancionado, com prévio ou concomitante conhecimento, aquelas atrocidades atribuíveis aos corifeus e servidores do Estado Novo. O próprio cardeal Cerejeira advertiu, por várias vezes, o Chefe do Governo para excessos cometidos pela polícia do regime.
Mas se, após o 25 de Abril, a hierarquia foi levantando a sua voz, apontando caminhos, denunciando desvios, quase sempre numa ótica de esperança que promana do Evangelho, sucede que, de vez em quando, o silêncio parece ser o “eclesiasticamente correto”. De certeza que não será por nada haver a dizer. Sempre que o desespero, a falta de esperança, o pessimismo e a incerteza invadam os ânimos dos cidadãos, sobretudo dos mais desprotegidos, a hierarquia da Igreja, cujos altos titulares deixaram há muito de ser visados previamente pelo poder político, não pode deixar de dar voz e vez às pessoas que as não têm. Se ela o não fizer, quem o fará? 
Correr-se-ão riscos, na certa, mas valerá a pena. E são de saudar posições equilibradas e ousadas de muitos, por exemplo, do bispo das forças armadas e de segurança – tanto o atual (de que o MDN parece não gostar e a quem terá criado dificuldades) como o anterior – do arcebispo de Braga, do bispo do Porto, do bispo de Leiria-Fátima e dos bispos e padres (e outros cristãos de peso) mais ligados à problemática social.
Que não se lhes tolde o pensamento nem obscureça o coração e não lhes doa a língua nem se lhes enferruje a pena, que o poder político tem os “seus” objetivos!

2015.09.01 – Louro de Carvalho

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