Vem agora ao caso a verificação do
que os detratores do Vaticano II contestam e querem rejeitar, pelo que se impõe
uma reflexão que leve a um discernimento consistente.
Terceira Parte
Retomando as
questões mais contestadas,
37- Sobre a liberdade religiosa, dizem que uma das
consequências da liberdade religiosa proclamada pelo Vaticano II é a obrigação
de os Estados católicos terem de mudar a sua Constituição Política. Sendo
assim, da liberdade religiosa resultou a laicização do Estado e a crescente descristianização
da sociedade. Concedendo (melhor, reconhecendo) os mesmos direitos aos erros, a verdadeira fé
desaparece mais facilmente. O homem que, por sua natureza decaída, segue a via mais fácil, necessita da ajuda das instituições católicas.
Numa sociedade marcada pela fé católica, muito mais homens salvariam a alma do
que numa sociedade em que a religião é um negócio privado e a verdadeira Igreja
deve existir a par das inumeráveis seitas, que possuem os mesmos direitos que
Ela (confundem
igrejas/comunidades com seitas…).
- Esquecem os autores de tal
arrazoado que o Cristo do Evangelho não mandou os discípulos fazer o apostolado
da espada obrigando os poderes (políticos, económicos e financeiros) a facilitar o terreno para se prestar o devido culto
a Deus. Disse-lhes, sim que fossem por todo o mundo e fizessem discípulos entre
todas as nações, batizando em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo e
ensinando-os a cumprir tudo quanto Ele mandou, garantindo a sua presença junto
dos missionários até ao fim dos tempos (cf Mt 28,19-20). Não lhes mandou silenciar os outros nem elaborar
constituições políticas e leis favoráveis.
- É certo que Marcos refere sinais e
prodígios que acompanharão a pregação missionária (cf Mc
16,17-18), mas eles não violentarão os
destinatários da pregação apostólica. Ademais, Jesus advertiu que os mandava
como ovelhas para o meio de lobos, que seriam perseguidos, pois, o discípulo
não é mais que o Mestre (cf Mt 10,16ss; 16,24).
38- No concernente ao ecumenismo, apontam como
consequências a indiferença religiosa e a ruína das missões. Deduzem
que, se alguém se pode salvar em qualquer religião, não tem sentido o
apostolado missionário, podendo recusar-se receber na Igreja convertidos de
outras religiões, que, entretanto, queiram tornar-se católicos. A atividade
missionária reduz-se a ajuda social, sendo que isto contradiz a ordem do Senhor:
“Ide, ensinai a todas as nações,
batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.” (Mt 28,19).
- Como vimos, a verdadeira missão
exige fidelidade ao mandato, empenhamento apostólico, mas também respeito pelos
destinatários. E os factos desdizem os pressupostos dos detratores: a pregação
da missão reforça-se e o sentido missionário, se não galvaniza os
tradicionalmente vocacionados, desperta interesse e paixão intensa em muitos,
mesmo a nível temporário.
- Julgam o ecumenismo, tal como
pregado pelo Vaticano II, não como exigência da caridade fraterna,
mas um “crime” cometido contra esta (Esta é demais). O verdadeiro amor exige, com efeito, que se deseje
e se faça o bem ao próximo. Em matéria religiosa, isso quererá dizer
conduzir o próximo à Verdade. Entendem – e bem – como sinal de verdadeiro amor
o que dão os missionários, ao abandonar pátria e amigos para pregarem Cristo em
país estrangeiro, em meio de perigos e fadigas indizíveis. Acentuam que muitos
deram a própria vida, abatidos por doenças ou pela violência. Mas esquecem a dignidade humana canta no Salmo 8. E não são razoáveis ao dizerem
que o ecumenismo deixa os homens em suas falsas religiões e mesmo nelas os
endurece, que os abandona ao erro e ao imenso perigo da condenação. Acusam esta
atitude de mais confortável do que o apostolado missionário, mas também de
preguiça, indiferença e respeito humano. Assemelham os teólogos ecuménicos a
médicos que estimulam uma pessoa gravemente doente em suas ilusões, em vez de a
advertirem sobre a gravidade do seu estado e de a curarem. Talvez fizessem bem
em reler todo o decreto Ad Gentes
para se aperceberem de que a causa missionária, na sua vivência, ação e
solidariedade, longe de enfraquecer, pelo menos ao nível da doutrina e da
diretriz, se aninha no seio da comunidade e não só dos especificamente
enviados, mobiliza todos os bispos e tem em vista outras vertentes, como a
implantação de igrejas nos locais ditos de missão e entrega da gestão
progressiva das Igrejas ao clero local e, ainda, o apelo de missionários a
partir dos países ditos de missão a partirem em missão a outras paragens (incluindo os
da velha cristandade, carentes de novo fulgor cristão), não sendo os lugares de missão meros recetores. Transcrevem-se
do decreto Ad Gentes, a título de
exemplo, dois segmentos que mostram o profundo interesse da ação missionária,
decorrente da catolicidade e do mandato,
“A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser
‘sacramento universal de salvação’, por íntima exigência da própria
catolicidade, obedecendo a um mandato do seu fundador, procura incansavelmente
anunciar o Evangelho a todos os homens. Já os próprios Apóstolos em que a
Igreja se alicerça, seguindo o exemplo de Cristo, ‘pregaram a palavra da
verdade e geraram as igrejas’.
Aos seus sucessores compete perpetuar esta obra, para
que ‘a palavra de Deus se propague rapidamente e seja glorificada (2Ts 3,1), e
o reino de Deus seja pregado e estabelecido em toda a terra. No estado atual
das coisas, de que surgem novas condições para a humanidade, a Igreja, que é
sal da terra e luz do mundo, é com mais urgência chamada a salvar e a renovar
toda a criatura, para que tudo seja instaurado em Cristo e n'Ele os homens
constituam uma só família e um só Povo de Deus. (AG,1).
Onde é que está a divergência em
relação à doutrina tradicional? Depois, vem o empenhamento dos padres
conciliares e a sua fé na oração missionária de todos:
“Os Padres do Concílio, em união com o
Romano Pontífice, sentindo vivamente a obrigação de difundir por toda a parte o
reino de Deus, saúdam muito afetuosamente todos os pregadores do Evangelho,
sobretudo aqueles que sofrem perseguição pelo nome de Cristo, e associam-se aos
seus sofrimentos. Também eles se sentem inflamados do mesmo amor em que Cristo
ardia pelos homens. Mas, conscientes de que Deus é quem faz com que o seu reino
venha ao mundo, unem as suas preces às de todos os cristãos para que, por
intercessão da Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos, as nações sejam quanto antes
conduzidas ao conhecimento da verdade e a glória de Deus, que resplandece no
rosto de Jesus Cristo, comece a brilhar para todos pelo Espírito Santo”
(AG,42).
39-
Sobre a colegialidade episcopal, entendem que o seu princípio lesa o exercício
pessoal da autoridade. O papa e os bispos são convidados a dirigir a Igreja em
comum, de modo colegial. Em consequência, o bispo só é chefe da sua diocese, na
teoria; mas, na prática, está ligado, ao menos moralmente, às decisões da
Conferencia Episcopal, dos Conselhos Presbiterais e das diferentes assembleias.
Até Roma não ousa afirmar-se diante das Constituições Episcopais; cede frequentemente
às suas pressões – dizem os saudosistas irredutíveis da autoridade papal
absoluta, provavelmente querendo ter via mais aberta para a influenciarem e
levá-la a determinar o que eles quereriam. Aproximam o princípio da
colegialidade episcopal do modo como os cismáticos orientais
concebem a autoridade na Igreja e veem nele a influência da ideia de igualdade
propagada por Jean-Jacques Rousseau e pela Revolução Francesa, que negava a
existência duma autoridade desejada por Deus e atribuía todo o poder ao povo,
em oposição ao ensinamento da Escritura:
“Que cada um se submeta às autoridades instituídas.
Pois não há autoridade que não venha de Deus. Tanto é assim que aquele que
resiste à autoridade rebela-se contra a ordem estabelecida por Deus” (Rm 13,1-2).
- Para lá do que foi dito
anteriormente sobre a colegialidade, note-se que tão genuína é a passagem do
Evangelho de João, segundo a qual Jesus confia a Pedro a apascentação de seus cordeiros e suas ovelhas (cf Jo 21,15-23) e a
entrega das chaves ao mesmo Pedro (cf Mt 16,17-19), como o poder de ligar e desligar na Terra com
consequências no céu entregue aos apóstolos (cf Mt 18,18) e aquele “quem vos ouve a Mim ouve…” (Lc 10,16-26). Depois, vem a colegialidade definida pelo próprio
Concílio – vd LG, nota prévia, que, a seguir se condensa:
Colégio não se entende no sentido de grupo de iguais,
que delegam o poder em quem preside; mas no de grupo estável, cuja estrutura e
autoridade se deduzem da Revelação. No atinente ao Colégio dos Bispos, são
também usados os termos Ordem e Corpo. O paralelismo entre
Pedro e demais Apóstolos e entre Papa e Bispos não implica a transmissão do
poder extraordinário dos Apóstolos aos sucessores, nem a igualdade entre Cabeça e membros, mas só a proporcionalidade entre a relação Pedro-Apóstolos e
Papa-Bispos.
Uma pessoa torna-se membro do Colégio pela sagração episcopal e pela
comunhão hierárquica com a Cabeça e com os membros do Colégio. Na sagração é conferida a participação ontológica nos ofícios sagrados, como consta da
Tradição. Usa-se a palavra munerum e não potestatum, por esta poder
entender-se como poder apto para o exercício. Ora, para existir tal
poder, deve sobrevir a determinação canónica da parte da autoridade
hierárquica. Esta determinação pode consistir na concessão dum ofício
particular ou na atribuição de súbditos, e é dada segundo as normas aprovadas pela autoridade suprema.
Essa norma ulterior é exigida pela
própria natureza das coisas, visto tratar-se de poderes que devem ser
exercidos por diversas pessoas que, segundo a vontade de Cristo,
cooperam hierarquicamente. Evidentemente, esta ‘comunhão’ foi-se exercendo na vida da Igreja, segundo as circunstâncias,
mesmo antes de ser codificada no direito.
Por isso se diz expressamente que se requer a comunhão hierárquica com a Cabeça e membros da Igreja. A comunhão é um conceito tido em grande conta na
antiga Igreja (e ainda hoje,
sobretudo no Oriente). Não se
trata, porém, de sentimento vago,
mas duma realidade orgânica,
que exige uma forma jurídica e é ao mesmo tempo animada pela caridade. Os documentos
dos últimos Sumos Pontífices acerca da jurisdição dos Bispos devem ser
interpretados segundo esta determinação necessária dos poderes.
Diz-se que
o Colégio, que não pode existir sem cabeça, é também sujeito do supremo e
pleno poder sobre toda a Igreja’. Isto tem de se admitir necessariamente
para que a plenitude do poder do Sumo Pontífice não seja posta em causa. O
Colégio entende-se, pois, sempre e necessariamente com a Cabeça, a qual, no Colégio, conserva integralmente
o seu cargo de Vigário de Cristo e Pastor da Igreja Universal. Isto é, a
distinção não se faz entre o Papa e os Bispos, tomados coletivamente, mas entre
o Papa só, e o Papa juntamente com os Bispos. E uma vez que o Papa é a Cabeça do Colégio, só ele pode executar
certos atos, que de modo nenhum competem aos Bispos como, por exemplo, convocar
e dirigir o Colégio, aprovar normas de ação, etc. Ao juízo do Sumo Pontífice, a
quem foi entregue o cuidado de todo o rebanho de Cristo, compete, segundo as
necessidades da Igreja, que variam no decurso dos tempos, determinar o modo
mais conveniente de atuar esse cuidado, quer essa atuação se faça de modo
pessoal quer de modo colegial. Quanto a ordenar, promover e aprovar o exercício
colegial, procede o Romano Pontífice segundo a sua própria discrição.
O Sumo
Pontífice, visto ser o Pastor supremo da Igreja, pode exercer, como lhe
aprouver, o seu poder em todo o tempo; exige-o o próprio cargo. O Colégio,
porém, embora exista sempre, nem por isso age permanentemente com uma ação estritamente colegial, conforme
consta da Tradição. Isto é, não está sempre ‘em exercício pleno’. Mais ainda: somente
por intervalos age de maneira estritamente colegial e nunca sem o consentimento
da Cabeça. Diz-se, porém, ‘com o consentimento da Cabeça’ para não se pensar
na dependência de pessoa estranha;
o termo ‘consentimento’ evoca a comunhão entre a Cabeça e os membros e implica
a necessidade do ato que é próprio da Cabeça. Em tudo isto é evidente que se
trata da união dos Bispos com
a sua Cabeça e nunca de ação
dos Bispos independentemente do
Papa. Neste caso, faltando a ação da Cabeça, os Bispos não podem agir colegialmente,
como se depreende da noção de ‘Colégio’. A Comunhão hierárquica de todos os
Bispos com o Sumo Pontífice é habitual na Tradição.
***
Como se vê pela nota – e o cap. III da LG di-lo expressamente – é reafirmada
a doutrina do Vaticano I sobre o primado.
Quarta Parte
40- Os detratores do vaticano II observam que as forças liberais e modernistas, que já minavam a
Igreja, conseguiram colocar as mãos sobre o Concílio Vaticano II, podendo
dizer-se que o Vaticano II foi a faísca que deflagrou uma crise que se preparava
já de longa data na Igreja. Acusam os Papas
João XXIII e Paulo VI do apoio às forças liberais e modernistas na introdução dum
grande número das suas ideias nos textos do Concílio. Antes do Concílio, a Comissão Preparatória, segundo os
desiludidos, havia preparado meticulosamente esquemas que eram o eco da fé da
Igreja. E era – dizem – sobre esses esquemas que a discussão se devia ter
produzido e o voto deveria ter incidido. Porém, os esquemas iniciais foram
rejeitados na 1.ª sessão do Concílio e substituídos por novos esquemas
preparados pelos liberais. Depois, no quadro da rejeição/aceitação dividem os textos do Concílio Vaticano II em três grupos: os que poderiam ser
aceites, por estarem conformes à Doutrina Católica, como, por exemplo, o
decreto sobre a formação dos padres; os equívocos, isto é, que podem ser interpretados em
sentido erróneo; e os que não podem ser compreendidos num sentido ortodoxo e que,
na sua atual formulação, não podem ser aceites, como a Declaração sobre a
Liberdade Religiosa. Mais referem que os textos
ambíguos podem ser aceites se forem, segundo a expressão de Lefebvre, “interpretados
à luz da Tradição”, mas os do terceiro grupo não podem ser aceites antes de terem sido
retificados.
- Assim, tendo como
intenção a aplicação do espírito do Concílio (e do próprio Concílio), levam em linha de conta o facto de os textos terem sido feitos pelas
mãos dos liberais e modernistas, que colaboraram nas redações dos documentos
sem a mais elementar das virtudes, a honestidade (como disse Lefebvre). Tendo isso em consideração, cogitam suspeitas ditas fundamentadas a
respeito do sentido da maioria das palavras nos textos conciliares. Evidenciam
que muita da terminologia sofre de falta de clareza e que alguns textos, para
serem interpretados com fé e verdade, precisam de estar expostos ao farol da
Tradição; porém, outros, que são inaceitáveis, devem ser rejeitados,
descartados ou convertidos. A perversão do léxico conciliar foi aberta,
mundana, praticamente total no modo de expor as ideias. Lefebvre disse também
que, sem falar da índole um tanto anticatólica da linguagem, muitos dos textos
são ambíguos e contribuem para a descristianização da sociedade. Mais dizem que os equívocos foram introduzidos voluntariamente nos textos conciliares com vista a
atrair os padres conservadores. Davam-se-lhes ilusões, insistindo no facto de
que o texto não significava, no fundo, nada de diferente do que a Igreja havia
sempre ensinado. E que fizeram eles lá? Não sabiam latim? Mas - coitados! - em momentos subsequentes, foi possível apoiarem-se sobre
essas passagens para defenderem teses inteiramente heterodoxas.
Quinta Parte
41- Nestes termos, concluem
que o Vaticano II não fora obra de Deus, nem tão pouco fora o Espírito Santo
que o inspirou. Têm-no como perverso, desastroso, catastrófico, uma ruína nas
colunas sacrossantas da Igreja Católica. Acusam-no de estar a destruir, ou pelo
menos, a contribuir para a destruição da Doutrina Católica, da Fé de sempre, a
contribuir para a autodemolição da Igreja de Cristo. E prometem, face a isto,
não calarem as suas vozes para denunciarem o evento como obra diabólica dos
piores inimigos da Santa Igreja, os liberais e modernistas, que fazem a Igreja
Conciliar subsistir, ocupada, ocupada por eles, os modernistas, os
progressistas. Consideram a razão deste facto um mistério que só Deus sabe.
***
Não
é crível que o Espírito Santo ousasse estar de férias permitindo a introdução do
diabo na aula conciliar, não só para tentar o caos (isto
é transitoriamente possível),
mas sobretudo para levar a melhor contra a Igreja. Pelo que é temerário e sinal
de anticonversão rejeitar ou minimizar o Concílio, sob o pretexto
incriminatório de obra diabólica ou de triunfo do modernismo.
Do
sentido da aceitação, veja-se o ensino da Comissão Doutrinal sobre a Lumen Gentium:
“Tendo em conta a praxe conciliar e o fim
pastoral do presente Concílio, este sagrado Concílio só define aquelas coisas
relativas à fé e aos costumes que abertamente declarar como de fé. Tudo o mais
que o sagrado Concílio propõe como doutrina do supremo Magistério da Igreja,
devem-no os fiéis receber e abraçar segundo a mente do mesmo sagrado Concílio,
a qual se deduz quer do assunto em questão, quer do modo de dizer, segundo as
normas da interpretação teológica”.
2015.08.31 – Louro de Carvalho
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