terça-feira, 18 de agosto de 2015

Sobre a autenticidade religiosa e a secularização

 O Papa Bento XVI denunciou, na sua homilia da Solenidade do Corpo de Deus, em 2009, “o risco de uma secularização rasteira” no interior da Igreja que se espelha num culto eucarístico formal e vazio, em celebrações superficiais sem “aquela participação do coração que se exprime na veneração e respeito pela liturgia” e na forte tentação de reduzir a oração a momentos superficiais e frívolos, sob a pressão das atividades e das preocupações terrenas.
Perante estas palavras salta para a memória o dito evangélico: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céus, mas somente aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus” (Mt 7,21). Com efeito, desde tempos antigos, os profetas chamavam a atenção do povo de Israel para a espiritualidade da aliança de Deus com o seu Povo, face aos desvios e ao ritualismo que os fariseus e escribas emprestavam à interpretação da Lei, a ponto de o Senhor oraculizar pela boca do profeta: “Aborreço as vossas festas, elas desgostam-me, não sinto gosto algum nos vossos cultos” (Am 5,21).
Quanto à Eucaristia, é necessário encará-la nas duas vertentes: a celebração do sacramento e a conveniente participação; e a adoração, com o que ela significa.
Quanto à celebração eucarística, há que celebrar todas as suas dimensões: banquete dos filhos/comunhão no Corpo e Sangue de Cristo sob as espécies de pão e de vinho; sacrifício de Cristo pelo pecado do homem; manancial da graça divina; e garantia e antecipação da vida eterna. Tais dimensões ficam bem plasmadas na antífona:
“Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a Sua Paixão, em que a alma se enche graça e nos é dado o penhor da futura glória”.

No respeitante à adoração, que às vezes se subestima, ela corporiza a consciência da profundeza do mistério a que nos é dado aceder – o da condescendência do Deus que se fez Homem e que se fez alimento e companheiro –, significa a oportunidade de se prestar o culto de latria, não lá de longe, mas bem perto do ser adorando e o gozo da companhia fraterna e próxima de Jesus, com o suplemento de que a vida quotidiana – espinhosa ou alegre – e dos grandes dias requer.
É nas duas dimensões de celebração/comunhão e de adoração que a Eucaristia deve ser levada a quem não teve a oportunidade de participar fisicamente na ação celebrativa, sobretudo os doentes, mormente os que se preparam para a despedida do “aqui no agora”.
Jesus instituiu a Eucaristia e mandou que a celebrássemos em sua memória, na celebração da Última Ceia, juntamente com os seus na noite precedente à sua Paixão. É neste contexto que se deve compreender a nova Páscoa, que Ele oferece na Eucaristia. As narrações evangélicas apresentam uma aparente contradição entre o texto de João e o dos sinóticos. Segundo a narrativa joânica, “Jesus morreu na cruz precisamente no momento em que, no templo, eram imolados os cordeiros pascais”. Sendo assim, a sua morte e o sacrifício dos cordeiros coincidiram. Ora, isto significa que Ele morreu na vigília da Páscoa judaica e, portanto, não pôde pessoalmente celebrar a ceia pascal segundo o rito usual. Porém, segundo os sinóticos, a última Ceia de Jesus foi efetivamente uma ceia pascal segundo os ritos tradicionais em que inseriu a novidade da oferta de seu corpo e sangue. A maioria dos exegetas julgava que João não queria comunicar a verdadeira data histórica da morte de Jesus, mas teria optado por uma data simbólica para tornar evidente a verdade mais profunda: “Jesus é o novo e autêntico Cordeiro que derramou o seu sangue por nós”.
Entretanto, a descoberta dos escritos de Qumran, no quadro essénico, abriu para uma solução convincente que, embora ainda não seja consensual, possui um elevado grau de probabilidade. Pode assim dizer-se que tudo quanto foi mencionado por João é historicamente exato. Jesus deveras derramou o seu sangue na vigília da Páscoa, na hora da imolação dos cordeiros. Porém, Ele celebrou a Páscoa com os discípulos, provavelmente, segundo o calendário de Qumran – um dia antes e sem o tradicional cordeiro, à maneira da comunidade de Qumran, que não reconhecia o templo de Herodes e estava à espera do novo templo. Portanto, Jesus celebrou a Páscoa sem o cordeiro usual, mas não sem “o cordeiro”:  em lugar do cordeiro venal, entregou-Se a Si mesmo, no seu corpo e no seu sangue. Assim, antecipou a sua morte de modo coerente com a sua palavra:  “Ninguém me tira a vida; sou Eu que a dou por mim mesmo” (Jo 10,18). No momento em que oferecia aos discípulos o seu corpo e sangue, Ele cumpria realmente esta afirmação. Ele mesmo ofereceu a própria vida. Somente assim a Páscoa alcança o seu verdadeiro sentido. (cf Bento XVI, homilia da Missa in Coena Domini, 5 de abril de 2007).
Sendo assim, importa que os crentes vivam e celebrem a fé, entre si sem dúvida, mas sejam também capazes de a celebrar frente aos demais e sobretudo torná-la fermento da vida social, profissional e política. É impróprio pretender levar uma vida cristã no templo ou em casa e professar no mundo dos outros um ateísmo prático ou ter uma prática inética.
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O apelo à coerência de vida vergasta-nos a cada passo, sem que muitas vezes lhe dêmos a devida importância. São assim – ainda que na mais refinada hipocrisia, tantas vezes – os discursos dos filósofos, dos pedagogos, dos políticos, dos empresários, dos sindicalistas… É aquela pequenina coluna de um grande diretor de jornal regional (em riso de encerrar) a dizer-nos que, ainda que as dívidas, as multas ou os crimes prescrevam após a preclusão dos prazos fixados na lei, “a verdade não prescreve”.
A este propósito vale a pena lançar mão de um dos manuais da nova disciplina de Literatura Portuguesa do ensino secundário, que transcreve excertos de “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e que nos pode guiar para a releitura integral da obra.
Aí, o narrador refere que António de Faria, depois de ter mandado proceder ao apresamento de uma embarcação de chins e comido, juntamente com os companheiros portugueses, o jantar que estava preparado para os autóctones, dialogou com um menino a quem fez perguntas sobre a propriedade, origem e objetivo da embarcação apresada e se propôs tratar aquele menino como filho e a quem sugeriu a receção do baptismo cristão.
Transcrevo, com adaptações de sintaxe e de ortografia as respostas prontas do interlocutor, pelo que elas revelam de ideais do verdadeiro humanismo em pleno século XVI, que assentam que nem uma luva nas dualidades moralizantes das gentes do 3.º milénio:
A embarcação ‘era do sem ventura de meu pai, a quem caiu em sorte e triste desventura, tomardes-lhe vós em menos de uma hora o que ele ganhou em mais de trinta anos’; provinda de Quomão, vinha abastecer-se de água e ia vender aos juncos de Sião.

E prosseguiu, na resposta à promessa de bom tratamento:
“Não cuides de mim (…) que sou tão parvo que possa cuidar, de ti, que, roubando-me meu pai, me hajas a mim de tratar como teu filho” (…), pois, com ele “antes quero morrer naquele mato, onde o vejo estar chorando por mim, que viver entre gente tão má como vós”.

Ao ser repreendido, reagiu, explicando porque falou deste modo:
“Porque vos vi louvar a Deus com os beiços untados, como homens a quem basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir com os beiços, quanto nos proíbe de tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves, que, depois de mortos, conhecereis o rigoroso castigo da sua divina justiça”.

E replicou, quando lhe explicaram o que era ser cristão:
“Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre por haver na terra gente que fale tão bem e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos, que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra”.

Não importa indagar se o episódio relatado é verídico, se Mendes Pinto visava a crítica aos aventureiros portugueses ou se era a mera expressão de uma corrente de opinião contrária à apologética da expansão de Portugal no Oriente e de sua onda missionária. O certo é atentar no âmago das ideias na era de Quinhentos, gravadas naquele papel seiscentista (edição de 1614), e perceber em que sentido ia a secularização nos séculos do classicismo dos países cristãos e os rumos que ela toma nos dias de hoje, advertindo para o que ensina o apóstolo Pedro:
“Deus não faz aceção de pessoas, mas em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável” (At 10,34-35).

Haverá motivo para que os cristãos lancem o dardo contra os não crentes? E, de igual sorte, estarão sem pecado para atirar a primeira pedra aos cristãos os crentes de outras religiões, os indiferentes, os agnósticos, os ateus, os descrentes, os apóstatas, os hereges? Apareça quem, de verdade, se possa apresentar com vida sem mácula!
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No atinente ao laicismo, laicidade e secularização, não é a primeira vez que me refiro ao equívoco. Entendido na sua expressão mais negativa, o laicismo pode levar ao combate às religiões ou, pelo menos, à indiferença por elas e à subsequente supressão das suas manifestações públicas, em nome da neutralidade ou da aconfessionalidade do Estado.
Se a laicidade, que o Estado deve promover, consignar a autonomia das realidades terrestres, sem a dependência das Igrejas (ou outras agremiações religiosas) em relação aos Estados e vice-versa, fica aberto um sadio caminho de convivência e de responsabilidade de cada um (indivíduo ou grupo) perante as entidades junto das quais deva responder, sem intromissões abusivas da parte de nenhuma entidade. Não se afigura, por outro lado, razoável reduzir a expressão religiosa à esfera da consciência meramente individual, como preconizam alguns, nem circunscrevê-la à área dos templos, sacristias e casas particulares. Tal enunciado pode significar tanto uma expressão da boa fé de quem se pretende tolerante numa sociedade democrática como encobrir uma supina hipocrisia de quem entende subestimar o fenómeno religioso, suportando-o epidermicamente, mas dele se alheando e hostilizando-o nos efeitos.
Felizmente que não é esse o rumo preconizado no II Colóquio A RELIGIÃO FORA DOS TEMPLOS, promovido pela Comissão da Liberdade Religiosa e realizado em 16 e 17 de março de 2007, no Centro Ismaili. No encerramento desse evento, o então Ministro da justiça, Alberto Costa, discursando no âmbito da validade do registo civil dos casamentos religiosos, assegurou que o país está a colmatar, neste século XXI, lacunas sérias vindas do passado, para garantir a igualdade de tratamento às diferentes igrejas, removendo as heranças discriminatórias ainda subsistentes. Reconheceu o regresso de Deus visível na expressão de diversos movimentos religiosos que os fluxos migratórios trazem consigo.
Ao contrário da polémica gerada à volta da inclusão ou não inclusão do Cristianismo no preâmbulo do letárgico tratado constitucional europeu, o avisado então governante confessava que, na génese da Europa, estão referências religiosas. E recordou que o princípio da laicidade se cruza com o fundo espiritual.
Recordo que, em outubro de 1974, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves proclamava aos microfones da RTP e da então Emissora Nacional que a religião e a política são duas realidades sociais diferentes, cuja prática cabe a cada um que o deseje. Pelo que a todos era reconhecido o direito de exprimirem publicamente a sua fé, sem que alguém os pudesse incomodar.
O ministro Alberto Costa (em 2007) foi mais longe no discurso responsabilizador, quando, para lá da convivência destas realidades sociais, asseverou o seu intercruzamento, ao nível das práticas e ao nível dos princípios. Mais longe nos levou ainda, quando sublinhou que esta é uma marca civilizacional que nos compete a todos manter e que o terrorismo só pode ser enfrentado com forte contributo das religiões e das lideranças religiosas. É claro que, se é função do Estado procurar o fim da discriminação entre religiões e tudo fazer para que sejam iguais os que acreditam e os que não acreditam, também será obrigação das igrejas perceberem para que novos papéis e novos desafios as solicitam fora dos templos os movimentos religiosos, filosóficos e políticos, rumo à completa inserção nos espaços democráticos.
O debate em causa reflete virtualidades que não podem descurar-se, como: a não redução do fenómeno religioso a mero fenómeno externo, já que se fala de fundo religioso; a sua não circunscrição ao interior dos templos, dadas as reconhecidas implicações na sociedade, inclusive no combate aos terrorismos; a ultrapassagem do estigma individualista da opção da fé, pela sua afirmação pessoal e comunitária em espaço democrático; a perenidade do dado religioso, pela verificação da sua referência na génese europeia; e o abandono da ideia de que as religiões seriam totalitárias, frente à vocação democrática das sociedades.
E fica meridianemente assente que a laicidade, ao invés do laicismo militante e antidemocrata, se recomenda por desempoeirada e benfazeja, inimiga de quaisquer fundamentalismos!
A este respeito, no seu colóquio com os jornalistas a caminho de Washington, a 15 de abril de 2008, Bento XVI pronunciou-se sobre o conceito positivo de laicidade e sua prática:
“O que eu considero fascinante nos Estados Unidos é que começaram com um conceito positivo de laicidade, porque este povo novo era composto por comunidades e pessoas que tinham fugido das Igrejas de Estado e queriam ter um Estado laico, secular que abrisse possibilidades a todas as confissões, a todas as formas de prática religiosa. Nasceu assim um Estado propositadamente laico: eram contrários a uma Igreja de Estado. Mas laico devia ser o Estado precisamente por amor à religião na sua autenticidade, que só pode ser vivida livremente. E assim encontramos este conjunto de um Estado propositada e decididamente laico, mas por vontade religiosa, para dar autenticidade à religião.”.

E, aludindo a Tocquville, afirmou:
“E sabemos que Alexis de Tocqueville, estudando a América, viu que as instituições laicas vivem com um consenso moral de facto que existe entre os cidadãos”.
Já em 2005, em carta ao presidente do Senado italiano, Marcello Pera, declarava:
“A laicidade deve converter-se em um compromisso para garantir a todos, indivíduos e grupos, no respeito das exigências do bem comum, a possibilidade de viver e manifestar as próprias convicções religiosas”.

Assim, a secularidade ou laicidade positiva implica a autonomia das religiões e das outras realidades, o respeito e a cooperação nos projetos comuns possíveis.

2015.08.17 – Louro de Carvalho

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