O Papa Bento XVI denunciou, na sua homilia da Solenidade do Corpo de Deus, em
2009, “o risco de uma secularização rasteira” no interior da Igreja que se
espelha num culto eucarístico formal e vazio, em celebrações superficiais sem
“aquela participação do coração que se exprime na veneração e respeito pela
liturgia” e na forte tentação de reduzir a oração a momentos superficiais e
frívolos, sob a pressão das atividades e das preocupações terrenas.
Perante estas palavras salta para a memória o dito
evangélico: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do
Céus, mas somente aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus” (Mt 7,21). Com efeito, desde tempos antigos, os profetas
chamavam a atenção do povo de Israel para a espiritualidade da aliança de Deus
com o seu Povo, face aos desvios e ao ritualismo que os fariseus e escribas
emprestavam à interpretação da Lei, a ponto de o Senhor oraculizar pela boca do
profeta: “Aborreço as vossas festas, elas desgostam-me, não sinto gosto algum
nos vossos cultos” (Am 5,21).
Quanto à Eucaristia, é necessário encará-la nas duas
vertentes: a celebração do sacramento e a conveniente participação; e a
adoração, com o que ela significa.
Quanto à celebração eucarística, há que celebrar todas
as suas dimensões: banquete dos filhos/comunhão no Corpo e Sangue de Cristo sob
as espécies de pão e de vinho; sacrifício de Cristo pelo pecado do homem;
manancial da graça divina; e garantia e antecipação da vida eterna. Tais
dimensões ficam bem plasmadas na antífona:
“Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a Sua Paixão, em
que a alma se enche graça e nos é dado o penhor da futura glória”.
No respeitante à adoração, que às vezes se subestima,
ela corporiza a consciência da profundeza do mistério a que nos é dado aceder –
o da condescendência do Deus que se fez Homem e que se fez alimento e
companheiro –, significa a oportunidade de se prestar o culto de latria, não lá
de longe, mas bem perto do ser adorando e o gozo da companhia fraterna e
próxima de Jesus, com o suplemento de que a vida quotidiana – espinhosa ou
alegre – e dos grandes dias requer.
É nas duas dimensões de celebração/comunhão e de
adoração que a Eucaristia deve ser levada a quem não teve a oportunidade de
participar fisicamente na ação celebrativa, sobretudo os doentes, mormente os
que se preparam para a despedida do “aqui no agora”.
Jesus instituiu a Eucaristia e mandou que a
celebrássemos em sua memória, na celebração da Última Ceia, juntamente com os
seus na noite precedente à sua Paixão. É neste contexto que se deve compreender
a nova Páscoa, que Ele oferece na Eucaristia. As narrações evangélicas
apresentam uma aparente contradição entre o texto de João e o dos sinóticos.
Segundo a narrativa joânica, “Jesus morreu na cruz precisamente no momento em
que, no templo, eram imolados os cordeiros pascais”. Sendo assim, a sua morte e
o sacrifício dos cordeiros coincidiram. Ora, isto significa que Ele morreu na
vigília da Páscoa judaica e, portanto, não pôde pessoalmente celebrar a ceia
pascal segundo o rito usual. Porém, segundo os sinóticos, a última Ceia de Jesus
foi efetivamente uma ceia pascal segundo os ritos tradicionais em que inseriu a
novidade da oferta de seu corpo e sangue. A maioria dos exegetas julgava que
João não queria comunicar a verdadeira data histórica da morte de Jesus, mas
teria optado por uma data simbólica para tornar evidente a verdade mais
profunda: “Jesus é o novo e autêntico Cordeiro que derramou o seu sangue por
nós”.
Entretanto, a descoberta dos escritos de
Qumran, no quadro essénico, abriu para uma solução convincente que, embora
ainda não seja consensual, possui um elevado grau de probabilidade. Pode assim dizer-se
que tudo quanto foi mencionado por João é historicamente exato. Jesus deveras
derramou o seu sangue na vigília da Páscoa, na hora da imolação dos cordeiros.
Porém, Ele celebrou a Páscoa com os discípulos, provavelmente, segundo o
calendário de Qumran – um dia antes e sem o tradicional cordeiro, à maneira da
comunidade de Qumran, que não reconhecia o templo de Herodes e estava à espera
do novo templo. Portanto, Jesus celebrou a Páscoa sem o cordeiro usual, mas não
sem “o cordeiro”: em lugar do cordeiro venal, entregou-Se a Si mesmo, no
seu corpo e no seu sangue. Assim, antecipou a sua morte de modo coerente com a
sua palavra: “Ninguém me tira a vida; sou Eu que a dou por mim mesmo” (Jo 10,18). No momento em que oferecia aos discípulos o
seu corpo e sangue, Ele cumpria realmente esta afirmação. Ele mesmo ofereceu a
própria vida. Somente assim a Páscoa alcança o seu verdadeiro sentido. (cf Bento XVI, homilia da Missa in Coena Domini, 5 de abril de 2007).
Sendo assim, importa que os crentes vivam e
celebrem a fé, entre si sem dúvida, mas sejam também capazes de a celebrar
frente aos demais e sobretudo torná-la fermento da vida social, profissional e
política. É impróprio pretender levar uma vida cristã no templo ou em casa e
professar no mundo dos outros um ateísmo prático ou ter uma prática inética.
***
O apelo à coerência de vida vergasta-nos a cada passo,
sem que muitas vezes lhe dêmos a devida importância. São assim – ainda que na
mais refinada hipocrisia, tantas vezes – os discursos dos filósofos, dos
pedagogos, dos políticos, dos empresários, dos sindicalistas… É aquela pequenina
coluna de um grande diretor de jornal regional (em riso de encerrar) a dizer-nos que, ainda que as dívidas, as multas ou
os crimes prescrevam após a preclusão dos prazos fixados na lei, “a verdade não
prescreve”.
A este propósito vale a pena lançar mão de um dos
manuais da nova disciplina de Literatura Portuguesa do ensino secundário, que
transcreve excertos de “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e que nos pode
guiar para a releitura integral da obra.
Aí, o narrador refere que António de Faria, depois de
ter mandado proceder ao apresamento de uma embarcação de chins e comido,
juntamente com os companheiros portugueses, o jantar que estava preparado para
os autóctones, dialogou com um menino a quem fez perguntas sobre a propriedade,
origem e objetivo da embarcação apresada e se propôs tratar aquele menino como
filho e a quem sugeriu a receção do baptismo cristão.
Transcrevo, com adaptações de sintaxe e de ortografia
as respostas prontas do interlocutor, pelo que elas revelam de ideais do
verdadeiro humanismo em pleno século XVI, que assentam que nem uma luva nas
dualidades moralizantes das gentes do 3.º milénio:
A embarcação ‘era do sem ventura de meu pai, a quem caiu em sorte e triste
desventura, tomardes-lhe vós em menos de uma hora o que ele ganhou em mais de
trinta anos’; provinda de Quomão, vinha abastecer-se de água e ia vender aos
juncos de Sião.
E prosseguiu, na resposta à promessa de bom tratamento:
“Não cuides de mim (…) que sou tão parvo que possa cuidar, de ti, que,
roubando-me meu pai, me hajas a mim de tratar como teu filho” (…), pois, com
ele “antes quero morrer naquele mato, onde o vejo estar chorando por mim, que
viver entre gente tão má como vós”.
Ao ser repreendido, reagiu, explicando porque falou
deste modo:
“Porque vos vi louvar a Deus com os beiços untados, como homens a quem
basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois
entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir com os
beiços, quanto nos proíbe de tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que
são dois pecados tão graves, que, depois de mortos, conhecereis o rigoroso
castigo da sua divina justiça”.
E replicou, quando lhe explicaram o que era ser
cristão:
“Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre por haver na terra gente
que fale tão bem e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos, que
cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam
na terra”.
Não importa indagar se o episódio relatado é verídico,
se Mendes Pinto visava a crítica aos aventureiros portugueses ou se era a mera expressão
de uma corrente de opinião contrária à apologética da expansão de Portugal no
Oriente e de sua onda missionária. O certo é atentar no âmago das ideias na era
de Quinhentos, gravadas naquele papel seiscentista (edição de 1614), e perceber em que sentido ia a secularização nos
séculos do classicismo dos países cristãos e os rumos que ela toma nos dias de
hoje, advertindo para o que ensina o apóstolo Pedro:
“Deus não faz aceção de pessoas, mas em qualquer nação, aquele que O teme e
pratica a justiça é-Lhe agradável” (At 10,34-35).
Haverá motivo para que os cristãos lancem o dardo
contra os não crentes? E, de igual sorte, estarão sem pecado para atirar a
primeira pedra aos cristãos os crentes de outras religiões, os indiferentes, os
agnósticos, os ateus, os descrentes, os apóstatas, os hereges? Apareça quem, de
verdade, se possa apresentar com vida sem mácula!
***
No atinente ao laicismo, laicidade e
secularização, não é a primeira vez que me refiro ao equívoco. Entendido na sua
expressão mais negativa, o laicismo pode levar ao combate às religiões ou, pelo
menos, à indiferença por elas e à subsequente supressão das suas manifestações
públicas, em nome da neutralidade ou da aconfessionalidade do Estado.
Se a laicidade, que o Estado deve
promover, consignar a autonomia das realidades terrestres, sem a dependência
das Igrejas (ou outras agremiações religiosas) em relação aos Estados e vice-versa, fica aberto um sadio caminho de
convivência e de responsabilidade de cada um (indivíduo ou grupo) perante as entidades junto das quais deva responder,
sem intromissões abusivas da parte de nenhuma entidade. Não se afigura, por outro lado, razoável reduzir a
expressão religiosa à esfera da consciência meramente individual, como
preconizam alguns, nem circunscrevê-la à área dos templos, sacristias e casas
particulares. Tal enunciado pode significar tanto uma expressão da boa fé de
quem se pretende tolerante numa sociedade democrática como encobrir uma supina
hipocrisia de quem entende subestimar o fenómeno religioso, suportando-o
epidermicamente, mas dele se alheando e hostilizando-o nos efeitos.
Felizmente que não é esse o rumo
preconizado no II Colóquio A RELIGIÃO FORA DOS TEMPLOS, promovido pela
Comissão da Liberdade Religiosa e realizado em 16 e 17 de março de 2007, no Centro
Ismaili. No encerramento desse evento, o então
Ministro da justiça, Alberto Costa, discursando no âmbito da validade do
registo civil dos casamentos religiosos, assegurou que o país está a
colmatar, neste século XXI, lacunas sérias vindas do passado, para garantir a igualdade
de tratamento às diferentes igrejas, removendo as heranças discriminatórias
ainda subsistentes. Reconheceu o regresso de Deus visível na expressão de
diversos movimentos religiosos que os fluxos migratórios trazem consigo.
Ao contrário da polémica gerada à
volta da inclusão ou não inclusão do Cristianismo no preâmbulo do letárgico
tratado constitucional europeu, o avisado então governante confessava que, na
génese da Europa, estão referências religiosas. E recordou que o princípio da
laicidade se cruza com o fundo espiritual.
Recordo que, em outubro de 1974, o
primeiro-ministro Vasco Gonçalves proclamava aos microfones da RTP e da então
Emissora Nacional que a religião e a política são duas realidades sociais
diferentes, cuja prática cabe a cada um que o deseje. Pelo que a todos era
reconhecido o direito de exprimirem publicamente a sua fé, sem que alguém os
pudesse incomodar.
O ministro Alberto Costa (em 2007) foi mais longe no discurso responsabilizador,
quando, para lá da convivência destas realidades sociais, asseverou o seu
intercruzamento, ao nível das práticas e ao nível dos princípios. Mais longe
nos levou ainda, quando sublinhou que esta é uma marca civilizacional que nos
compete a todos manter e que o terrorismo só pode ser enfrentado com forte
contributo das religiões e das lideranças religiosas. É claro que, se é função do Estado procurar o fim
da discriminação entre religiões e tudo fazer para que sejam iguais os que
acreditam e os que não acreditam, também será obrigação das igrejas perceberem
para que novos papéis e novos desafios as solicitam fora dos templos os
movimentos religiosos, filosóficos e políticos, rumo à completa inserção nos
espaços democráticos.
O debate em causa reflete
virtualidades que não podem descurar-se, como: a não redução do fenómeno
religioso a mero fenómeno externo, já que se fala de fundo religioso; a sua não
circunscrição ao interior dos templos, dadas as reconhecidas implicações na
sociedade, inclusive no combate aos terrorismos; a ultrapassagem do estigma
individualista da opção da fé, pela sua afirmação pessoal e comunitária em
espaço democrático; a perenidade do dado religioso, pela verificação da sua referência
na génese europeia; e o abandono da ideia de que as religiões seriam
totalitárias, frente à vocação democrática das sociedades.
E fica meridianemente assente que a
laicidade, ao invés do laicismo militante e antidemocrata, se recomenda por
desempoeirada e benfazeja, inimiga de quaisquer fundamentalismos!
A este respeito, no seu colóquio com
os jornalistas a caminho de Washington, a 15 de abril de 2008, Bento XVI
pronunciou-se sobre o conceito positivo de laicidade e sua prática:
“O que eu
considero fascinante nos Estados Unidos é que começaram com um conceito
positivo de laicidade, porque este povo novo era composto por comunidades e
pessoas que tinham fugido das Igrejas de Estado e queriam ter um Estado laico,
secular que abrisse possibilidades a todas as confissões, a todas as formas de
prática religiosa. Nasceu assim um Estado propositadamente laico: eram
contrários a uma Igreja de Estado. Mas laico devia ser o Estado precisamente
por amor à religião na sua autenticidade, que só pode ser vivida livremente. E
assim encontramos este conjunto de um Estado propositada e decididamente laico,
mas por vontade religiosa, para dar autenticidade à religião.”.
E, aludindo a Tocquville, afirmou:
“E sabemos que Alexis de
Tocqueville, estudando a América, viu que as instituições laicas vivem com um
consenso moral de facto que existe entre os cidadãos”.
Já em 2005, em carta ao
presidente do Senado italiano, Marcello Pera, declarava:
“A laicidade deve converter-se em um compromisso para
garantir a todos, indivíduos e grupos, no respeito das exigências do bem comum,
a possibilidade de viver e manifestar as próprias convicções religiosas”.
Assim, a secularidade ou laicidade positiva
implica a autonomia das religiões e das outras realidades, o respeito e a
cooperação nos projetos comuns possíveis.
2015.08.17 –
Louro de Carvalho
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