terça-feira, 18 de agosto de 2015

O sentido da Assunção de Maria

É pertinente distinguir entre a ascensão de Cristo ao Céu, que aconteceu pelo seu próprio poder, e a assunção de Maria, que foi elevada ao céu, não pelo seu próprio poder, mas pela vontade de Cristo, a coincidir com o desígnio do Pai e a ternura do Espírito Santo, manifestada no serviço angélico à Virgem. Todavia, apesar de o fenómeno da Assunção decorrer do poder de Deus e não do poder de Maria, ele não deixa de ser relevante na economia da salvação e na influência poderosa na vida das crentes, um pouco à semelhança da Lua cuja luz, embora recebida do Sol, não deixa de iluminar muitas das nossas noites, fazendo-nos perscrutar os sinais dos tempos.
Depois, a aludida distinção teológica não se torna, na prática, tão relevante como isso, dado que, como refere Bento XVI, “toda vida é uma ascensão – a vida inteira é meditação, obediência, confiança e esperança, mesmo nas obscuridades; e toda a vida é esta ‘pressa sagrada’, que sabe que Deus é sempre a prioridade, e nada mais deve causar pressa na nossa existência” (homilia de 15.08.2009). Tais asserções aplicáveis a cada homem de bem ou de Deus brilham de modo eminente na figura da Mãe de Deus. Assim, a solenidade da Assunção, no dizer do ora Pontífice emérito, releva como coroa das demais celebradas em honra da Mãe de Cristo e da Igreja:
 “A solenidade hodierna coroa o ciclo das grandes celebrações litúrgicas nas quais somos chamados a contemplar o papel da Bem-Aventurada Virgem Maria na História da salvação. Com efeito, a Imaculada Conceição, a Anunciação, a Maternidade Divina e a Assunção são etapas fundamentais, intimamente ligadas entre si, com que a Igreja exalta e canta o glorioso destino da Mãe de Deus, mas nas quais podemos ler também a nossa história”. (id et ib).

É caso para repetir como o pregador inspirado da tradição: Assumpta quia regina, regina quia mater, mater, quia ancilla, ancilla quia virgo, virgo quia electa – Elevada ao céu, porque rainha (a 22 de agosto, celebra-se a memória da Virgem Santa Maria, Rainha – que se celebrava a 31 de maio); rainha, porque mãe (celebra-se a Sua Maternidade a 1 de janeiro, celebrada antes a 11 de outubro); mãe, porque disponível para o plano de Deus; disponível, porque virgem (Lc 1,26-38); virgem, porque eleita e predestinada.
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Não se encontra hino mais adequado para celebrar as glórias de Maria que o Magnificat (Lc 1,46-55), porque, além de constituir o cântico de exultação da Virgem Mãe, compagina o repositório da ação salvadora de Deus em prol do homem, é por excelência o cântico da misericórdia divina, o espelho da profecia do cumprimento das promessas de Deus.  
Neste cântico da misericórdia divina, o Magnificat, assumido pela Mãe do Senhor, topamos a expressão humanamente indizível que Ela pronunciou: Doravante me proclamarão ditosa todas as gerações. É a profetização explícita dos louvores marianos da Igreja para o futuro ou o prenúncio da devoção marial pelos séculos dos séculos.
Ora, promovendo o louvor de Maria, a Igreja não inventou um fenómeno lateral à Escritura: responde à profecia enunciada naquela hora abençoada, constituída pelas próprias palavras da humilde Serva interiorizadas pessoalmente por Aquela que as proferiu em exultação, mas não arbitrárias nem meramente pessoais. A insigne visitante de Isabel arquitetou espontânea e longa resposta àquela que, repleta do Espírito Santo, a denominara de bendita por ter crido em tudo quanto Lhe foi dito da parte do Senhor. O Magnificat resulta, pois, da profundidade da fé fertilizada pela lucidez e força do Espírito Paráclito e completa a proclamação de Isabel.
A Igreja, ao venerar Maria, cumpre uma ordem do Espírito Santo, faz o que deve fazer, já que gravita em torno duma profecia explicitamente emanada do Espírito Santo pelos lábios de sua fecunda e admirável esposa. Por outro lado, torna-se claro que não prestamos o louvor suficiente a Deus, se nos calamos acerca dos seus santos e em especial sobre a SANTA que se tornou a sua morada viva na terra (a nova arca da aliança), espelho fulgurante da sua luz, repositório dinâmico da divina bondade e misericórdia, reflexo da beleza do Altíssimo. Ela, mais do que qualquer outra criatura, manifesta de forma eminentemente rica e variegada a luz simples e multímoda de Deus. Maria apresenta de modo eloquentíssimo aos homens o rosto materno de Deus, sobretudo nas suas dimensões de solicitude pressurosa e de envolvente ternura profunda. Maria é bendita, ditosa ou bem-aventurada porque está unida a Deus, vive por Deus, com Deus e em Deus. E, consoante as palavras do arcanjo Gabriel, o Senhor está com Ela, vive nela e unido a Ela. Quando o Espírito suscitou na Virgem a exclamação Eu sou a tua serva, faça-se em mim segundo a tua palavra, estava já a preparar aqui na terra a morada para Si, para Deus. E Ela, de corpo e alma, tornou-se a sua morada, abrindo assim a terra ao céu. Tornou-se a morada matricial daquelas moradas de que falava Jesus, quando na véspera da Paixão dizia, despedindo-se: Vou preparar-vos, na casa do Pai, uma morada. E há muitas moradas lá, na casa do meu Pai (cf Jo 14,2-3).
O Evangelho lucano, através de várias indicações, faz-nos compreender que Maria é lídima Arca da Aliança, que, nela, o mistério do Templo enquanto morada de Deus aqui na terra foi completado e ganhou sentido. Bento XVI assegura que em Maria realmente habita Deus, tornando-se presente aqui na terra; e Maria torna-se a sua tenda ou tabernáculo.
Realiza-se aqui o desejo de todas as culturas, isto é, que Deus habite no meio de nós. Já Santo Agostinho dizia que, antes de conceber o Senhor no corpo, Ela O tinha concebido na alma. Como é limitada no tempo a habitação corporal de Deus em Maria, é reservando para o Senhor o espaço da alma que Ela se torna realmente o autêntico Templo onde Deus encarnou e Se fez presente na terra. Deste modo, como morada de Deus na terra, nela já está preparada a sua morada eterna, esta morada para sempre. E é nisto que reside o cerne do dogma da Assunção de Maria à glória do céu em corpo e alma. Maria é bem-aventurada porque, ao ser eleita para Mãe do Salvador e ao aceitar essa côngrua escolha, se tornou totalmente, de corpo e alma e para sempre, a morada do Senhor. Por esta ordem de razões, Maria convida-nos à admiração e à veneração e orienta-nos, indicando o caminho da vida e mostrando como nos podemos tornar bem-aventurados, como podemos encontrar a senda segura da felicidade.
Se atentarmos na palavra eucológica de Isabel, completada no Magnificat, bendita aquela que acreditou, verificaremos que o primeiro e fundamental ato para se tornar morada de Deus e para assim encontrar a felicidade definitiva é crer, cultivar a fé, a fé em Deus, no Deus que se revelou e exprimiu em Jesus e que se faz sentir na palavra divina da Escritura. Crer não significa ter uma opinião em paralelo com outras. E a convicção de que Deus existe não é uma informação como as demais. Sobre muitas informações, pouco nos importa que sejam verdadeiras ou falsas, pois não implicam qualquer mudança em nossa vida. Mas, se Deus não existisse, a vida tornar-se-ia seca e oca, o futuro seria vazio. Mas, se Deus existe, tudo se transforma, a vida faz-se luz, o futuro é luz que pauta a orientação para a nossa vida.
Por isso, acreditar configura a orientação fundamental da vida. Crer é dizer:  Sim, acredito que Vós sois Deus, creio que no Filho encarnado Vós estais presente no meio de nós. A profissão sincera destas verdades e o apego confessional a estas asserções constituem a definição do rumo certo para a vida pessoal, em sintonia com todos quantos em comunidade assim creem e se exprimem; impelem-nos a apegarmo-nos a Deus, a unirmo-nos a Deus e assim encontrarmos o lugar onde viver e o modo como viver. E crer não é apenas um tipo de pensamento ou uma ideia; é um agir, um estilo de vida. Crer significa seguir as indicações que nos foram deixadas pela Palavra de Deus e aceitar de bom grado todas e cada uma das consequências a que ela der lugar.
Doravante me proclamarão ditosa todas as gerações significa que o porvir pertence a Deus, está nas suas mãos. E quem vence não é o dragão apresentado e descrito no Livro do Apocalipse (Ap 12), o dragão que é a representação dos poderes da iniquidade e da violência do mundo. Parecem invencíveis estes poderes, mas o hagiógrafo assegura-nos que não. A Mulher do Apocalipse é mais vigorosa que o dragão, porque Deus é mais forte e toda a fortaleza vem de Deus. Sem dúvida, ante o dragão, assim armado, a Mulher, que é a Igreja figurada em Maria, parece indefesa, vulnerável. E com razão, porque Deus, ao encarnar-se num homem, é vulnerável no mundo, porque é o Amor, e o amor é de si vulnerável. Contudo, Deus tem o futuro nas mãos, e é o Amor. Ora, quando Deus é amor carregado de toda a sua inefabilidade, é o Amor que passa da vulnerabilidade à vitória e vence tudo, mesmo o ódio. No fim, é a paz que vence, a paz que vem do Amor, a paz que vem de Deus.
A Assunção de Maria em corpo e alma à glória do céu é motivo de júbilo para os crentes, é fonte de compromisso dinâmico para quantos pretendam pôr-se do lado do bem e da paz.
(condensado da homilia de Bento XVI em 15 de agosto de 2006, em Castelgandolfo).
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Por seu turno, o Papa Francisco, à recitação do Angelus, em 15 de agosto de 2013, em Castelgandolfo, colocou o início da caminhada de “Maria rumo ao Céu naquele ‘simpronunciado em Nazaré, como resposta ao Mensageiro celeste que lhe anunciava a vontade de Deus em relação a ela”. E lança uma inferência pertinente, que nos interpela:
“Na realidade, é exatamente assim: cada ‘sim’ a Deus é um passo rumo ao Céu, à vida eterna. Porque é isto que o Senhor deseja: que todos os seus filhos tenham vida em abundância! Deus quer-nos todos consigo, na sua casa!”

E, na homilia da celebração eucarística naquele mesmo dia, na Praça da Liberdade, em Castelgandolfo, Francisco destaca algumas expressões atinentes ao mistério da Assunção, presentes na Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium – LG).
A primeira é:
“A Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha de culpa original, terminado o curso da vida terrena, foi elevada ao Céu em corpo e alma e exaltada por Deus como Rainha” (LG, 59).

Perto do final daquele documento conciliar, vem outro segmento importante:
“A Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há de consumar no século futuro, assim também na terra brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor” (LG, 68).

Com este ícone textual de Maria, o Papa associa o papel de Nossa Mãe ao de Cristo e àquele que deve ser o nosso – sintetizado em três palavras-chave: luta, ressurreição e esperança.
O Apocalipse (Ap 12,13ss) releva a luta entre a mulher e o dragão. A mulher, que figura a Igreja, é, por um lado, gloriosa e triunfante e, por outro, ainda se encontra em dificuldade. Assim é a Igreja: no Céu já está associada à glória do Senhor; na história enfrenta constantemente as provações e desafios que supõe o conflito entre Deus e o Maligno E, nesta luta que os discípulos devem enfrentar, Maria não os deixa sozinhos; a Mãe (de Cristo e da Igreja) está sempre connosco, caminha sempre connosco. Maria compartilha, em certo sentido, esta dupla condição. Entrou definitivamente na glória do Céu, mas isso não significa que Ela esteja longe, separada de nós; na verdade, Maria acompanha-nos, luta connosco, sustenta os cristãos no combate contra as forças do mal. A oração a e com Maria também tem essa dimensão “agonística”, ou seja, de luta, uma oração que dá apoio e força na luta contra o Maligno e seus aliados.
Depois, na solenidade da Assunção fala-se da ressurreição. Com efeito, o apóstolo Paulo, escrevendo aos Coríntios, insiste no facto de que ser cristão significa acreditar que Cristo ressuscitou verdadeiramente dos mortos. E o mistério da Assunção de Maria está inteiramente inscrito na Ressurreição de Cristo. A humanidade da Mãe foi ‘atraída’ pelo Filho na sua passagem através da morte. Jesus entrou de uma vez por todas na vida eterna com toda a sua humanidade, que recebera de Maria. Assim, Ela, que O seguira fielmente durante toda a sua vida e O seguira com o coração, entrou com Ele na vida eterna, na Casa do Pai. Pela Cruz, Maria conheceu o martírio do coração, o martírio da alma. Sofreu tanto no seu coração enquanto Jesus sofria na Cruz. A Ela, que estava totalmente unida com Ele na morte, foi-Lhe, por isso, dado o dom da ressurreição. Cristo é como que primícias dos Ressuscitados e Maria é como que primícias dos redimidos, a primeira daqueles “que pertencem a Cristo”. Ela é nossa Mãe, mas também podemos dizer que é nossa representante, nossa irmã, nossa primeira irmã; Ela é a primeira entre os redimidos que chegou ao Céu.
O Evangelho proclamado na solenidade da Assunção, que evidencia o cântico da misericórdia divina, aponta para a terceira daquelas palavras-chave – esperança. A esperança é a virtude daqueles que, experimentando a luta diária entre a vida e a morte, entre o bem e o mal, creem na Ressurreição de Cristo, na vitória do Amor. O Magnificat é, na ótica de Francisco, o cântico da esperança, o cântico do Povo de Deus no seu caminhar através da história, “o cântico de muitos santos e santas, alguns conhecidos, outros – muitíssimos – desconhecidos, mas bem conhecidos por Deus: mães, pais, catequistas, missionários, padres, freiras, jovens, e também crianças, avôs e avós” – dos que “enfrentaram a luta da vida, levando no coração a esperança dos pequenos e dos humildes. (Este é bem o Papa de Deus e das pessoas, da Igreja e do Mundo!)
A este respeito, o Papa não podia ser mais claro em relação ao Magnificat da esperança:
“Maria diz: ‘A minha alma engrandece ao Senhor’ – hoje a Igreja também canta a mesma coisa, e o canta em todas as partes do mundo. Este cântico é particularmente intenso, onde o Corpo de Cristo hoje está sofrendo a Paixão. Onde está a Cruz, para nós cristãos, há esperança, sempre. Se não há esperança, nós não somos cristãos. Por isso gosto de dizer: não deixeis que vos roubem a esperança. Que não vos roubeis a esperança, porque esta força é uma graça, um dom de Deus que nos leva para frente, olhando para o Céu. E Maria está sempre lá, próxima dessas comunidades, desses nossos irmãos, caminhando com eles, sofrendo com eles, e cantando com eles o Magnificat da esperança.”

Na Coreia do sul, em 15 de agosto de 2014, o Bispo de Roma assumiu a Assunção de Maria como ícone da nossa vocação
“A Assunção de Maria mostra-nos o nosso destino como filhos adotivos de Deus e membros do Corpo de Cristo: como Maria, nossa Mãe, somos chamados a participar plenamente na vitória do Senhor sobre o pecado e a morte e a reinar com Ele no seu Reino eterno”.

E como o quadro da nossa aprendizagem da liberdade de filhos e de irmãos:

“Cristo é o novo Adão, cuja obediência à vontade do Pai derrubou o reino do pecado e da escravidão e inaugurou o reino da vida e da liberdade (cf 1Cor 15,24-25). A verdadeira liberdade encontra-se no amoroso acolhimento da vontade do Pai. De Maria, cheia de graça, aprendemos que a liberdade cristã é algo mais do que a mera libertação do pecado; é a liberdade que abre para um novo modo espiritual de considerar as realidades terrenas, a liberdade de amar a Deus e aos nossos irmãos e irmãs com um coração puro e viver na jubilosa esperança da vinda do Reino de Cristo.”
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Torna-se pertinente que os cristãos meditem o suficiente no sentido da Assunção de Maria. E talvez fiquem a perceber por que razão a Santa Sé não quis a supressão do feriado em Portugal.

2015.08.18 – Louro de Carvalho

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