É pertinente
distinguir entre a ascensão de Cristo
ao Céu, que aconteceu pelo seu próprio poder, e a assunção de Maria, que foi elevada
ao céu, não pelo seu próprio poder, mas pela vontade de Cristo, a coincidir com
o desígnio do Pai e a ternura do Espírito Santo, manifestada no serviço
angélico à Virgem. Todavia, apesar de o fenómeno da Assunção decorrer do poder
de Deus e não do poder de Maria, ele não deixa de ser relevante na economia da
salvação e na influência poderosa na vida das crentes, um pouco à semelhança da
Lua cuja luz, embora recebida do Sol, não deixa de iluminar muitas das nossas
noites, fazendo-nos perscrutar os sinais dos tempos.
Depois, a
aludida distinção teológica não se torna, na prática, tão relevante como isso,
dado que, como refere Bento XVI, “toda vida é
uma ascensão – a vida inteira é meditação, obediência, confiança e esperança,
mesmo nas obscuridades; e toda a vida é esta ‘pressa sagrada’, que sabe que
Deus é sempre a prioridade, e nada mais deve causar pressa na nossa existência”
(homilia
de 15.08.2009). Tais asserções aplicáveis a cada homem de bem ou de Deus brilham de
modo eminente na figura da Mãe de Deus. Assim, a solenidade da
Assunção, no dizer do ora Pontífice emérito, releva como coroa das demais
celebradas em honra da Mãe de Cristo e da Igreja:
“A solenidade hodierna coroa o ciclo das
grandes celebrações litúrgicas nas quais somos chamados a contemplar o papel da
Bem-Aventurada Virgem Maria na História da salvação. Com efeito, a Imaculada Conceição,
a Anunciação, a Maternidade Divina e a Assunção são etapas fundamentais,
intimamente ligadas entre si, com que a Igreja exalta e canta o glorioso
destino da Mãe de Deus, mas nas quais podemos ler também a nossa história”.
(id et ib).
É caso para repetir como o pregador
inspirado da tradição: Assumpta quia regina, regina quia mater,
mater, quia ancilla, ancilla quia virgo, virgo quia electa – Elevada ao céu, porque rainha (a 22 de agosto, celebra-se
a memória da Virgem Santa Maria, Rainha – que se celebrava a 31 de maio); rainha, porque
mãe (celebra-se
a Sua Maternidade a 1 de janeiro, celebrada antes a 11 de outubro); mãe, porque disponível
para o plano de Deus; disponível, porque virgem (Lc 1,26-38); virgem, porque eleita
e predestinada.
***
Não se encontra hino mais adequado
para celebrar as glórias de Maria que o Magnificat
(Lc 1,46-55), porque, além de constituir o cântico
de exultação da Virgem Mãe, compagina o repositório da ação salvadora de Deus em
prol do homem, é por excelência o cântico da misericórdia divina, o espelho da
profecia do cumprimento das promessas de Deus.
Neste cântico da misericórdia divina,
o Magnificat, assumido pela Mãe do Senhor,
topamos a expressão humanamente indizível que Ela pronunciou: Doravante me proclamarão ditosa
todas as gerações. É a profetização explícita dos louvores marianos da
Igreja para o futuro ou o prenúncio da devoção marial pelos séculos dos
séculos.
Ora, promovendo o louvor de Maria, a
Igreja não inventou um fenómeno lateral à Escritura: responde à profecia
enunciada naquela hora abençoada, constituída pelas próprias palavras da
humilde Serva interiorizadas pessoalmente por Aquela que as proferiu em
exultação, mas não arbitrárias nem meramente pessoais. A insigne visitante de
Isabel arquitetou espontânea e longa resposta àquela que, repleta do Espírito
Santo, a denominara de bendita por ter crido em tudo quanto Lhe foi dito da
parte do Senhor. O Magnificat resulta, pois, da profundidade da fé
fertilizada pela lucidez e força do Espírito Paráclito e completa a proclamação
de Isabel.
A Igreja, ao venerar Maria, cumpre
uma ordem do Espírito Santo, faz o que deve fazer, já que gravita em torno duma
profecia explicitamente emanada do Espírito Santo pelos lábios de sua fecunda e
admirável esposa. Por outro lado, torna-se claro que não prestamos o louvor suficiente
a Deus, se nos calamos acerca dos seus santos e em especial sobre a SANTA que se tornou a sua morada viva na
terra (a nova arca da aliança), espelho fulgurante da sua luz,
repositório dinâmico da divina bondade e misericórdia, reflexo da beleza do
Altíssimo. Ela, mais do que qualquer outra criatura, manifesta de forma
eminentemente rica e variegada a luz simples e multímoda de Deus. Maria
apresenta de modo eloquentíssimo aos homens o rosto materno de Deus, sobretudo
nas suas dimensões de solicitude pressurosa e de envolvente ternura profunda. Maria
é bendita, ditosa ou bem-aventurada porque está unida a Deus, vive por Deus,
com Deus e em Deus. E, consoante
as palavras do arcanjo Gabriel, o Senhor está com Ela, vive nela e unido a Ela.
Quando o Espírito suscitou na Virgem a exclamação Eu sou a tua serva, faça-se em
mim segundo a tua palavra, estava já a preparar aqui na terra a morada
para Si, para Deus. E Ela, de corpo e alma, tornou-se a sua morada, abrindo assim
a terra ao céu. Tornou-se a morada matricial daquelas moradas de que falava
Jesus, quando na véspera da Paixão dizia, despedindo-se: Vou preparar-vos, na casa do
Pai, uma morada. E há muitas moradas lá, na casa do meu Pai (cf Jo 14,2-3).
O Evangelho lucano, através de várias
indicações, faz-nos compreender que Maria é lídima Arca da Aliança,
que, nela, o mistério do Templo enquanto morada de Deus aqui na terra foi
completado e ganhou sentido. Bento XVI assegura que em Maria realmente habita Deus,
tornando-se presente aqui na terra; e Maria torna-se a sua tenda ou tabernáculo.
Realiza-se aqui o desejo de todas as
culturas, isto é, que Deus habite no meio de nós. Já Santo Agostinho dizia que,
antes de conceber o Senhor no corpo, Ela O tinha concebido na alma. Como é
limitada no tempo a habitação corporal de Deus em Maria, é reservando para o
Senhor o espaço da alma que Ela se torna realmente o autêntico Templo onde Deus
encarnou e Se fez presente na terra. Deste modo, como morada de Deus na terra,
nela já está preparada a sua morada eterna, esta morada para sempre. E é nisto
que reside o cerne do dogma da Assunção de Maria à glória do céu em corpo e
alma. Maria é bem-aventurada porque, ao ser eleita para Mãe do
Salvador e ao aceitar essa côngrua escolha, se tornou totalmente, de corpo e
alma e para sempre, a morada do Senhor. Por esta ordem de razões, Maria convida-nos
à admiração e à veneração e orienta-nos, indicando o caminho da vida e
mostrando como nos podemos tornar bem-aventurados, como podemos encontrar a
senda segura da felicidade.
Se atentarmos na palavra eucológica de
Isabel, completada no Magnificat,
bendita aquela que acreditou, verificaremos que o primeiro e
fundamental ato para se tornar morada de Deus e para assim encontrar a felicidade
definitiva é crer, cultivar a fé, a fé em Deus, no Deus que se revelou e
exprimiu em Jesus e que se faz sentir na palavra divina da Escritura. Crer não
significa ter uma opinião em paralelo com outras. E a convicção de que Deus
existe não é uma informação como as demais. Sobre muitas informações, pouco nos
importa que sejam verdadeiras ou falsas, pois não implicam qualquer mudança em
nossa vida. Mas, se Deus não existisse, a vida tornar-se-ia seca e oca, o
futuro seria vazio. Mas, se Deus existe, tudo se transforma, a vida faz-se luz,
o futuro é luz que pauta a orientação para a nossa vida.
Por isso, acreditar configura a
orientação fundamental da vida. Crer é dizer: Sim, acredito que
Vós sois Deus, creio que no Filho encarnado Vós estais presente no meio de nós.
A profissão sincera destas verdades e o apego confessional a estas asserções
constituem a definição do rumo certo para a vida pessoal, em sintonia com todos
quantos em comunidade assim creem e se exprimem; impelem-nos a apegarmo-nos a
Deus, a unirmo-nos a Deus e assim encontrarmos o lugar onde viver e o modo como
viver. E crer não é apenas um tipo de pensamento ou uma ideia; é um agir, um
estilo de vida. Crer significa seguir as indicações que nos foram deixadas pela
Palavra de Deus e aceitar de bom grado todas e cada uma das consequências a que
ela der lugar.
Doravante me proclamarão ditosa todas
as gerações – significa que o porvir pertence a
Deus, está nas suas mãos. E quem vence não é o dragão apresentado e descrito no
Livro do Apocalipse (Ap
12), o dragão que é a
representação dos poderes da iniquidade e da violência do mundo. Parecem
invencíveis estes poderes, mas o hagiógrafo assegura-nos que não. A Mulher do
Apocalipse é mais vigorosa que o dragão, porque Deus é mais forte e toda a
fortaleza vem de Deus. Sem dúvida, ante o dragão, assim armado, a Mulher, que é
a Igreja figurada em Maria, parece indefesa, vulnerável. E com razão, porque
Deus, ao encarnar-se num homem, é vulnerável no mundo, porque é o Amor, e o
amor é de si vulnerável. Contudo, Deus tem o futuro nas mãos, e é o Amor. Ora,
quando Deus é amor carregado de toda a sua inefabilidade, é o Amor que passa da
vulnerabilidade à vitória e vence tudo, mesmo o ódio. No fim, é a paz que
vence, a paz que vem do Amor, a paz que vem de Deus.
A Assunção de Maria em corpo e alma à
glória do céu é motivo de júbilo para os crentes, é fonte de compromisso
dinâmico para quantos pretendam pôr-se do lado
do bem e da paz.
(condensado da homilia de Bento XVI em 15 de agosto de 2006, em
Castelgandolfo).
***
Por seu turno, o
Papa Francisco, à recitação do Angelus,
em 15 de agosto de 2013, em Castelgandolfo, colocou o início da caminhada de “Maria
rumo ao Céu naquele ‘sim’ pronunciado em Nazaré, como resposta ao Mensageiro
celeste que lhe anunciava a vontade de Deus em relação a ela”. E lança uma inferência
pertinente, que nos interpela:
“Na realidade, é exatamente assim: cada ‘sim’ a Deus é
um passo rumo ao Céu, à vida eterna. Porque é isto que o Senhor deseja: que
todos os seus filhos tenham vida em abundância! Deus quer-nos todos consigo, na
sua casa!”
E, na homilia da celebração eucarística naquele mesmo
dia, na Praça da Liberdade, em Castelgandolfo, Francisco destaca algumas
expressões atinentes ao mistério da Assunção, presentes na Constituição Dogmática
sobre a Igreja (Lumen Gentium – LG).
A primeira é:
“A Virgem
Imaculada, preservada imune de toda a mancha de culpa original, terminado o
curso da vida terrena, foi elevada ao Céu em corpo e alma e exaltada por Deus
como Rainha” (LG, 59).
Perto do final daquele documento conciliar, vem outro
segmento importante:
“A Mãe de
Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja
que se há de consumar no século futuro, assim também na terra brilha como sinal
de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até
que chegue o dia do Senhor” (LG, 68).
Com este ícone textual de Maria, o Papa associa o papel
de Nossa Mãe ao de Cristo e àquele que deve ser o nosso – sintetizado em três
palavras-chave: luta, ressurreição e esperança.
O Apocalipse (Ap 12,13ss) releva a luta entre
a mulher e o dragão. A mulher, que figura a Igreja, é, por um lado, gloriosa e
triunfante e, por outro, ainda se encontra em dificuldade. Assim é a Igreja: no
Céu já está associada à glória do Senhor; na história enfrenta constantemente
as provações e desafios que supõe o conflito entre Deus e o Maligno E, nesta
luta que os discípulos devem enfrentar, Maria não os deixa sozinhos; a Mãe (de Cristo e
da Igreja) está sempre connosco, caminha sempre
connosco. Maria compartilha, em certo sentido, esta dupla condição. Entrou definitivamente
na glória do Céu, mas isso não significa que Ela esteja longe, separada de nós;
na verdade, Maria acompanha-nos, luta connosco, sustenta os cristãos no combate
contra as forças do mal. A oração a e com Maria também tem essa dimensão
“agonística”, ou seja, de luta, uma oração que dá apoio e força na luta contra
o Maligno e seus aliados.
Depois, na solenidade da Assunção fala-se da ressurreição. Com efeito, o
apóstolo Paulo, escrevendo aos Coríntios, insiste no facto de que ser cristão
significa acreditar que Cristo ressuscitou verdadeiramente dos mortos. E o
mistério da Assunção de Maria está inteiramente inscrito na Ressurreição de Cristo.
A humanidade da Mãe foi ‘atraída’ pelo Filho na sua passagem através da morte.
Jesus entrou de uma vez por todas na vida eterna com toda a sua humanidade, que
recebera de Maria. Assim, Ela, que O seguira fielmente durante toda a sua vida
e O seguira com o coração, entrou com Ele na vida eterna, na Casa do Pai. Pela
Cruz, Maria conheceu o martírio do coração, o martírio da alma. Sofreu tanto no
seu coração enquanto Jesus sofria na Cruz. A Ela, que estava totalmente unida
com Ele na morte, foi-Lhe, por isso, dado o dom da ressurreição. Cristo
é como que primícias dos Ressuscitados e Maria é como que primícias dos
redimidos, a primeira daqueles “que pertencem a Cristo”. Ela é nossa
Mãe, mas também podemos dizer que é nossa representante, nossa irmã, nossa
primeira irmã; Ela é a primeira entre os redimidos que chegou ao Céu.
O Evangelho proclamado na solenidade da Assunção, que
evidencia o cântico da misericórdia divina, aponta para a terceira daquelas
palavras-chave – esperança. A
esperança é a virtude daqueles que, experimentando a luta diária entre a vida e
a morte, entre o bem e o mal, creem na Ressurreição de Cristo, na vitória do
Amor. O Magnificat é, na ótica de
Francisco, o cântico da esperança, o cântico do Povo de Deus no seu caminhar
através da história, “o cântico de muitos
santos e santas, alguns conhecidos, outros – muitíssimos – desconhecidos, mas bem
conhecidos por Deus: mães, pais, catequistas, missionários, padres, freiras,
jovens, e também crianças, avôs e avós” – dos que “enfrentaram a luta da
vida, levando no coração a esperança dos pequenos e dos humildes. (Este é bem o
Papa de Deus e das pessoas, da Igreja e do Mundo!)
A este respeito, o Papa não podia ser mais claro em
relação ao Magnificat da esperança:
“Maria diz: ‘A
minha alma engrandece ao Senhor’ – hoje a Igreja também canta a mesma coisa, e
o canta em todas as partes do mundo. Este cântico é particularmente intenso,
onde o Corpo de Cristo hoje está sofrendo a Paixão. Onde está a Cruz, para nós
cristãos, há esperança, sempre. Se não há esperança, nós não somos cristãos.
Por isso gosto de dizer: não deixeis que vos roubem a esperança. Que não vos
roubeis a esperança, porque esta força é uma graça, um dom de Deus que nos leva
para frente, olhando para o Céu. E Maria está sempre lá, próxima dessas comunidades,
desses nossos irmãos, caminhando com eles, sofrendo com eles, e cantando com
eles o Magnificat da esperança.”
Na Coreia do sul, em 15 de agosto de 2014, o
Bispo de Roma assumiu a Assunção de Maria como ícone da nossa vocação
“A Assunção
de Maria mostra-nos o nosso destino como filhos adotivos de Deus e membros do
Corpo de Cristo: como Maria, nossa Mãe, somos chamados a participar plenamente
na vitória do Senhor sobre o pecado e a morte e a reinar com Ele no seu Reino
eterno”.
E como o quadro da nossa aprendizagem
da liberdade de filhos e de irmãos:
“Cristo é o
novo Adão, cuja obediência à vontade do Pai derrubou o reino do pecado e da
escravidão e inaugurou o reino da vida e da liberdade (cf 1Cor 15,24-25). A verdadeira
liberdade encontra-se no amoroso acolhimento da vontade do Pai. De Maria, cheia
de graça, aprendemos que a liberdade cristã é algo mais do que a mera
libertação do pecado; é a liberdade que abre para um novo modo espiritual de
considerar as realidades terrenas, a liberdade de amar a Deus e aos nossos
irmãos e irmãs com um coração puro e viver na jubilosa esperança da vinda do
Reino de Cristo.”
***
Torna-se pertinente que
os cristãos meditem o suficiente no sentido da Assunção de Maria. E talvez fiquem
a perceber por que razão a Santa Sé não quis a supressão do feriado em
Portugal.
2015.08.18 – Louro de Carvalho
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