segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Falou a democracia no Brasil e Lula da Silva é o novo Presidente

 

A 30 de outubro, após um mandato de tumulto e fúria de Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), exemplificado no tratamento abissal da pandemia de covid-19, no saque da Amazónia, nos ataques à democracia e num fluxo constante de declarações racistas, sexistas e homofóbicas, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), venceu as eleições, tornando-se o único cidadão eleito presidente para três mandatos (este é o terceiro), embora não todos consecutivos, desde a redemocratização do Brasil (entre os anos 1975 e 1985).

Segundo a editorial do Le Monde, do dia 31 de outubro, a vitória de Lula da Silva representa “um alívio planetário”, sendo rapidamente saudada em toda a América Latina, mas também em Washington e em Bruxelas (o que pode inibir uma tentativa de golpe “trumpista” da parte de Bolsonaro). Na verdade, nunca a vitória de um candidato de esquerda na América Latina terá sido tão politicamente bem-vinda e saudada com tal amplitude fora desse subcontinente como esta. Efetivamente, com as experiências governativas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, o mundo dito ocidental estava quase em pânico, até porque a extrema-direita se mostrou em crescente ascensão em vários países europeus e do mundo inteiro, como atesta Joe Mulhall no seu livro Tambores ao longe (2022).

Resta, assim, ao líder de extrema-direita, calado na noite eleitoral (o seu, pelos vistos, aconselhado silêncio é ambíguo), uma obrigação para com o país: reconhecer publicamente a derrota, o que não parece fácil, e preparar uma alternância pacífica no topo do Estado, se tal for a sua vontade política. Não é plausível que o homem que foi, muitas vezes, comparado ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o imite neste desfecho da campanha eleitoral mais virulenta e violenta de sempre no Brasil. Com efeito, não é legítimo desafiar as instituições, só porque as coisas não correram de feição e os resultados marcam a vitória do adversário, que tem, agora, de pensar nos desafios que tem pela frente. 

Na primeira volta, Lula ficou à frente dos demais candidatos, separado de Bolsonaro por cinco milhões de votos. Nesta segunda volta, a que se apresentaram dos dois candidatos mais votados, o vencedor arrecadou apenas pouco mais de dois milhões de votos, obtendo 50,9% dos votos, ficando o derrotado com a restante percentagem (49,1%), não obstante Lula da Silva ter obtido o apoio explícito de candidatos que ficaram para trás na primeira e de ex-presidentes, como Dilma Rousseff, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney. Está visto que os sequazes dessas ilustres figuras públicas não acolheram as suas indicações de voto. 

Foi a primeira vez, depois da redemocratização, que o candidato derrotado ganhou em mais unidades federativas que o candidato vencedor. Bolsonaro venceu com ampla margem de votos no Acre, Distrito Federal, Espirito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondónia, Roraima, Santa Catarina e S. Paulo, com larga margem, e no Amapá com uma margem pequena, apesar de Lula ter ali vencido na primeira volta. São 14 Estados. Já o petista teve vitórias amplas nos Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe; e teve vitórias menos expressivas no Amazonas, no Pará, em Minas Gerais e em Tocantins São ao todo 13 Estados

Após o escrutínio eleitoral da primeira volta, a 2 de outubro, vieram ao de cima alegações que fragilizaram a candidatura do candidato do PT, por exemplo: não ter especificado, na campanha, o seu projeto para a economia, a sua antiga preferência, não revogada, pela exploração dos recursos fósseis (para várias aplicações, nomeadamente combustíveis), assédio sexual enquanto esteve recluso e a sua condição de condenado à prisão (muito embora nunca tenham sido suficientemente esclarecidos os motivos da sua condenação por corrupção (de que, afinal, foi completamente ilibado), pairando a ideia de que esteve na sua origem a delação premiada).

A estreiteza da vitória de Lula da Silva, que acabou por concretizar, aos 77 anos e após uma passagem na prisão, uma das voltas ao poder mais espetaculares já realizadas numa potência do tamanho do Brasil, mostra como a sua tarefa será imensa. Enquanto, inicialmente, havia sido previsto um triunfo inequívoco, o ex-sindicalista teve de suar as estopinhas para arrebatar os votos que lhe permitiram chegar à frente de Jair Bolsonaro. Porém, o ora vencedor acreditava ter colocado muitos trunfos em jogo, a começar por ir além da sua ancoragem política original, a esquerda identificada com o PT, partido de que foi um dos fundadores e figura de proa. Ante o presidente incumbente, apresentou-se à frente de ampla coligação aberta aos centristas e mesmo aos conservadores, frente ampliada que recebeu novos apoios entre as duas voltas eleitorais.

Essa estratégia foi essencial, mas não impediu o recrudescimento de um populismo agressivo e a passagem do bolsonarismo militante para o bolsonarismo institucional, o que se confirmou nesta segunda volta, com várias intervenções dúbias da polícia e a ambiguidade das forças armadas. Efetivamente, enquanto a campanha presidencial fez vir à tona a vulnerabilidade do país às inverdades veiculadas pelas redes sociais e a influência de alguns pastores evangélicos ultraconservadores, o bolsonarismo está presente no Congresso do Brasil, bem como em muitos dos seus Estados, a começar pelo mais rico, o de São Paulo, que será, doravante, liderado por um ex-ministro do presidente derrotado.

No entanto, agora, é de saudar a vitória de Lula da Silva, o velho operário e sindicalista que é, de novo, o Presidente do Brasil, regressado à luta política após a dolorosa experiência da injusta acusação, condenação e prisão por alegada corrupção, ditada pela judicialização da política. 

A recandidatura vitoriosa do político petista face ao incumbente constitui um fabuloso exemplo de combatividade e resiliência políticas, reveladoras de um forte carisma pessoal e inabaláveis convicções que emolduram a personalidade do vencedor.

Todavia, é de reconhecer que são agora bem mais difíceis os desafios do seu governo do que das outras vezes. Com efeito, a vitória eleitoral não teve uma folga tão ampla como se esperava (uma diferença de dois pontos percentuais em relação a Bolsonaro) e advém sobretudo do voto nordestino. Por outro lado, é de registar a lamentável situação económica e social em que o Presidente cessante deixa este grande país: pobreza, abandono escolar, escandalosa assimetria de rendimento, apartheid social. Além disso, sobressai a fragilidade da coligação que apoiou Lula da Silva, que vai da extrema-esquerda à direita moderada e que espera dele a satisfação das suas reivindicações. Por último, o Presidente vai debater-se com a falta de apoio político no Congresso, onde o PT e a esquerda têm menos deputados e senadores do que antes, tornando mais difícil a aprovação dos orçamentos e a da legislação de que o governo precisa.

A tudo isto acresce o “bolsonarismo social”, que, perpassando a sociedade brasileira, cativou quase metade dos eleitores. Na verdade, apesar de o chefe ter perdido as eleições, há os deputados e senadores bolsonaristas em Brasília, os governadores bolsonaristas em Estados importantes (a começar por S. Paulo), as redes de conspiração bolsonaristas nos média e nas redes sociais, os núcleos bolsonaristas na polícia e nas forças armadas, a ação de muitas igrejas evangélicas. 

Lula da Silva, portanto, vai precisar da sua destreza e capacidade política para construir uma larga e consolidada base política e social para o seu governo, que tem de ir muito além do PT, já que é preciso reunificar social e geograficamente o País severamente dividido. Para tanto, importa concitar o apoio da comunidade internacional democrática, sobretudo a da América Latina e poder contar que a situação económica internacional e a situação política nos Estados Unidos da América (EUA) lhe sejam favoráveis.

Não se trata hoje só de clivagem entre esquerda e direita, entre ricos e pobres. É um Brasil dividido em duas partes geográficas e sociais quase de igual tamanho, que precisa de mais unidade, embora com a normal diversidade.

No seu discurso de vitória, Lula da Silva prometeu restaurar a “paz” e a “unidade”, prejudicadas pelo atual mandato, que terminará a 5 de janeiro de 2023.  Também prometeu lutar contra a pobreza e contra a fome que voltou, para recolocar o respeito pelo meio ambiente no centro de sua ação e restaurar o lugar do Brasil no cenário internacional. Mas será a sua grande experiência política suficiente para superar os obstáculos? Cessarão a fome, a desflorestação, a agricultura seletiva ao serviço dos grandes interesses capitalistas, a violência, a falta de segurança, a desproteção social, o analfabetismo, a dificuldade do acesso à saúde e à educação?

Para seu crédito, terá em consonância consigo um continente sul-americano, onde o progressismo de esquerda fez incursões históricas nos últimos meses, do Chile à Colômbia, e contará com o apoio de muitos países, dos EUA à Europa, particularmente preocupados com o destino de uma Amazónia que Jair Bolsonaro entregou à exploração ilimitada dos grandes predadores.

De facto, poucos dias antes da conferência do clima agendada para o Egito, a sua eleição soa realmente como um “alívio planetário”, como refere o editorialista do Le Monde. É, pois, necessário acreditar na força da democracia e alegrarmo-nos com o seu funcionamento.

2022.10.31 – Louro de Carvalho

domingo, 30 de outubro de 2022

Dois pecadores que saltam fora do paradigma do pecador

 

O Evangelista Lucas não desiste de nos apresentar em Jesus um Deus que ama todos os seus filhos sem excluir ninguém, mesmo que os pecadores, os marginais, os ditos “impuros”, mostrando como o amor transforma e revivifica. Jesus é o rosto misericordioso de Deus!

No 30.º domingo no Tempo Comum no Ano C, o Evangelho (Lc 18,9-14) pôs-nos em confronto a atitude do fariseu e a do publicano quando foram ao Templo rezar.

Os fariseus formavam um dos grupos com mais impacto na sociedade Palestina do tempo de Jesus. Descendentes dos “piedosos” (“hassidim”) que apoiaram o heroico Matatias na luta contra Antíoco IV Epífanes e a helenização forçada, eram os defensores intransigentes da Torah (escrita e oral: a oral consistia nos preceitos que os fariseus tinham deduzido da Torah escrita), que procuravam cumprir escrupulosamente e se esforçavam por ensinar ao Povo, pois só assim – pensavam eles – o Povo chegaria a ser santo e o Messias poderia vir trazer a salvação a Israel.

No entanto, o seu fundamentalismo em relação à Torah (Lei) será criticado por Jesus, visto que, ao afirmarem a superioridade da Lei, desprezavam o homem e criavam no Povo um sentimento latente de pecado e de indignidade que oprimia as consciências.

Os publicanos eram os cobradores dos impostos ao serviço das forças romanas de ocupação. Tinham fama – e proveito – de utilizarem o cargo para enriquecimento imoral. De acordo com a Mishna (Torah oral), estavam afetados permanentemente de impureza e nem sequer podiam fazer penitência, por serem incapazes de conhecer todos os que tinham defraudado e a quem deviam reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, fazia parte de uma comunidade farisaica, era imediatamente expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar tal cargo. Quem exercia tal ofício, estava privado de certos direitos cívicos, políticos e religiosos, não podendo, por exemplo, ser juiz nem prestar testemunho em tribunal: equiparado ao escravo.

Neste fariseu e neste publicano, confrontam-se dois tipos de atitude face a Deus.

O fariseu, consciente de que ninguém o pode acusar de ações injustas, nem contra Deus, nem contra os irmãos (e a parábola não diz que ele mentisse), está satisfeito (tinha razões para isso) por não ser como o publicano que também estava no Templo e dá graças a Deus por isso.

O publicano, paradigma do pecador, que explora os pobres, pratica injustiças, trafica com a miséria e não cumpre a Lei, tem consciência da sua indignidade, pois a sua oração consiste em pedir: “Meu Deus, tem compaixão de mim que sou pecador”.

Jesus garante que o publicano se reconciliou com Deus (“desceu justificado para sua casa” – o que leva à doutrina paulina da justificação: apesar de o homem viver mergulhado no pecado, Deus, na sua infinita misericórdia e sem que o homem tenha méritos, salva-o). Na verdade, como diz Jesus Ben Sirah (vd Sir 35,15b-17.20-22a), Deus escuta sempre as preces dos débeis e está atento aos gritos de revolta das vítimas da injustiça. Assim, os humildes que sofrem a opressão e a prepotência dos poderosos são convidados a apresentar a Deus as suas queixas, até que Ele restabeleça o direito e a justiça. E o publicano, que se sentia injuriado e marginalizado pelo ofício que desempenhava, sai da sua condição, mercê da ação de Deus, a que juntou a sua oração humilde.  

O problema do fariseu é pensar obter a salvação com o seu próprio esforço, em vez de a considerar um dom de Deus. Está convicto de que Deus lhe deve a salvação por bom comportamento, como se Deus fosse apenas o contabilista-notário que toma nota das ações do homem e lhe paga.

Cheio de autossuficiência, nada espera de Deus, pois, como julga, os seus créditos bastam para se salvar, e vota ao desprezo os que não são como ele, acusando-os mesmo a rezar. Considerando-se à parte, em nome de Deus, cria segregação e exclusão: é a religião dos méritos. Já o publicano apoia-se só em Deus e não nos seus méritos (que não tem). Apresentando-se de mãos vazias e sem pretensões, entrega-se nas mãos de Deus e pede compaixão. E Deus justifica-o, derrama sobre ele a sua graça e salva-o, porque ele não tem o coração cheio de autossuficiência e está disposto a aceitar a salvação que Deus quer oferecer a todos os homens.

A parábola, destinada a “alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”, sugere que esses que se presumem de justos estão, às vezes, muito longe de Deus e da salvação.

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Por sua vez, o Evangelho do 31.º domingo no Tempo Comum (Lc 19,1-10), fala-nos de outro publicano, aliás mais do que publicano – chefe de publicanos, que surge com um nome: Zaqueu.  

O episódio remete-nos para Jericó, um oásis nas margens do mar Morto, a cerca de 34 quilómetros de Jerusalém. Era a última etapa dos peregrinos que rumavam, da Pereia e da Galileia, a Jerusalém para as grandes festividades, mostrando que o “caminho de Jerusalém”, que temos vindo a percorrer pela mão de Lucas, está a chegar ao fim.

Jericó era uma cidade próspera, sobretudo devido à produção de bálsamo, dotada de grandes e belos jardins e palácios (por ação de Herodes, o Grande, que fez dela a sua residência de inverno) e, situada num lugar privilegiado de importante rota comercial, era lugar de belas oportunidades para grandes negócios e também para negócios duvidosos.

Zaqueu, chefe de publicanos, era um homem abastado que o judaísmo oficial considerava pecador público, explorador dos pobres, colaboracionista ao serviço dos opressores romanos e, portanto, um excluído da comunidade da salvação. Usava o cargo para enriquecer de forma imoral (exigindo impostos muito acima do que era fixado pelos romanos e guardando para si a diferença – prática recorrente entre os publicanos). Como pecador público era homem sem hipótese de perdão, pelo que estava proscrito do convívio com as pessoas decentes. Considerado amaldiçoado por Deus, era desprezado pelos homens. A referência à sua “pequena estatura” – mais do que indicação de carácter físico – pode significar pequenez e insignificância, do ponto de vista moral.

Não obstante, este homem procurava “ver” Jesus. O “ver” implica a mobilização da curiosidade pessoal, mas também a procura intensa, a vontade firme de encontro com algo novo, a ânsia de descobrir o Reino de Deus, de que talvez tenha ouvido falar de modo confuso, enfim, o desejo de integrar a comunidade de salvação que Jesus anunciava. Porém, o “mestre” parecia-lhe inacessível, rodeado dos “puros” que desprezavam os marginais. Por isso, ousou subir a um sicómoro, o que revela a intensidade do desejo de encontro com Jesus, que é muito mais forte do que o medo do ridículo ou dos apupos da multidão, naturais por se tratar da pessoa que ele era.

E a surpresa de Deus acontece. Jesus provoca o encontro e mostra a Zaqueu que está interessado em entrar em comunhão com Ele, em estabelecer com Ele laços de familiaridade (“quando Jesus chegou ao local, olhou para cima e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce depressa, que Eu hoje devo ficar em tua casa’.”). Jesus, rodeado pelos “puros” que escutam atentamente a sua Palavra, deixa a todos parados na rua para estabelecer contacto com o marginal e para entrar na sua casa. É um dos casos de exemplificação de “deixar as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que estava perdida” (vd Lc 15,4-7). Torna-se patente a fragilidade do coração de Deus que, face ao pecador que busca a salvação, deixa tudo para ir ao seu encontro.

Perante esta estranha atitude de Jesus, a multidão que O rodeia reage manifestando a sua natural desaprovação (“ao verem isto, todos murmuravam, dizendo: ‘foi hospedar-se em casa de um pecador’.”). Consideravam-se “justos” e desprezavam os outros. Estavam instalados nas certezas, sobretudo na de que a lógica de Deus é a lógica de castigo, de marginalização, de exclusão.

Ao invés, Jesus demonstra-lhes que a lógica de Deus é diferente da lógica dos homens e que a oferta de salvação que Deus faz não exclui nem marginaliza ninguém.

E o episódio termina num banquete – onde está Zaqueu, o chefe dos publicanos – que simboliza o “banquete do Reino”. Sentando-Se à mesa com Zaqueu, Jesus mostra que os pecadores têm lugar no seu Reino, pois Deus ama-os, aceita sentar-Se à mesa com eles, pois quer integrá-los na sua família e estabelecer com eles laços de comunhão e de amor.

Não podemos esquecer que Zaqueu, à ordem de Jesus, desceu do sicómoro, cheio de alegria, porque o Senhor lhe disse que tinha de ficar em sua casa.

Esta situação faz-me lembrar o caso da senhora de etnia cigana que foi à escola reclamar com a professora por, alegadamente, ter sido dura para com o filho. Porém, quando a professora lhe perguntou como é que estava “o seu menino”, a pretensa reclamante caiu em si comovida porque a professora tratava o seu filho por “o menino”. Sentiu que o filho não era discriminado.  

Ora, Zaqueu reagiu a essa fabulosa oferta de salvação que Deus lhe faz, acolhendo o dom de Deus e convertendo-se ao amor. A repartição dos bens pelos pobres e a restituição de tudo o que foi roubado em quádruplo, vai muito além do que exigia a Lei (cf Ex 22,3.6; Lv 5,21-24; Nm 5,6-7) e releva a transformação do coração de Zaqueu. Porém, este só decidiu pela generosidade após o encontro com Jesus e a experiência do amor de Deus. O amor de Deus não se derramou sobre Zaqueu só depois de ele ter mudado de vida, mas foi o amor de Deus – que Zaqueu experimentou ainda pecador – que provocou a conversão e que converteu o egoísmo em generosidade.

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Enfim, estamos ante dois pecadores que saltam fora do estatuto do pecador empedernido. Neste aspeto, são exemplares.

2022.10.30 – Louro de Carvalho

A problemática da mudança da hora na União Europeia

 

Os peritos internacionais que subscreveram a Declaração de Barcelona sobre Políticas do Tempo, assinada por mais de 70 instituições internacionais, em outubro de 2021 e que tinha por objetivo, entre outros, o de promover o debate sobre a mudança da hora, propõem o fim da mudança da hora na União Europeia (UE) e o alinhamento dos fusos horários dos diferentes países, aproximando-os o máximo possível da hora solar e tornando-os permanentes.

Os subscritores da predita Declaração de Barcelona sustentam que as mudanças na hora legal “não têm efeitos significativos na poupança energética”, ao passo que a manutenção da mesma hora “melhora a saúde, a economia, a segurança e o meio ambiente”.

Estes especialistas, citados pela agência noticiosa Efe, defendem, numa primeira fase, que todos os países da UE acabem com a mudança da hora na primavera (para a hora de verão, UTC+1, em que os relógios são adiantados 60 minutos) e continuem com a hora de inverno (UTC+0), não tendo de fazer alterações os países cujo fuso horário recomendado é a sua hora padrão atual. (UTC, sigla em Inglês para Tempo Universal Coordenado, é a hora padrão a partir da qual se calculam os fusos horários no mundo. E, numa segundo fase, os países cujo fuso horário recomendado não corresponde à sua hora padrão, como Portugal, Espanha, Bélgica, França, Grécia, Irlanda, Luxemburgo e Países Baixos, atrasariam, uma última vez, os relógios no outono (UTC-1), para poderem adotar o fuso horário recomendado como a sua nova hora padrão.

O atual regime de mudança da hora na UE é regulado por uma diretiva que determina que todos os anos os relógios sejam adiantados e atrasados, respetivamente, uma hora no último domingo de março e no último domingo de outubro, marcando o início e o fim da hora de verão.

O grupo de peritos que propõe o fim da mudança da hora na UE inclui representantes de organizações que defendem “fusos horários saudáveis”, como a International Alliance for Natural Time (Aliança Internacional para uma Hora Natural), a European Biological Rhythms Society (Sociedade Europeia de Ritmos Biológicos) e a European Medical Association (Associação Médica Europeia), bem como especialistas em cronobiologia (de crónos, tempo + logos, estudo +ia, sufixo indicador de ciência ou arte: ramo da biologia que estuda os efeitos dos chamados relógios biológicos).

Porém, a mudança da hora é vista pela positiva por muitos, que viram, a 30 de outubro, esta medida como sinónimo de mais uma hora de sono. Para outros nem tanto, uma vez que significa que os dias passarão a ser mais curtos, ficando de noite mais cedo.

Portugal – que entrou, a 27 de março na hora de verão (UTC+1) e, de 29 para 30 de outubro, na hora de inverno (UTC+0), atrasando os relógios 60 minutos às duas horas, mas em que a Região Autónoma dos Açores tem sempre menos uma hora do que o Continente e a Região Autónoma da Madeira – defende o atual regime, com hora de verão e com hora de inverno.

Na sequência de um inquérito de 2018 que ditou que a esmagadora maioria dos europeus prefere o fim da mudança da hora, em março de 2019, o Parlamento Europeu (PE) aprovou, sob proposta da Comissão Europeia, o fim da mudança da hora nos Estados-Membros da UE, defendendo a entrada em vigor da medida em 2021. Contudo, a adoção da medida no espaço comunitário dependia de uma tomada de posição, que está por tomar, do Conselho da UE, instância de decisão onde estão representados os Estados-Membros, e também dos próprios parlamentos nacionais.

Na altura, o Conselho da UE entendeu que, para a concretização da medida, faltava uma avaliação de impacto e remeteu o assunto para a Comissão Europeia, mas o surgimento de temas como o Brexit, a pandemia de covid-19 e, mais recentemente, a guerra na Ucrânia tem relegado o tema para fora das agendas dos líderes europeus.

É de anotar que a referida consulta pública de 2018 obteve 4,6 milhões de respostas de vários Estados-Membros, sendo que Portugal contribuiu somente com 0,7%. A maioria dos votos (84%) dos países que participaram foi, como ficou dito acima, a favor de se pôr fim à mudança de hora.

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Na sequência de consulta pública organizada pela Comissão Europeia em 2018, o Observatório Astronómico de Lisboa (OAL), então com competência na manutenção da hora legal em Portugal, emitiu um parecer, remetido ao Governo, que apontava a manutenção da hora de verão e da hora de inverno, avaliando fatores como a poupança energética e a perturbação no sono.

O parecer sustentava que a poupança de energia “é positiva mas diminuta” e as perturbações do sono “mínimas” com o horário de verão. Porém, indicava que a transição para a hora de inverno “poderia ser melhor”, se ocorresse em finais de setembro, como sucedeu até 1995 na Europa, e não no fim de outubro, “permitindo uma maior aproximação à hora solar durante o ano”.

Segundo o documento, manter apenas a hora de inverno significava ter “o sol a nascer perto das 5 horas na altura do verão, ou seja, uma madrugada de sol desaproveitada seguida de um final de tarde com menos uma hora de sol, fatores que não são positivos nas atividades da população”. Por outro lado, mantendo a hora de verão todo o ano, “o sol nasceria entre as 8 e as 9 horas durante quatro meses do ano, no inverno, com impactos negativos”, nomeadamente nas deslocações para o trabalho e para a escola, que teriam pouca luz. Assim, a pouca luz vem no fim do dia!

Por seu turno, o Professor Vital Moreira, a 25 de outubro, no blogue Causa Nossa, declarou reiterar o seu apoio à proposta – novamente sufragada pelo dito grupo de peritos a 24 de outubro deste ano – de “acabar com a mudança cíclica da hora em toda a União”, bem como “à ideia de cada país adotar como hora permanente aquela que for mais consentânea com o seu natural fuso horário, ou seja, com a hora solar” (que, na generalidade dos casos, é a “hora de inverno”). 

Considera “indiscutíveis os inconvenientes da mudança semestral da hora”, como a necessidade de mudar manualmente, duas vezes por ano, todos os relógios e programadores não ligados à Internet, não havendo hoje motivo de vulto para o desvio da hora solar, no verão, que é, no caso português, a do fuso horário de Greenwich, onde se encontra o Reino Unido e a Irlanda e se deveria situar também a Espanha (todavia alinhada, com a hora da Europa central, pelo que Vigo tem a mesma hora de Varsóvia...).

Aliás, Vital Moreira, citando o comentário de um leitor seu, observa que o mesmo se aplica à França, pois, até 1940, a Espanha, a França e o Benelux tinham a hora inglesa, mas a invasão hitleriana e o filogermanismo de Francisco Franco “obrigaram a que a França, o Benelux e a Espanha mudassem todos para a hora alemã”. Por seu turno, outro leitor considera que “não se podem pôr no mesmo pé a França e a Espanha, visto que o território francês fica maioritariamente na metade leste do fuso horário de Greenwich, enquanto a segunda fica maioritariamente na metade oeste, o que torna mais artificial a sua hora”. Porém, o académico sublinha que “mais importante do que a escolha do fuso horário de cada país é a mudança cíclica da hora”.

Também, Gustavo Rojas, especialista em astronomia do NUCLIO – Núcleo Interativo de Astronomia e Inovação em Educação, defende que a mudança de hora duas vezes por ano implica as áreas da saúde, da economia e da ciência em simultâneo. Por isso, como verifica, “não existe um consenso entre os estudiosos, porque há muitos fatores a ter em conta”.

Considerando a sua área de estudos, revela que, do ângulo da astronomia, a maior condicionante para esta mudança é “o aumento e a diminuição da luz natural”, sendo esta a sua “preocupação” face à alteração das rotinas. Todavia, adianta que o fator da iluminação não terá tanto poder como outrora, devido à iluminação artificial: “A questão da iluminação natural pode já não ter tanto peso hoje em dia, em comparação ao século XX, quando implementaram esta mudança. Agora já não dependemos exclusivamente da luz natural para iluminar as casas e as ruas, por exemplo.”

Assim, o astrónomo questiona: “Até que ponto esta hora a mais de luz permite às pessoas aproveitarem melhor os dias? Depois de mais de 100 anos, será que os argumentos para mudar a hora ainda continuam relevantes?”. E vinca as implicações desta situação na saúde e bem-estar da população, podendo causar perturbações no sono e desregular o corpo humano, pois, “dividir os nossos ritmos duas vezes por ano interfere muito no nosso ritmo circadiano, que é associado ao período de luz e regula o nosso sono.” (Ritmo circadiano – circa, cerca de +diem, dia – é o da variação nas funções biológicas dos seres vivos em cerca de 24 horas.)

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A primeira vez que se alterou a hora foi na Primeira Guerra Mundial, em 1916, para se pouparem recursos indispensáveis, como o carvão, e potencializar as horas de luz solar. Enfrentando agora a Europa as consequências da Guerra da Ucrânia – nomeadamente a crise energética – é inevitável manter esta decisão. No entanto, é de ponderar se esta opção fará sentido no futuro. A discussão mantém-se há muitos anos, questionando-se o porquê de adiar ou a atrasar os relógios uma hora. Com efeito, se se ganham horas de luz ao final da tarde, também estas se perdem durante a manhã.

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Eu, que já vivi com mudança da hora e sem ela (não tivemos hora de inverno entre 1992 e 1996), com pouca diferença, só espero que decidam e que o façam por motivos de peso!

2022.10.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Taxa de inflação em outubro é a mais alta desde maio de 1992

A inflação voltou a acelerar em outubro, atingindo 10,2%, de acordo com a estimativa rápida divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a 28 de outubro, sendo a taxa mais elevada desde maio de 1992 (há 30 anos). E a inflação subjacente, que não inclui os produtos com variações mais flutuantes, como os produtos alimentares não transformados e energéticos, está em 7,1%, o máximo de 28 anos, revelando que a subida de preços não está concentrada na energia.
Estes valores contrariam as previsões do Banco de Portugal (BdP), que estimava que a variação no índice de preços ao consumidor (IPC) tinha atingido o ponto máximo no terceiro trimestre. 
A taxa de inflação homóloga foi de 9,3%, em setembro, atingindo, em outubro, dois dígitos. Já a “taxa de variação homóloga do índice relativo aos produtos energéticos terá aumentado para 27,6% (taxa superior em 5,4 p.p. face ao mês precedente, destacando-se os aumentos de preços do gás natural)”. Ao mesmo tempo, o índice que mede os preços dos produtos alimentares não transformados acelerou, em outubro, para 18,9% (em setembro, era de 16,9%), taxa mais elevada desde junho de 1990 (há 32 anos).
Quanto ao Índice Harmonizado de Preços no Consumidor (IHPC) português, o indicador utilizado nas comparações europeias, terá registado uma variação homóloga de 10,7%, contra 9,8%, no mês anterior.
É de ter em conta que estes números são ainda provisórios, sendo que o INE divulgará os dados definitivos referentes ao IPC do mês de outubro de 2022 no próximo dia 11 de novembro.
A confirmar-se, a inflação de 10,2% em outubro, mais 0,9 pontos percentuais (p.p.) do que em setembro, pode deixar em risco meta do governo para o IPC, que era de 7,4%, para 2022, devendo a evolução dos próximos dois meses determinar se a previsão do governo ainda poderá ser atingida. Tanto uma variação nula (não subida face ao mês anterior) como uma subida em cadeia igual à verificada neste mês devem ditar uma inflação superior à estimativa do governo.
Se a evolução em cadeia for nula em novembro e em dezembro, a taxa média anual de inflação ficará nos 7,8%, em 2022. Em janeiro, a variação do IPC foi de 3,4%, número que foi sempre acelerando, exceto no mês de agosto, em que abrandou para 8,9%. Porém, se se verificar uma subida em cadeia igual à deste mês, de 0,9 pontos percentuais, em novembro e em dezembro, a taxa média anual pode vir a atingir os 8,1% em 2022. Assim, para ser possível atingir a meta estabelecida pelo Executivo, a inflação tem de desacelerar bastante até ao final do ano.
Recorde-se que a previsão do governo inscrita na proposta de Orçamento do Estado para o próximo ano (OE2023), entregue a 10 de outubro no Parlamento, é de uma inflação de 7,4%, neste ano, e de 4%, em 2023. Tal previsão é contrariada pelas projeções do Conselho das Finanças Públicas (CFP), que apontam para uma inflação de 7,7%, neste ano, e de 5,1% em 2023. O Fundo Monetário Internacional (FMI) é mais pessimista, ao estimar uma taxa de inflação de 7,9%, neste ano, que desacelerará para 4,7%, em 2023.
Depois de se ter registado, em setembro, uma taxa de variação homóloga do IPC de 9,3%, esta atingiu agora dois dígitos. Assim, os dados do INE mostram que a subida de preços já não está só concentrada na energia, já que a inflação subjacente acelerou para 7,1%, em setembro, surgindo em máximos destes últimos 28 anos.
Questionado sobre estes números, o Ministério das Finanças não se pronunciou, mas o líder parlamentar do PS, segundo declarou aos jornalistas no Parlamento, quer esperar para ver “como se vai comportar a inflação nos últimos meses do ano”, pois, “estando em outubro, o valor que faz referência não tem em conta ainda o último trimestre”.
Por outro lado, Eurico Brilhante Dias apontou que o “acelerar da inflação começou antes da guerra, em particular no quarto trimestre de 2021, por isso, temos de esperar e olhar com atenção para o comportamento dos preços a 31 de dezembro”. E assegurou, ainda assim, que o Governo “preparou o OE para garantir que pode apoiar portugueses e empresas durante 2023”, sendo que, se não tivesse “sido prudente, provavelmente estaríamos com mais dificuldades para apoiar hoje”.
***
Nesta conjuntura, em que o país alinha grosso modo com a Zona Euro (ali a inflação ronda os 10%), ainda sem sinais de tréguas da inflação, o Banco Central Europeu (BCE) anunciou nova subida “jumbo” das taxas de juro na Zona Euro, de 75 pontos base, apertando mais as condições financeiras para famílias e empresas da região, num esforço para domar a escalada dramática dos preços. Assim, elevou a taxa dos depósitos para 1,5% e a taxa de refinanciamento para 2%, o nível mais elevado desde julho de 2008, a antecâmara da grave crise financeira mundial.
 “Com este terceiro grande aumento consecutivo das taxas diretoras [desde julho], o conselho do BCE avançou consideravelmente com a eliminação da acomodação da política monetária”, diz em comunicado. E adianta que “espera continuar a aumentar as taxas de juro”, para “assegurar o retorno atempado da inflação ao seu objetivo de 2% a médio prazo”, e que a trajetória futura das taxas de juro diretoras na evolução das perspetivas de inflação e económicas terá a sua abordagem reunião a reunião.
De acordo com os analistas, em cima da mesa pode estar outro aperto das taxas, mas de 50 pontos base, o que levaria a taxa de depósitos do BCE a terminar o ano nos 2%, o nível considerado “neutral” para a economia. Depois, restará saber quando terminará este ciclo de subidas. Os analistas antecipam o fim do caminho perto dos 3%.
Para as famílias e para as empresas, o agravamento das taxas de juros traduz-se num aumento dos encargos com os empréstimos dos bancos (como para a compra de casa, por exemplo), quando já têm de lidar com o impacto brutal do aumento do custo de vida – a inflação ficou nos 9,9% em setembro, uma taxa sem precedentes na história de duas décadas da moeda única.
O BCE, ao constringir as condições financeiras, procura resfriar a procura e aliviar os preços para o seu objetivo simétrico de 2% a médio prazo, mas tem de avaliar o outro lado da moeda: o aperto monetário poderá traduzir-se numa recessão na Zona Euro, pois a economia atravessa uma crise energética e a Europa enfrenta uma guerra, cujo término ainda não se vislumbra.
Face esta “pedagogia” do BCE, o primeiro-ministro português e o Presidente da República criticam essa instituição europeia, vincando as dificuldades criadas às famílias, que perdem cada vez mais poder de compra, e às empresas que estão cada vez com maiores dificuldades de crescimento e de modernização. Neste sentido, pedem uma maior ponderação, recusando a técnica da folha Excel, que pode levar a que se morra da cura, quando não se morreu da doença.
Preocupado com a inflação demasiado ascendente – subida asfixiante de preços dos bens essenciais, de bens de natural cómodo para os consumidores e dos produtos energéticos – está o Conselho de Estado, que ao tema dedicou a sua recente sessão.
Não obstante, não parece que haja volta a dar no curto prazo. Com efeito, os analistas económicos consultados pelo BCE reviram em alta as previsões para a inflação na Zona Euro até 2024, mantêm as estimativas para os preços a longo prazo e antecipam estagnação económica em 2023.
Reviram em alta as previsões para a inflação subjacente, que exclui a energia, alimentação, álcool e tabaco, para 2024.
Assim, preveem uma inflação na Zona Euro de 8,3%, em 2022 (contra 7,3% no inquérito anterior), 5,8%, em 2023 (contra 3,6%), e 2,4%, em 2024 (contra 2,1%). E antecipam uma inflação média a longo prazo, em 2027, de 2,1% (contra 2,2% no inquérito anterior do terceiro trimestre). Esta revisão reflete, sobretudo, preços mais elevados da energia e dos alimentos, mas também um encarecimento de outros produtos para os quais foram transferidos o aumento destes preços e que se espera que conduzam a um crescimento mais elevado dos salários.
Os peritos reviram em baixa as previsões de crescimento para 2023, 2024 e a longo prazo, embora esperem um crescimento um pouco mais elevado neste ano. Assim, previram um crescimento de 3%, em 2022 (contra 2,8% no inquérito anterior), 0,1%, em 2023 (contra 1,5%), 1,6%, em 2024 (contra 1,8%), 1,4%, em 2027 (contra 1,5% no inquérito anterior) e 1,4% a longo prazo (contra 1,5% no inquérito anterior). E preveem uma contração económica entre o terceiro trimestre de 2022 e o primeiro trimestre de 2023, com uma queda acumulada de 0,7%, devido aos elevados preços da energia, perda do poder de compra das famílias devido à inflação, uma economia global mais fraca e o aumento das taxas de juro.
Por fim, reviram em alta as previsões de desemprego até 2027. Esperam que a Zona Euro tenha uma taxa de desemprego de 6,8%, em 2022 (contra 6,7% no inquérito anterior), 7,1%, em 2023 (contra 6,7%), 7%, em 2024 (contra 6,6%) e 6,6%, em 2027 (contra 6,4% no inquérito anterior).
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Em suma, estamos perante receitas financeiras, que arriscam colocar a economia na fossa, fazendo as famílias e as empresas correr sérios riscos. Segue-se a metodologia norte-americana. A Reserva Federal Americana aumenta juros e o BCE segue-lhe o encalço. Deixamos de depender de nós ou dos russos para dependermos da América. Esquecemos que as pessoas estão primeiro.  
Assim, o Conselho de Estado português – que examinou “os obstáculos e os desafios que se colocam a Portugal, em termos económicos e sociais, face ao atual quadro de incertezas e dificuldades, quer a nível nacional, quer a nível europeu e mundial” – pode pairar como a voz que prega no deserto, ao realçar “a importância de concretizar políticas que permitam mitigar a inflação e seus efeitos e incentivar o crescimento, tendo como preocupação o combate à pobreza, a diminuição das desigualdades sociais e bem-estar dos cidadãos”. Se o Governo não encontrar meios, se os agentes económicos não conseguirem alavancar a riqueza nacional…

2022.10.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

É óbvio que o OE2023 é de insuficiência, mas de trapaça talvez não

 

A proposta de lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE2023) foi aprovada na generalidade, a 27 de outubro, com os votos favoráveis do Partido Socialista (PS) e com a abstenção do Partido de Pessoas Animais e Natureza (PAN) e do Livre (L), mas recebendo os votos contra dos restantes partidos: Partido Social Democrata (PSD), Chega (C), Partido Comunista Português (PCP), Bloco de Esquerda (BE) e Iniciativa Liberal (IL).

O instrumento previsional da conta do Estado segue para a discussão na especialidade, esperando-se a votação final para o dia 25 de novembro, horizonte temporal em que serão afinados alguns itens mais problemáticos. 

O primeiro-ministro quis assinalar a aprovação do OE2023 na generalidade com a seguinte evocação: “Faz hoje precisamente um ano que da votação na generalidade resultou uma crise. Felizmente um ano depois, desta votação resulta um bom instrumento para enfrentarmos a crise que estamos a viver.”

O chefe do Governo saiu do hemiciclo acompanhado por todo o Governo. Conversou, durante vários minutos, com a secretária de Estado para a Promoção da Saúde, Margarida Tavares. E encaminhava-se para a saída quanto, interpelado à distância pela RTP, sobre o aumento de juros decidido pelo Banco Central Europeu (BCE), optou por responder só com a frase acima transcrita.

Porém, António Costa, durante o debate, falou da emergência da guerra, da inflação e da seca severa, sendo o objetivo do Governo enfrentar estes desafios, “cuidando do presente com os olhos no futuro”, e não só responder às emergências diárias. Mais disse que o Executivo está apostado na ambição reformista definida para esta legislatura.

Depois, destacou os termos da ajuda às famílias, desde as medidas de controlo do custo da energia à atualização do indexante dos apoios sociais (IAS) e do salário mínimo acima da inflação, passando pelo congelamento dos preços dos passes e do teto das rendas.

Ao mesmo tempo, relevou o financiamento à modernização das empresas com o PT 2020 (Acordo de Parceria adotado entre Portugal e a Comissão Europeia que reúne a atuação dos cinco Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, com vista à coesão e desenvolvimento económico, social e territorial de Portugal, entre 2014 e 2020), com o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) e com o PT 2030 (Acordo de Parceria entre Portugal e a Comissão Europeia, fixando os grandes objetivos estratégicos para aplicação, entre 2021 e 2027, do montante de 23 mil milhões de euros) e as medidas de incentivos fiscais firmadas no acordo com os parceiros sociais, recentemente assinado, que reduz o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) de forma seletiva, o que, no seu entender, se traduz, no seu conjunto, “numa descida de impostos sobre as empresas superior à descida transversal de dois pontos percentuais na taxa de IRC”.

Ainda sobre as empresas, disse que o objetivo é aumentar a competitividade em 2% e elevar o peso das exportações no produto interno bruto (PIB) para 53%, em 2030.

Por outro lado, o primeiro-ministro frisou a vertente das “contas certas”, que levam à redução do défice e da dívida (cujo serviço fica mais oneroso com o aumento de juros em curso e com o expectável), o que dá ao OE2023 o cariz de prudência. 

Do lado da oposição vêm os mimos da praxe:

BE fala de truque e de aldrabice e cola o OE2023 ao programa do governo de Passos Coelho.

O Chega, apontando “ilusão”, “fraude” e “falsidade”, fala em pobreza energética e questiona o Governo sobre o que estava a fazer para que, em Portugal, as pessoas deixem de morrer de frio.

O PCP considera que este orçamento “não assegura a resposta aos problemas económicos e sociais imediatos” e “agrava a injustiça fiscal”. Acusa o Governo de “desconsideração” dos problemas do povo de, um lado, pela “desvalorização real dos salários”, e, por outro lado, de oferta de “vantagens e privilégios” aos grupos económicos. Entende que, “num momento em que a inflação torna cada vez mais difícil a vida do povo”, são cada vez mais necessárias “medidas de controlo e fixação de preços para travar o aumento do custo de vida, bem como o aumento de salários e pensões”. E, sustentando que, no atinente a pensões e a reformas, “o que está em curso é uma fraude”, evidencia “o contraste entre a maioria absoluta do PS e os seis anos anteriores”.

Por seu turno, o deputado do Livre apontou culpas à esquerda e pediu que se “use bem” o debate até à votação final. Lamentou a ausência do debate das grandes opções do plano (GOP), que integram a proposta do OE2023 e que também foram votadas. Trata-se da “vitória do curto prazo sobre o médio e longo prazo”, como afirmou. E, sobre a divergência com Espanha em relação às remunerações, fez o mea culpa, dizendo que esse ónus não pode ser assacado à direita: “Fomos nós que deixámos escapar esse objetivo.”

A deputada da IL criticou o facto de não haver resposta à inflação pela atualização dos escalões do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e o de as medidas nesse sentido serem “insuficientes”. Propôs a redução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) nos produtos alimentares, medida da maior importância, a que junta a “efetiva redução do IVA de eletricidade e gás”. Quanto aos impostos diretos, como o IRS, vai propor uma medida que “trará ganhos para os rendimentos mais baixos e será neutro nos mais altos”, além de propor a criação de um “subsídio de habitação” como o mesmo tratamento fiscal do subsídio de alimentação. E concluiu falando em enganos, que nota, por exemplo, “na opacidade” em relação aos riscos que o país corre em temas como a TAP e o Novo Banco.

O PSD assume que este é um orçamento “sem estratégia ou visão para o país”, de “remendos”, de “empobrecimento”. Desmentindo que o PSD esteja envolvido numa campanha internacional a favor da subida das taxas de juro, questiona: “Quem nomeou o governador do Banco de Portugal? E como votou?” Observa que “Portugal é hoje um país mais pobre e desigual”, não passando o aumento de pensões de “ilusão monetária”. E diz que estamos perante mais um orçamento em que “falta ambição de crescimento económico” e “mais um orçamento de voracidade fiscal”, não havendo mais reformas “porque, simplesmente, o PS não quer”.

Depois de o líder parlamentar do PS ter respondido aos remoques das oposições, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, encerrou o debate em nome do Governo. “Estamos aqui para construir”, disse, voltando a lembrar os efeitos da pandemia e da guerra na economia nacional. Lembrando o seu aumento previsto para o próximo ano, frisou que, “em 2015, para alguns, parecia impossível aumentar o salário mínimo, mas conseguimos”. Acentuou que isso “teria sido impossível, se tivesse sido a direita a governar durante estes tempos”. E puxou o lustro do curriculum vitae do governo, agora com a taxa de desemprego na pandemia: “Em 2012, a taxa de desemprego jovem ultrapassou os 41% levando milhares de jovens a emigrar. Não é o que queremos.” Enfatizou a gratuitidade das creches, 100 mil previstas para 2024, “uma medida transformadora” em prol da “igualdade” entre crianças, mas também entre homens e mulheres e jovens que assim terão os custos reduzidos. Garantiu que “este é um orçamento de concretização dos acordos e compromissos assinados e com respostas concretas num momento em que a incerteza reina”. E, enfatizando que o Executivo quer um “crescimento inclusivo”, a ministra afirmou que o OE2023 assegura mais apoios sociais, além da manutenção do poder de compra por parte dos pensionistas: “Ao contrário do que se passou em 2015, hoje podemos afirmar que as pensões não têm qualquer corte.” Obviamente, não iria dizer outra coisa!

Por fim, encerrou a sua intervenção, vincando que o governo continuará com os portugueses na linha da estabilidade e da confiança, do compromisso e da solidariedade.

É óbvio que o OE2023 é marcado pela insuficiência frente aos desafios. A perspetiva das “contas certas”, justificada pela necessidade de redução da dívida e do défice, leva a que os pensionistas não tenham o poder que compra que almejam, bem como os funcionários da administração pública. No entanto, o Governo entende que há folga orçamental para reforço dessas rubricas.

Evidentemente, há que evitar que o país bata no fundo e tenha de se enveredar pelo corte de salários, de subsídios e de outros apoios. Falar de insuficiência e de que o Governo poderia ir um pouco mais longe é legítimo; falar de trapaça e fraude é injusto. Querer aplicar um programa como o de 2012 a 2015 é masoquismo; mas atribuir o crescimento do Chega à governação de Passos Coelho é descabido neste momento.

As crises são propícias aos populismos que funcionam como canto de sereia e favorecem a tomada de medidas radicais. Porém, os populismos, nomeadamente os do Chega, também resultam das falhas da democracia e da insuficiência de políticas públicas em áreas sensíveis. E isto não se combate com o défice democrático, com a suspensão da democracia ou com a ostracização dos populistas, mas com políticas pertinentes e sustentáveis que abranjam todos os setores de carência ou de depressão, nomeadamente a segurança pública, a educação, a saúde, a proteção social e a moralização dos órgãos e dos departamentos do Estado, bem como a assunção da ética por parte de todos os detentores de cargos públicos.

E, se o governo negoceia rendimentos com patrões e com sindicatos, porque não negoceia com os pensionistas? Por onde anda a APRe (associação de aposentados, pensionistas e reformados)?   

2022.10.27 – Louro de Carvalho


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A Península Ibérica deixará de ser uma “ilha energética”

O presidente francês, Emmanuel Macron, deixou cair os óbices ao gasoduto ibérico, que deverá transportar combustível do porto de Sines até à Europa central. Assim, Portugal, Espanha e França fecharam o acordo para construir gasoduto ibérico, o “corredor da energia verde” na Europa.

O acordo, anunciado na manhã do dia 20 de outubro pelo primeiro-ministro português, António Costa, e pelo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, permite estender o gasoduto que já liga Sines a Celorico da Beira. A partir daí serão construídos mais 86km, até à fronteira com Espanha, e o governo espanhol assegura a construção do segmento do gasoduto até Zamora e, depois, até Barcelona. É um “corredor verde”, porque se destina, sobretudo, a transportar hidrogénio verde, embora possa também garantir o fornecimento de gás natural.

Segundo a explicação patente no Portal do Governo, o acordo ultrapassa “um dos bloqueios mais antigos em torno do tema das interconexões da Península Ibérica com o conjunto da Europa”.

À entrada para o Conselho Europeu e após reunião com o presidente do Governo de Espanha, e com o presidente de França, António Costa, referiu: “Hoje chegámos a um acordo para ultrapassar definitivamente o antigo projeto, o chamado MidCat, e desenvolver um novo projeto, que designámos de Corredor de Energia Verde, que permitirá complementar as interconexões entre Portugal e Espanha, entre Celorico da Beira e Zamora, e também fazer uma ligação entre Espanha e o resto da Europa, ligando Barcelona e Marselha, por via marítima.” É um bom contributo dos três países para a Europa e para o espírito de solidariedade comum que todos necessitamos para enfrentar esta crise energética, enfim, “uma boa notícia”, em crise energética, como frisou.

O chefe do Governo referiu que falta ainda “acertar os pormenores, do ponto de vista técnico”, em termos de financiamento europeu, nomeadamente através do que a Comissão Europeia pode destinar às interconexões europeias e também para acertarmos com a Comissão “o financiamento desta nova ligação através da facilidade de interconexões europeias”.

António Costa disse que este gasoduto será “vocacionado para o hidrogénio verde” ou outros gases renováveis, ainda que, transitoriamente, seja utilizável para “o transporte de gás natural até uma certa proporção”, acrescentando que “serão reforçadas também as interconexões elétricas”.

Também informou que os três países se reunirão em Alicante, Espanha, a 9 de dezembro, antes da reunião que estava marcada para a Cimeira dos Países do Mediterrâneo e do Sul da UE, de modo que haja tempo para se acertarem, do ponto de vista técnico, pormenores sobre esta ligação. E enalteceu todo o trabalho diplomático, técnico e político feito ao longo do último ano, para se ter conseguido alcançar este acordo.

O Primeiro-Ministro destacou dois dados “absolutamente fundamentais” no acordo: “a alteração da conjuntura energética na Europa e a compreensão de que temos que diversificar as fontes e as rotas de fornecimento de energia à Europa”, bem como as oportunidades que havia em relação ao gás natural, já que existe “hoje a tecnologia que nos permite apostar no hidrogénio verde e noutros gases renováveis”, contribuindo “para o esforço conjunto que todos temos de fazer para acelerar a transição energética”; e esta solução, “em vez de insistir com as dificuldades ambientais dos Pirenéus, encontrou uma alternativa por via marítima e, das duas possíveis, foi encontrada a melhor, porque é aquela que permite ligar àquilo que é a coluna vertebral da rede de hidrogénio verde europeia”.

No atinente a Portugal, António Costa disse que a ligação de 162 km, entre Celorico da Beira e Vale do Prado, já estava prevista para o hidrogénio verde, não fazendo sentido lançar um projeto que não tenha esta vocação, aliás nem a Comissão Europeia o financiaria. Porém, o transporte de gás natural no gasoduto deverá ser proporcional para assegurar a segurança energética da Europa, “sem perder o foco que é: o de acelerarmos a transição energética para as energias verdes”.

António Costa aponta que o facto de o gasoduto chegar à fronteira com Espanha já é, para Portugal, uma enorme mais-valia, porque permite o aumento da “nossa capacidade de estarmos conectados com o mercado, onde não somos só os dez milhões”, mas “sessenta milhões, no conjunto da Península Ibérica”. E salienta que, paralelamente a este gasoduto, está a ser desenvolvido um projeto de armazenamento do conjunto de energia com Espanha, o que constitui um “grande desafio da transição energética”.

O acordo configura e desenvolve um projeto que ajuda a valorizar, na Península Ibérica, os seus recursos de lítio, para a construção de “baterias que possam ajudar a armazenar em grande escala de energia para responder a situações de crise como estas em que estamos a viver em que com a seca temos que, uns e outros, manter capacidade de produção de eletricidade hídrica”.

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O Partido Social Democrata (PSD), sobretudo pela voz de Paulo Rangel, mais contundente que Maria da Graça Carvalho, considera que o acordo prejudica o interesse nacional.

Em declarações à imprensa, a 22 de outubro, criticou o novo projeto, que pretende completar a interconexão entre Portugal e Espanha, entre Celorico da Beira e Zamora, avançando depois entre Barcelona e Marselha por via marítima: “Trocámos o valor das nossas renováveis e o potencial do porto de Sines por um prato de lentilhas.” E acrescentou: “Na eletricidade, ganhou a França e o nuclear. Perdeu Portugal e as renováveis. No gás, ganhou a Espanha e o porto de Barcelona. Perdeu Portugal e o porto de Sines.” E observou que a queda “dos compromissos internacionais firmes e calendarizados desde 2014” secundariza o terminal de Sines e perde duas interligações elétricas, “mais importantes” para o país. Referia-se à interligação pelos Pirenéus que cessa.

“Fica assim em causa o objetivo nacional, tantas vezes repetido pelo governo de Costa, de fazer do Porto de Sines a ‘porta de entrada’ do GNL [gás natural liquefeito] na Europa”, disse Rangel.

O PSD exige, ainda, “uma divulgação detalhada dos termos do acordo e uma avaliação técnica e independente das suas consequências”. “Há perguntas essenciais por responder: Quanto vai custar este projeto a Portugal, quando o anterior tinha todo o financiamento previsto e garantido? Quanto vai custar? Quem vai pagar? Não vai ele aumentar a fatura da energia dos portugueses? Quanto tempo vai demorar?”

“Para lá questão das condições de produção, para integrar Portugal no ‘Corredor de Energia Verde’ não basta a ligação Celorico da Beira-Zamora, aliás reprovada no teste ambiental; é preciso adaptar toda a rede”, afirmou. E “nada se sabe sobre isto”, rematou.

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Entretanto, enquanto António Costa acusava o PSD de não perceber nada do que está em causa e repetia as explicações pró-acordo, Pedro Sampaio Nunes, antigo diretor da Comissão Europeia das Energias Convencionais, referia que o plano do gasoduto ibérico, ora aprovado, será “diferente tecnicamente” do que era o projeto inicial, mas que, “politicamente, é um excelente negócio”, enfim, “uma vitória para todos”.

À Rádio Renascença, o especialista explicava que, ao invés do que era planeado, o gasoduto não passa pelos Pirenéus – trajeto que tinha “dificuldades de natureza ambiental” –, mas passará num tubo subaquático que ligará Barcelona a Marselha, “um tubo que vai levar moléculas de energia de um sítio para o outro, seja butano, seja hidrogénio”.

Sampaio Nunes diz que, face à ideia original, só se sabe o que Portugal fica a ganhar com esta alteração, dependendo do custo-benefício: “Se se provar que possamos ser competitivos na produção de hidrogénio verde, podemos vir a exportar. É uma questão da distância contra o custo mais barato da eletricidade para produzir hidrogénio.”

Considera que, em princípio, “um projeto submarino é sempre um projeto que é caro, dependendo da profundidade”, porém, “se a profundidade não for muito grande, pode ser mais barato estar a abrir canais em mar do que em terra”, o que só os estudos apurarão. Todavia, relembra que Portugal já está ligado “através de um trajeto, que não é direto”, à rede espanhola e não será por aí que o orçamento derrapa.

Por sua vez, o Professor Vital Moreira observa, no blogue “Causa nossa”, que a resposta à crise energética, advinda da guerra na Ucrânia, “pode revestir uma tripla vertente: (i) apressar a transição energética no que respeita às energias renováveis; (ii) estimular a integração física das redes energéticas dentro da União (rede elétrica e rede de gás); (iii) apressar a instituição de uma política energética integrada.” Por isso, entende que o contexto induz a devida valorização do acordo tripartido para a instalação do cabo elétrico submarino no golfo da Biscaia e do gasoduto entre Barcelona (na Península Ibérica) e Marselha (na França), secundado pela interligação entre a rede portuguesa e a espanhola (gasoduto Celorico da Beira-Zamora), pois “os projetos agora acordados vêm substituir o antigo projeto de interligação entre os Pirenéus, sempre vetado por Paris”. É um “ganho líquido, quer ara os dois países, quer para a União” (Europeia).

Assim, para Vital Moreira, a Península Ibérica deixará de ser a “ilha energética” que tem sido, podendo reexportar para o centro da Europa tanto o gás natural que hoje importa em condições mais favoráveis como o hidrogénio que a abundante disponibilidade de energia solar lhe poderá permitir produzir. Portanto, segundo o Professor, não vale a crítica pela qual o acordo é menos vantajoso do que o anterior projeto, pois “a travessia dos Pirenéus não estava na equação, por oposição francesa”. Comparáveis são as interligações ora acordadas e a situação atual.

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Na verdade, era dispensável tanto ruído em torno do acordo. Bastaria exigir a enunciação clara dos seus termos em concreto, a resposta a eventuais dúvidas e se se aproxima convenientemente dos objetivos do Pacto Energético Europeu, previsto já há uns anos e apurado no passado dia 21.

Creio que as explicações de Sampaio Nunes e de Vital Moreira serão suficientes. Resta que o acordo se concretize.

2022.10.26 – Louro de Carvalho 

Avião da Frontex patrulha, surpreendentemente, mar dos Açores

 

Sobrevoa o mar dos Açores, a pedido da Guarda Nacional Republicana (GNR), o Beechcraft C-12 da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex), facto não pacífico a surpreender a Marinha e Força Aérea que vigiam a área, estando em causa a soberania nacional.

A GNR não explica porquê ou que ameaças prevê para outubro e novembro, período para o qual pediu à Frontex a aeronave para patrulhamento do mar dos Açores, terminando a sua competência nas 12 milhas. Porém, um Beechcraft C-12 opera desde 16 de outubro e o facto gerou mal-estar nas Forças Armadas (FA), pois a Marinha e Força Aérea têm meios de vigilância para lá das 12 milhas e não receberam qualquer pedido de apoio da GNR.

Interpelada sobre a formulação deste inédito pedido, a GNR assinala que visa garantir a vigilância da fronteira externa da União Europeia (UE), designadamente da Região Autónoma dos Açores, “atendendo às competências que cabem à Unidade de Controlo Costeiro (UCC) da GNR, vertidas na Lei Orgânica da Guarda”. A este respeito, fonte oficial do comando-geral lembra que “a UCC é a unidade especializada responsável pelo cumprimento da missão da Guarda em toda a extensão da costa e no mar territorial, com competências específicas de vigilância, patrulhamento e interceção terrestre ou marítima em toda a costa e mar territorial do continente e das Regiões Autónomas” (vd artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 63/2007, de 6 de novembro). E refere que este patrulhamento decorre entre outubro e novembro, sendo financeiramente suportado pela Frontex, no âmbito do EUROSUR (Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras) Fusion Services, potenciando a vigilância das fronteiras externas da UE e aumentando a probabilidade de deteção antecipada de ocorrências de criminalidade transfronteiriça.

A responsabilidade de patrulhamento e de operações na maior extensão do mar das regiões autónomas é da Marinha e da Força Aérea, pois a jurisdição da GNR termina nas 12 milhas. Porém, a Força Aérea não recebeu qualquer pedido da GNR para a missão em causa, salientando que, “de acordo com a lei e no âmbito das capacidades de vigilância e patrulhamento marítimo e terrestre”, executa missões para “assegurar, no espaço estratégico de interesse nacional, a vigilância e o controlo das fronteiras marítimas, das atividades de contrabando aduaneiro, de tráfico de estupefacientes e de imigração ilegal, entre outras” e que, nesse âmbito “só no ano de 2022, já realizou 150 missões, totalizando 780 horas de voo, empenhando aeronaves C-295M e P-3C CUP+”. Também a Marinha refere não ter recebido pedido de colaboração da GNR para patrulhamento marítimo e não tem qualquer articulação com aquela força militar no processo.

Estranho força militar de Defesa e força militar de Segurança não terem qualquer articulação!

Na ilha de S. Miguel, em cuja capital, Ponta Delgada, o avião está estacionado, Paulo Botelho Moniz, deputado do PSD eleito pelos Açores, disse que lhe chegaram “mensagens de toda a ilha relatando alguma apreensão com os voos junto à costa”. E, para o deputado, o episódio revela a total incapacidade do Estado em prover, por meios próprios, ao exercício da nossa soberania.

O deputado lembra que os Açores são a única zona do país sem o Sistema de Vigilância de Costa da GNR (SIVICC), “mesmo após os estudos efetuados e os milhões de euros em fundos comunitários disponíveis”, o que representa “a sublimação de um governo incapaz e que ainda não conseguiu implementar e colocar ao serviço este sistema essencial à segurança do país, das populações dos Açores e à defesa e proteção das fronteiras mais externas da Europa”. E conclui que esta situação “é um sinal da falência em matérias de Segurança e Defesa de um governo, que não se articula, o Ministério da Administração Interna que tutela a GNR de costas voltadas com o ministério da Defesa Nacional, assumindo e passando uma imagem de debilidade de meios, fraqueza e incapacidade operacional própria, exposta perante os parceiros europeus”.

Assertivo na crítica é o Almirante Melo Gomes, ex-Chefe de Estado-Maior da Armada: “As fronteiras externas da UE nos Açores, são, em primeiro lugar, as nossas. Como tal, da nossa responsabilidade soberana. O princípio da subsidiariedade deve ser a regra e a Frontex não se deve sobrepor à ação prioritária dos Estados. Adicionalmente, parece-me que não caberá à UCC formular pedidos de apoio externo em questões que se prendem com a soberania de Portugal.” E, observando que “são afetos à UCC recursos que muita falta fazem à Marinha, que tem vindo a sofrer reduções inaceitáveis nas verbas de operação e manutenção”, diz que a situação é “mais uma entropia à gestão adequada do nosso mar!”

Outros oficiais da Força Aérea e da Armada na reserva, escudados no anonimato, consideram: “A Frontex não deve vigiar os nossos espaços marítimos, pois isso é reconhecer que temos incapacidades, o que, em último caso, fragiliza a nossa soberania.” Ora, tal reconhecimento terá consequências graves em diversos processos em curso, como o pedido da extensão da plataforma continental, pois estamos a priori a admitir não termos capacidade de a proteger.

Outro refere que a entrega da vigilância à UE faz de nós um Estado dependente e significa “um cavalo de Troia cá dentro”, o que “é fortemente lesivo para os interesses nacionais”.

A relação da GNR, comandada por um general do Exército, Rui Clero, com a Marinha, agora liderada pelo Almirante Gouveia e Melo, tem um histórico conflituoso e de descoordenação entre Segurança e Defesa. Ainda há dois anos, a aquisição da megalancha “Bojador” pela GNR deixou a Marinha em estado de sítio e o ministro da Defesa a ter de marcar posição.

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A Frontex (“Fronteiras externas”), é a agência da UE sediada em Varsóvia, na Polónia, encarregue do controlo das fronteiras externas do Espaço Schengen (ES) e da repatriação de imigrantes irregulares para os países de origem, em coordenação com as similares dos Estados-membros (EM). Criada, em 2004, como Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas, é a principal responsável pela coordenação dos esforços de controlo das fronteiras do ES. Em resposta à crise migratória de 2015-2016, a Comissão Europeia propôs, a 15 de dezembro de 2015, a prorrogação do mandato da Frontex, transformando-a numa Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira de pleno direito. A 18 de dezembro, o Conselho Europeu apoiou a proposta e, após votação do Parlamento Europeu (PE), foi lançada oficialmente a Guarda Europeia de Fronteiras e Costeira a 6 de outubro de 2016, na fronteira da Bulgária com a Turquia. Para o cumprimento das tarefas, o orçamento aumentou dos 143 milhões de euros, em 2015, para 543 milhões de euros, em 2021, e os funcionários serão 10.000 até 2027.

Segundo a Comissão Europeia, esta reúne uma Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira construída a partir da Frontex e das autoridades dos EM responsáveis pela gestão das fronteiras, sendo a gestão quotidiana das regiões das fronteiras externas da responsabilidade dos EM. Pretende-se que a agência apoie os Estados que necessitem de assistência e coordene a gestão geral das fronteiras externas da Europa. A segurança e o patrulhamento das fronteiras externas da UE, na prática, o Espaço Schengen, incluindo os Países Associados de Schengen, bem como os Estados da UE que ainda não aderiram ao ES, mas estão obrigados a fazê-lo, é responsabilidade partilhada pela agência e pelas autoridades nacionais.

A agência coordena a cooperação operacional entre os EM na gestão das fronteiras externas, apoia-os no treino dos guardas nacionais de fronteiras, incluindo a definição de normas de treino comuns, realiza análises de risco, acompanha a evolução da investigação relevante no controlo e vigilância das fronteiras externas, apoia os EM em circunstâncias que exijam assistência operacional e técnica reforçada nas fronteiras externas e faculta-lhes o apoio necessário na organização de operações conjuntas de repatriação de imigrantes.

Tem ligação com outros parceiros comunitários responsáveis pela segurança das fronteiras externas e pela cooperação no domínio aduaneiro e dos controlos fitossanitários e veterinários.

O pessoal do seu Corpo Europeu Permanente foi duplicado entre 2015 e 2020. E prevê-se uma reserva de guardas europeus de fronteira e de equipamento técnico. A agência pode adquirir os seus veículos. Os EM onde o equipamento esteja registado (equipamento de maior dimensão, como navios patrulha, aeronaves, etc.) são obrigados a colocá-lo à disposição da agência sempre que necessário. Tal permitirá à agência implementá-lo rapidamente nas operações fronteiriças. São disponibilizadas à agência, para eliminar a escassez de pessoal e de equipamento para as operações, uma reserva de guardas de fronteira e de equipamento técnico.

Lançado em 2021, o Corpo Permanente da Frontex é o primeiro serviço uniformizado da UE. Está previsto, em 2027, o Corpo alcançar os 10.000 guardas (da agência e dos EM), que apoiam e trabalham sob o comando das autoridades nacionais do país em que operam.

As suas tarefas são: controlo da fronteira e patrulhamento, verificação da identidade e dos documentos e registo dos imigrantes.

O centro de monitorização e de análise de risco efetua análises de risco e monitoriza os fluxos para e dentro da UE. Tal análise inclui a criminalidade transfronteiriça e o terrorismo, o tratamento dos dados pessoais de pessoas suspeitas de envolvimento em atos de terrorismo e a cooperação com outras agências da UE e com organizações internacionais na prevenção do terrorismo. É estabelecida a avaliação obrigatória da vulnerabilidade das capacidades dos EM para enfrentar os desafios atuais ou futuros nas fronteiras externas. A Agência pode lançar operações conjuntas, incluindo a utilização de drones, quando necessário. E divulga regularmente relatórios de eventos conexos com o controlo das fronteiras, os atravessamentos ilegais e as diferentes formas de crime transfronteiriço. A tarefa geral de avaliar os riscos foi definida no regulamento da Frontex, segundo o qual esta realiza análises de risco para fornecer à Comunidade e aos EM informações que permitam adotar medidas apropriadas para assumir ou fazer face a ameaças e a riscos identificados, melhorando a gestão integrada das fronteiras externas, sem se criar conflito entre as forças de vigilância e de segurança nacionais.

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Face à indefinição, na Lei e no estatuto da Frontex, sobre quando a Frontex deve intervir por eventuais insuficiências nossas, as decisões devem ser concertadas entre o ministério da Defesa e o da Administração Interna e dadas as explicações, sem drama, ao Parlamento. Não se trata de “não caso”, como alega o Governo, mas de exercício do poder soberano e de respeito institucional.

2022.10.25 – Louro de Carvalho