domingo, 30 de outubro de 2022

Dois pecadores que saltam fora do paradigma do pecador

 

O Evangelista Lucas não desiste de nos apresentar em Jesus um Deus que ama todos os seus filhos sem excluir ninguém, mesmo que os pecadores, os marginais, os ditos “impuros”, mostrando como o amor transforma e revivifica. Jesus é o rosto misericordioso de Deus!

No 30.º domingo no Tempo Comum no Ano C, o Evangelho (Lc 18,9-14) pôs-nos em confronto a atitude do fariseu e a do publicano quando foram ao Templo rezar.

Os fariseus formavam um dos grupos com mais impacto na sociedade Palestina do tempo de Jesus. Descendentes dos “piedosos” (“hassidim”) que apoiaram o heroico Matatias na luta contra Antíoco IV Epífanes e a helenização forçada, eram os defensores intransigentes da Torah (escrita e oral: a oral consistia nos preceitos que os fariseus tinham deduzido da Torah escrita), que procuravam cumprir escrupulosamente e se esforçavam por ensinar ao Povo, pois só assim – pensavam eles – o Povo chegaria a ser santo e o Messias poderia vir trazer a salvação a Israel.

No entanto, o seu fundamentalismo em relação à Torah (Lei) será criticado por Jesus, visto que, ao afirmarem a superioridade da Lei, desprezavam o homem e criavam no Povo um sentimento latente de pecado e de indignidade que oprimia as consciências.

Os publicanos eram os cobradores dos impostos ao serviço das forças romanas de ocupação. Tinham fama – e proveito – de utilizarem o cargo para enriquecimento imoral. De acordo com a Mishna (Torah oral), estavam afetados permanentemente de impureza e nem sequer podiam fazer penitência, por serem incapazes de conhecer todos os que tinham defraudado e a quem deviam reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, fazia parte de uma comunidade farisaica, era imediatamente expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar tal cargo. Quem exercia tal ofício, estava privado de certos direitos cívicos, políticos e religiosos, não podendo, por exemplo, ser juiz nem prestar testemunho em tribunal: equiparado ao escravo.

Neste fariseu e neste publicano, confrontam-se dois tipos de atitude face a Deus.

O fariseu, consciente de que ninguém o pode acusar de ações injustas, nem contra Deus, nem contra os irmãos (e a parábola não diz que ele mentisse), está satisfeito (tinha razões para isso) por não ser como o publicano que também estava no Templo e dá graças a Deus por isso.

O publicano, paradigma do pecador, que explora os pobres, pratica injustiças, trafica com a miséria e não cumpre a Lei, tem consciência da sua indignidade, pois a sua oração consiste em pedir: “Meu Deus, tem compaixão de mim que sou pecador”.

Jesus garante que o publicano se reconciliou com Deus (“desceu justificado para sua casa” – o que leva à doutrina paulina da justificação: apesar de o homem viver mergulhado no pecado, Deus, na sua infinita misericórdia e sem que o homem tenha méritos, salva-o). Na verdade, como diz Jesus Ben Sirah (vd Sir 35,15b-17.20-22a), Deus escuta sempre as preces dos débeis e está atento aos gritos de revolta das vítimas da injustiça. Assim, os humildes que sofrem a opressão e a prepotência dos poderosos são convidados a apresentar a Deus as suas queixas, até que Ele restabeleça o direito e a justiça. E o publicano, que se sentia injuriado e marginalizado pelo ofício que desempenhava, sai da sua condição, mercê da ação de Deus, a que juntou a sua oração humilde.  

O problema do fariseu é pensar obter a salvação com o seu próprio esforço, em vez de a considerar um dom de Deus. Está convicto de que Deus lhe deve a salvação por bom comportamento, como se Deus fosse apenas o contabilista-notário que toma nota das ações do homem e lhe paga.

Cheio de autossuficiência, nada espera de Deus, pois, como julga, os seus créditos bastam para se salvar, e vota ao desprezo os que não são como ele, acusando-os mesmo a rezar. Considerando-se à parte, em nome de Deus, cria segregação e exclusão: é a religião dos méritos. Já o publicano apoia-se só em Deus e não nos seus méritos (que não tem). Apresentando-se de mãos vazias e sem pretensões, entrega-se nas mãos de Deus e pede compaixão. E Deus justifica-o, derrama sobre ele a sua graça e salva-o, porque ele não tem o coração cheio de autossuficiência e está disposto a aceitar a salvação que Deus quer oferecer a todos os homens.

A parábola, destinada a “alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”, sugere que esses que se presumem de justos estão, às vezes, muito longe de Deus e da salvação.

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Por sua vez, o Evangelho do 31.º domingo no Tempo Comum (Lc 19,1-10), fala-nos de outro publicano, aliás mais do que publicano – chefe de publicanos, que surge com um nome: Zaqueu.  

O episódio remete-nos para Jericó, um oásis nas margens do mar Morto, a cerca de 34 quilómetros de Jerusalém. Era a última etapa dos peregrinos que rumavam, da Pereia e da Galileia, a Jerusalém para as grandes festividades, mostrando que o “caminho de Jerusalém”, que temos vindo a percorrer pela mão de Lucas, está a chegar ao fim.

Jericó era uma cidade próspera, sobretudo devido à produção de bálsamo, dotada de grandes e belos jardins e palácios (por ação de Herodes, o Grande, que fez dela a sua residência de inverno) e, situada num lugar privilegiado de importante rota comercial, era lugar de belas oportunidades para grandes negócios e também para negócios duvidosos.

Zaqueu, chefe de publicanos, era um homem abastado que o judaísmo oficial considerava pecador público, explorador dos pobres, colaboracionista ao serviço dos opressores romanos e, portanto, um excluído da comunidade da salvação. Usava o cargo para enriquecer de forma imoral (exigindo impostos muito acima do que era fixado pelos romanos e guardando para si a diferença – prática recorrente entre os publicanos). Como pecador público era homem sem hipótese de perdão, pelo que estava proscrito do convívio com as pessoas decentes. Considerado amaldiçoado por Deus, era desprezado pelos homens. A referência à sua “pequena estatura” – mais do que indicação de carácter físico – pode significar pequenez e insignificância, do ponto de vista moral.

Não obstante, este homem procurava “ver” Jesus. O “ver” implica a mobilização da curiosidade pessoal, mas também a procura intensa, a vontade firme de encontro com algo novo, a ânsia de descobrir o Reino de Deus, de que talvez tenha ouvido falar de modo confuso, enfim, o desejo de integrar a comunidade de salvação que Jesus anunciava. Porém, o “mestre” parecia-lhe inacessível, rodeado dos “puros” que desprezavam os marginais. Por isso, ousou subir a um sicómoro, o que revela a intensidade do desejo de encontro com Jesus, que é muito mais forte do que o medo do ridículo ou dos apupos da multidão, naturais por se tratar da pessoa que ele era.

E a surpresa de Deus acontece. Jesus provoca o encontro e mostra a Zaqueu que está interessado em entrar em comunhão com Ele, em estabelecer com Ele laços de familiaridade (“quando Jesus chegou ao local, olhou para cima e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce depressa, que Eu hoje devo ficar em tua casa’.”). Jesus, rodeado pelos “puros” que escutam atentamente a sua Palavra, deixa a todos parados na rua para estabelecer contacto com o marginal e para entrar na sua casa. É um dos casos de exemplificação de “deixar as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que estava perdida” (vd Lc 15,4-7). Torna-se patente a fragilidade do coração de Deus que, face ao pecador que busca a salvação, deixa tudo para ir ao seu encontro.

Perante esta estranha atitude de Jesus, a multidão que O rodeia reage manifestando a sua natural desaprovação (“ao verem isto, todos murmuravam, dizendo: ‘foi hospedar-se em casa de um pecador’.”). Consideravam-se “justos” e desprezavam os outros. Estavam instalados nas certezas, sobretudo na de que a lógica de Deus é a lógica de castigo, de marginalização, de exclusão.

Ao invés, Jesus demonstra-lhes que a lógica de Deus é diferente da lógica dos homens e que a oferta de salvação que Deus faz não exclui nem marginaliza ninguém.

E o episódio termina num banquete – onde está Zaqueu, o chefe dos publicanos – que simboliza o “banquete do Reino”. Sentando-Se à mesa com Zaqueu, Jesus mostra que os pecadores têm lugar no seu Reino, pois Deus ama-os, aceita sentar-Se à mesa com eles, pois quer integrá-los na sua família e estabelecer com eles laços de comunhão e de amor.

Não podemos esquecer que Zaqueu, à ordem de Jesus, desceu do sicómoro, cheio de alegria, porque o Senhor lhe disse que tinha de ficar em sua casa.

Esta situação faz-me lembrar o caso da senhora de etnia cigana que foi à escola reclamar com a professora por, alegadamente, ter sido dura para com o filho. Porém, quando a professora lhe perguntou como é que estava “o seu menino”, a pretensa reclamante caiu em si comovida porque a professora tratava o seu filho por “o menino”. Sentiu que o filho não era discriminado.  

Ora, Zaqueu reagiu a essa fabulosa oferta de salvação que Deus lhe faz, acolhendo o dom de Deus e convertendo-se ao amor. A repartição dos bens pelos pobres e a restituição de tudo o que foi roubado em quádruplo, vai muito além do que exigia a Lei (cf Ex 22,3.6; Lv 5,21-24; Nm 5,6-7) e releva a transformação do coração de Zaqueu. Porém, este só decidiu pela generosidade após o encontro com Jesus e a experiência do amor de Deus. O amor de Deus não se derramou sobre Zaqueu só depois de ele ter mudado de vida, mas foi o amor de Deus – que Zaqueu experimentou ainda pecador – que provocou a conversão e que converteu o egoísmo em generosidade.

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Enfim, estamos ante dois pecadores que saltam fora do estatuto do pecador empedernido. Neste aspeto, são exemplares.

2022.10.30 – Louro de Carvalho

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