domingo, 23 de outubro de 2022

Face à previsão de fim do mundo amanhã, hoje plantaria macieiras

 

É óbvio que a ideia não é interpretável literalmente, mas vinca uma personalidade que não se verga ao peso das circunstâncias, por mais derrotistas que se lhe afigurem.

Aquando da passagem do centenário do nascimento de Adriano Moreira, também fiz a minha crónica, que não vou repetir. No entanto, no momento da morte do secular advogado, académico e político, a quem todos (ou quase) vêm a terreiro a tecer as mais sinceras ou as mais redundantes loas, não devo ficar em silêncio. Não digo que tenha sido figura de vulto tanto no regime do Estado Novo como no regime democrático, mas é justo afirmar que sempre labutou pelas causas em que acreditava, nunca desistindo, mesmo quando as políticas e as instituições pareciam bater no fundo. Conseguia manter-se à tona, de ânimo firme e sem stresse, segurando-se nas ideias próprias e admitindo, com a tolerância e a paciência do crente, as ideias com que não concordava, porque a sabedoria e a inteligência não são monopólio de ninguém.

Dos quase 80 anos de intervenção pública, ressaltam alguns factos.

No longo tempo do Estado Novo, integrou um dos movimentos oposicionistas com o objetivo de conseguir “eleições livres”, o impossível dentro do regime. Defendeu, em tribunal, a causa da família de um general que entrou em discordância com o ministro da Defesa, pelo que foi preso por falta de respeito à dignidade do Estado, tendo-se encontrado na prisão com Mário Soares, o que os tornou amigos. Não obstante, serviu como ministro do Ultramar, tomando medidas seguidistas do regime, designadamente as atinentes à concretização ideário do lusotropicalismo e à criação do campo de trabalho do Tarrafal. Porém, quando descobriu a urgência do ímpeto reformista, inverteu o sentido de algumas medidas e acabou por promover a abolição do Indigenato, que vigorou cerca de uma década e que retirava da alçada da cidadania os naturais de Angola, de Moçambique e da Guiné. Obviamente, entrou em colisão com Oliveira Salazar, saiu da cena política sem escândalo e enveredou pela carreira e intervenção académicas. E, em certa medida, fazia parceria, como dantes, com as ideias de D. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira, aquele que pretendia que o Concílio Vaticano II declarasse solenemente que todos os homens são irmãos (“todo o homem é meu irmão), o que veio a acontecer com o Papa Francisco, pela encíclica Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), redigida já depois da assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz e Coexistência Mundial (4 fevereiro de 2019).     

No regime democrático, distinguiu-se como líder do Partido do Centro Democrático Social (CDS), em dois breves momentos, quando o partido não estava nos seus melhores momentos, e como deputado centrista, ouvido com respeito pelas diversas bancadas parlamentares. Foi muito apreciado como professor e dirigente académico e como formador de centenas de civis e militares, brilhante em ciência política e em ciências jurídicas. E Chegou a ser conselheiro de Estado.

***

Adriano José Alves Moreira nasceu a 6 de setembro de 1922, em Grijó, concelho de Macedo de Cavaleiros. Ainda criança, foi para Lisboa, onde a família se instalou, em Campolide. Porém, as férias continuaram a ser na aldeia, com o avô. O pai, polícia, motivou dois filhos para cursos superiores: Adriano entrou na faculdade com 16 anos e cursou Direito, a irmã, Medicina.

O recém-licenciado só ganhou verdadeira consciência política quando enveredou pela carreira universitária, depois de ter sido advogado da Standard Electric, onde começou a trabalhar a seguir ao estágio e onde chegaria ao conselho de administração.

Chamava as suas “quedas no mundo” aos acontecimentos que lhe aumentaram o interesse pela política. O primeiro foi quando, depois de ter sido convidado para ser professor na Escola Superior Colonial (antecessora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), percorreu todas as colónias portuguesas em África, devido ao pedido Sarmento Rodrigues, ministro do Ultramar, para que estudasse o programa das prisões. Escreveu um livro que foi a sua tese de doutoramento, O Problema Prisional do Ultramar, que esteve na reforma do regime prisional levada a cabo por aquele ministro. Chamava “queda” ao facto, segundo explicava, porque conhecia o Direito, era o que ensinava, mas vi que não era o Direito que estava em vigor”.

Outra “queda” está relacionada com o problema da entrada de Portugal nas Nações Unidas, que o levou a integrar um grupo de juristas que participou na delegação que foi a Nova Iorque defender a posição portuguesa face à pressão descolonizadora. Foi aí que teve, pela primeira vez, ocasião de ouvir representantes de povos colonizados a falar dos seus valores. Tornou-se diretor do Centro de Estudos do Ultramar, participou em missões de investigação, situando aí o início da defesa do fim do estatuto do indigenato, que levaria a cabo quando chega a ministro do Ultramar, em 1961, chamado por Salazar, que lera os seus relatórios e lhe perguntou se queria concretizar as reformas que defendia. Em síntese, pretendia “restabelecer a justiça social […], acreditar a autenticidade de procedimentos do Governo português e chamar a uma coo­peração renovada as populações”. Queria criar universidades em Angola e Moçambique e promover uma classe média local preparada para a independência. Ficou só dois anos como ministro, pois Salazar, que tinha prometido apoiar as reformas, chamou-o e disse-lhe que é preciso mudar de política.

Seguiram-se anos e anos de universidade, “sem atividade política”. A Escola Superior Colonial passara a Instituto Superior de Estudos Ultramarinos e, depois, a Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas (ISCSPU), integrado na Universidade Técnica de Lisboa, que será a sua casa académica. É seu o novo nome que terá depois do 25 de Abril: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o ISCSP. A universidade, para si, era “vocação”. Todavia, como nota Ma­nuel de Lucena no livro Os Lugar-Tenentes de Salazar, “sob Marcello Caetano, a marginalização política de Adriano Moreira acentuou-se, transbordando da esfera política para a universitária quando, em 1969, o ministro da Educação o demitiu de diretor do ISCSPU”.

Com a revolução abrilina, foi saneado. Estava no Brasil em serviço pela universidade quando o Pinheiro de Azevedo, que fora seu aluno, o aconselhou a não voltar a Portugal. Por lá ficou, alguns anos, como professor catedrático na Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde fundou um Instituto de Relações Internacionais e Direito Comparado. Voltou em 1978. Foi Ramalho Eanes quem o reintegrou na universidade. No regresso, é desafiado para a política por Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Convidado para o CDS por Amaro da Costa, por Freitas do Amaral e por Narana Coissoró, que tinha sido seu assistente na faculdade, começou nova carreira política.

Segundo Manuel de Lucena, Adriano Moreira, “otimista precavido ou pessimista esperançado, tentou conciliar “idealismo e realismo, ação criadora, consciência crítica e uma extensa curiosidade intelectual” e marcou presença na política portuguesa em democracia.

Deixada a liderança partidária e o Parlamento, continuou a intervenção pública na universidade e na imprensa, sobretudo no Diário de Notícias, onde continuou a publicar artigos de opinião e análises ao país e ao mundo. O filho Nuno, já falecido seguira-lhe os passos no CDS, mas a filha Isabel escolheu intervir noutra família política bem diferente, o PS, mas dando sempre testemunho de como a diversidade e a liberdade de pensamento lhe foi incutida em casa.

Escreveu Eunice Lourenço, no Expresso online, a 23 de outubro, que Adriano Moreira, aos 98 anos, se despedia do filho, de 47, “mas, apesar de toda a dor, o seu ‘eixo da roda’ mantinha-o firme, permitindo-lhe continuar a rodar, a caminhar, a viver, a pensar o país e o mundo”, sendo que “o eixo acompanha a roda mas não anda”. E, para o sábio, “o eixo são os valores”, que são parâmetros axiais de vida, marcada pela ética e pela estética, enquanto belas qualidades humanas.

Ficou-me na retina da memória a resposta a pergunta que um entrevistador de TV lhe fez sobre o futuro, que marca bem a esperança de que era portador o entrevistado: “Se me dissessem que o mundo acabaria amanhã, não tinha outro remédio que hoje ir plantar maceiras” (cito de cor).

Os líderes que lhe sucederam no CDS – Manuel Monteiro, Paulo Portas, José Ribeiro e Castro e, novamente, Paulo Portas, que o indicou para o Conselho de Estado, e Assunção Cristas, que lhe prestou homenagem no congresso de Lamego – sempre escutaram e invocaram o senador e a consciência de um partido que chegou, neste ano, ao seu pior momento, com a perda de lugar na Assembleia da República, situação pior do que no tempo em que era o partido do táxi.

Porém, escreveu ao congresso de junho passado lembrando: “O CDS foi o responsável português pela doutrina so­cial da Igreja. Nesta data, com o agravamento da crise na comunidade internacional, o que o Papa faz é repor a importância e respeito pela humanidade, objetivos que o nosso partido sempre assumiu. É por isso que o país não o pode dispensar. Acreditem sempre, não desistam.”

E, a meu ver, é o apelo à não desistência, lançado na rota da esperança, que está o principal legado do centenário político, professor e publicista, assumível por ativistas de todos os quadrantes políticos ou religiosos, com credo ou sem credo.

2022.10.23 – Louro de Carvalho

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