sábado, 30 de abril de 2022

Perspicácia de ver que é o Senhor e ousadia de O anunciar

 

Com exceção dos últimos dois versículos (24-25), o trecho evangélico tomado, na sua forma longa, para a Missa do 3.º domingo da Páscoa no Ano C é o último capítulo do Evangelho de João (Jo 21,1-23), que a versão da Bíblia apresentada pela CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) considera o epílogo e intitula de “A presença do Ressuscitado na vida e na missão da Igreja”, subsequente ao capítulo anterior em que a parte central (vv 19-29) recebe o título “Jesus e os discípulos: a comunidade dominical”, ou seja, a comunidade do Senhor, a que celebra o Dia do Senhor.

No trecho em referência para esta dominga, vemos Jesus que Se manifesta de novo aos discípulos junto ao mar de Tiberíades. O número de discípulos indicado é de sete, número da totalidade, o que, para os comentadores bíblicos, simboliza a totalidade da Igreja, cuja missão pastoral se vai apresentar e que fluirá sob a batuta de Pedro. E é de anotar, pelos nomes referidos, que se trata de discípulos emblemáticos na vida da comunidade dominical – que celebra não só o primeiro dia em que o Criador fez brilhar a luz e transformou a matéria caótica e informe, mas sobretudo o dia da Ressurreição do Senhor qual nova Criação. Os nomes referidos são os de: Simão Pedro, destemido e pronto para tudo, até para cortar a orelha a um servo do sumo sacerdote, e que negou o Mestre cujo olhar o fez chorar amargamente, mas sobre quem Jesus prometeu fundar a Igreja; Tomé, o convertido da falta de fé e das dúvidas desafiantes à prostração de quem reza “Meu Senhor e Meu Deus(“ho Kýrios mou kaì ho Theós mou”); os dois filhos de Zebedeu – João e Tiago – que pretendiam lugar de destaque no Reino, mas a quem Jesus selecionou para O acompanharem nos momentos mais nevrálgicos juntamente com Pedro, sendo que um dos dois era o discípulo que Jesus amava; Natanael, o israelita que disse na cara ao Mestre que de Nazaré não podia vir coisa boa, mas que foi admirado pela sua franqueza; e dois cujos nomes não são explicitados, o que dá a entender que há na Igreja muito trabalho de gente que ficará escondida no anonimato, mas cujo labor é importante, quiçá mais que o dos que estão expostos aos holofotes da ribalta.

É de apreciar a determinação de Pedro, que não manda, vai: “vou pescar(“hypágô halieúein”). Mas os outros, numa linha de sinodalidade, resolveram ir com ele. Entregues a si próprios, a faina de toda a noite não resultou. Foi então que Jesus, ao raiar da manhã, se postou na margem, mas os discípulos não sabiam que era Ele.

Disse-lhes Jesus: “Filhinhos (“Paidía”), não tendes algo para comer?” (“mê ti prosphágion ékhete;”). Responderam que não. E Ele mandou-lhes lançar a rede para estibordo, pois encontrariam. Fizeram como Ele mandou e já nem conseguiam atrair a rede mercê da enorme quantidade dos peixes. Há aqui a alusão ao segredo da eficácia da ação pastoral: é preciso ter em conta o apoio de Jesus e obedecer à sua palavra, para lá da determinação solidária. Por outro lado, não conseguir atrair a rede (“helkýsai” – o mesmo verbo que em Jo 12,32) parece evocar a dificuldade em deixar concretizar a promessa de Jesus de que, na sua morte e ressurreição, atrairia todos a si. É preciso qualificar a quantidade para que a quantidade bruta não obstaculize a missão.     

Aqui o discípulo, aquele que Jesus amava, disse a Pedro: “É o Senhor!(“Ho Kýrios estín”).

É de comparar esta perspicaz intervenção do discípulo amado com o que se passou quando Pedro e João, movidos pelo anúncio das mulheres de que Jesus ressuscitara, foram ao sepulcro e viram o vazio, mas todos os adereços que o tumulado deixara estavam em boa ordem. De Pedro temos o silêncio sem comentários; de João temos o comentário do narrador: “E viu e acreditou (“Kaì eîden kaì epísteusen”).     

Atribui o Bispo do Porto esta clarividência de João ao amor: quem ama acredita.

Os filósofos medievais apregoavam que, para amar, era necessário conhecer (non amat qui non cognoscit). Porém, Santo Agostinho considera que não se conhece quem não se ama. Conhecer exige esforço e o esforço do conhecimento resulta do amor. Assim, não sou capaz de saber se Deus nos ama porque nos conhece muito bem ou se nos conhece muito bem porque muito nos ama. Seja como for, a perspicácia de João em reconhecer o Senhor é fruto do amor atento, dos olhos abertos e do coração disponível.

Depois, porque João ama o Senhor, tem a ousadia de o dizer de imediato a quem ainda não O tinha reconhecido. É preciso dizer que é o Senhor que está presente nos nossos êxitos.    

Pedro, mais do que o entusiasmo por ver o Senhor, passou de imediato à ação: cingiu as vestes, pois estava nu, e lançou-se ao mar, indo ao encontro de Jesus, enquanto os outros foram no barco arrastando a rede dos peixes, pois não estavam longe da terra.

Jesus não se limita a orientar-lhes a pesca: alimenta-os.

Ao descerem para terra, viram um braseiro, com peixe em cima e pão. Disse-lhes Jesus que trouxessem dos peixes que tinham apanhado então. Pedro subiu e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes, mas a rede não se rompeu. E Jesus chamou-os para comerem. Porém, nenhum ousava perguntar-lhe quem era, pois sabiam que era o Senhor.

Jesus estava recordado, quer da ousada profissão de fé de Simão Pedro em Cesareia de Filipe, quer da sua tríplice negação perante o pessoal do sumo sacerdote. Em certa medida a cena da pesca milagrosa e a subsequente refeição, até pelo convite de Jesus – Ele convida-nos para o seu banquete – e pelo gesto que mostrou similar do que fez aquando da multiplicação dos pães e dos peixes e na instituição da Eucaristia, têm um sabor eucarístico.

Como à Eucaristia estão umbilicalmente associados o serviço e o amor, Pedro que estava apto pela fé e pela capacidade de agir e levar os outros a agir, precisava de passar no teste do amor. Era importante que passasse também à condição de “o discípulo, o que Jesus amava” (“ho mathtês, hòn êgápa ho Iêsoûs”).

Por isso, após terem comido, disse Jesus a Pedro: “Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Ele: “Apascenta os meus cordeiros”. Disse-lhe de novo Jesus: “Simão, filho de João, amas-me?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Jesus: “Pastoreia as minhas ovelhas”. Disse-lhe pela terceira vez: “Simão, filho de João, és meu amigo?”. Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter dito pela terceira vezÉs meu amigo?” e disse-lhe: “Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que sou teu amigo!”. Disse-lhe então Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas”. E acrescentou:

Amen, amen te digo: quando eras mais novo, a ti mesmo te vestias e andavas por onde querias; mas, quando envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não queres”. 

Disse isto, assinalou com que género de morte Pedro glorificaria Deus. E disse-lhe: “Segue-me(“Akoloúthei moi”).

Jesus recebe a confissão de amor da parte de Pedro, dá-lhe o encargo do pastoreio do rebanho e indica-lhe o género de morte que iria sofrer – tudo sob o imperativo do seguimento. E os factos posteriores bem mostram como Pedro, levado pelo amor, teve a clarividência de perceber a vontade do Senhor, obviamente com altos e baixos, mas atento às moções do Espírito Santo, às sugestões dos outros discípulos e ao sentir da Igreja nascente. E, com esta clarividência, estava operativa a audácia do anúncio do Ressuscitado: “Nós não podemos deixar de falar de tudo quanto vimos e ouvimos(At 4,20: “ou dynámetha gàr hêmeîs hà eídomen kaì êkoúsamen mê laleîn”).

Ao voltar-se, Pedro viu que o seguia o discípulo que Jesus amava, o que na ceia se reclinara sobre o seu peito e dissera: “Senhor, quem é o que te vai entregar?”. E Pedro disse a Jesus: “Senhor, e que será dele?”. Disse-lhe Jesus: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu venha, que te importa? Tu segue-me!”. 

Interpretando mal as palavras de Jesus, difundiu-se o dito de que tal discípulo não morreria. Com efeito, Jesus não lhe disse que ele não morreria, mas: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu venha, que te importa?”. Em todo o caso, mais que pensar na tendência para a emulação entre os obreiros do Reino, há que relevar a fidelidade apostólica de Pedro até à morte de cruz, à semelhança do Senhor, e na permanência do testemunho de João pela vida apostólica, pelo martírio e pelos seus livros: “Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e que as escreveu, e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro(Jo 21,24)      

2022.04.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de abril de 2022

A verdade, mais que um conceito é uma Pessoa

 

O caso evangélico

Quando Jesus disse a Pôncio Pilatos que veio ao mundo para dar testemunho da verdade e que todo aquele que é da verdade ouve a sua voz, Pilatos perguntou: “Que é a verdade?(cf Jo 19,37-38). Porém, Jesus não respondeu. E dizem os estudiosos que, sendo o próprio Jesus a verdade, o subtexto é, em latim: “Veritas est homo qui adest” – a verdade é o homem que está aqui.

Ora, como Pilatos não percebeu o alcance da asserção de Jesus de que o seu reino não é deste mundo (cf Jo 19,36), pelo que, julgando que era um reino do faz-de-conta, mandou ou autorizou que os soldados tecessem uma coroa de espinhos – não de louros ou de ouro –, Lhe dessem uma cadeira a servir de trono e uma cana a fazer de cetro. Nada mais humilhante! 

De facto, Jesus afirmou com todas as letras: “Eu sou o Caminho a Verdade e a Vida(Jo 14,6), como dissera: “conhecereis a verdade e ela vos libertará(Jo 8,32). Já o prólogo do Evangelho de João afirma de Jesus que “o Verbo era a luz verdadeira” e “nós contemplamos a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e verdade(Jo 1,9.14). É este Jesus que diz que O podem matar a Ele, “um homem que vos comuniquei a verdade que recebi de Deus(Jo 8,40). Aquando da oração sacerdotal em Quinta-feira Santa, pede ao pai que os (aos discípulos) consagre na verdade, “porque a verdade é a tua Palavra(Jo 17,17). E, numa das ocasiões em que prometeu o Espírito Santo, chamou-lhe espírito de verdade que os guiará para “a verdade completa(cf Jo 17,13).

Já Platão e outros filósofos juntavam em Deus a trilogia do belo, bom e verdadeiro como absolutos. E agora Cristo, Palavra do Pai – belo, bom e verdadeiro em sumo grau – junta em si para a libertação do homem a trilogia do “Caminho, Verdade e Vida”, verdade que recebe do Pai e para a qual o Espírito da Verdade nos guiará.

A Verdade, sendo tributo absoluto de Deus e do Seu Cristo, a Palavra do Pai, não deixa de ter conteúdos. Mas estes não podem distrair-nos do essencial: a Pessoa de Cristo.

Há quase dois mil anos, Cristo, a Verdade, foi levado a julgamento e condenado por quem se dedicava à mentira. Enfrentou seis julgamentos em menos de um dia, 3 dos quais eram religiosos, e 3 que eram legais. Poucas pessoas envolvidas no evento podiam responder à pergunta: “Que é a verdade?”. Depois de preso, foi levado a Anás, corrupto ex-sumo sacerdote dos judeus. Anás quebrou inúmeras leis judaicas no julgamento, incluindo a sua realização em sua casa, tentou induzir autoacusações contra o arguido e bater-lhe, quando não havia sido condenado por nada até então. A seguir, a Verdade foi levada ao sumo sacerdote, Caifás, genro de Anás. Ante Caifás e Sinédrio judaico, muitas testemunhas se prontificaram a testemunhar contra a Verdade, mas nada podia ser provado e nenhuma evidência de má conduta podia ser encontrada. Caifás quebrou pelo menos sete leis enquanto tentava condenar a Verdade: o julgamento foi realizado em segredo; foi realizado à noite; envolveu suborno; o arguido não teve ninguém a fazer a defesa a seu favor; a exigência de 2-3 testemunhas não pôde ser cumprida; usaram testemunho autoincriminatório contra o arguido; e Caifás condenou o arguido à pena de morte no mesmo dia. Todas essas ações eram proibidas pela lei judaica. Além disso, Caifás declarou a Verdade culpada porque Ela afirmou ser Deus na carne (vd Jo 1,14), o que era tido por blasfémia.

Ao amanhecer, o julgamento da Verdade ocorreu no Sinédrio judaico que declarou que a Verdade devia morrer. No entanto, o conselho judaico não tinha o poder legal de executar a pena de morte, por isso levaram a Verdade ao governador romano, Pôncio Pilatos, que fora nomeado por Tibério como o 5.º prefeito da Judeia e serviu nessa qualidade entre 26-36 dC. O procurador tinha poder de vida e morte e podia reverter sentenças capitais aprovadas pelo Sinédrio. Enquanto a Verdade estava ante Pilatos, mais mentiras foram proferidas. Os inimigos disseram: “Encontramos este homem a sublevar o povo, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, o Rei(Lc 23,2). Era  mentira porque a Verdade disse que todos deviam os impostos (cf Mt 22,21) e nunca falou de Si como um desafio para César. Depois, houve esclarecedor diálogo entre a Verdade e Pilatos:

Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: ‘És tu o rei dos judeus?’. Respondeu Jesus: ‘Vem de ti esta pergunta ou disseram-to outros a meu respeito?’. Replicou Pilatos: ‘Porventura, sou judeu? A tua gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste?’. Respondeu Jesus: ‘O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui’. Então, lhe disse Pilatos: ‘Logo, tu és rei?’. Respondeu Jesus: ‘Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.’. Perguntou-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’. Dito isto, voltou aos judeus e disse: ‘Eu não acho nele crime algum’.” (Jo 18,33-38).

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Que é a verdade?

A pergunta de Pilatos “Que é a verdade?” tem sido repercutida ao longo da história. Foi um desejo melancólico de saber o que mais ninguém lhe podia dizer, insulto cínico ou talvez resposta irritada e indiferente às palavras de Jesus. No mundo pós-moderno que nega que a verdade possa ser conhecida, a questão é mais importante do que nunca e postula uma resposta.

Ao definir a verdade, é útil primeiramente observar o que ela não é.

Não é simplesmente coisa que funcione (esta é a filosofia do pragmatismo – abordagem semelhante à de que o fim justifica os meios), pois, na realidade, a mentira pode até dar certo, mas contraria a verdade. Não é simplesmente o que é coerente ou compreensível, visto que um grupo de pessoas pode reunir-se e conspirar com base num conjunto de falsidades, onde todos concordam em contar a mesma história falsa, mas isso não torna verdade a sua apresentação. Não é o que faz as pessoas se sentirem bem, pois as más notícias podem ser verdadeiras. Não é o que a maioria diz ser verdade, pois 51% dum grupo pode chegar a conclusão errada. Não é o que é abrangente, já que uma longa e detalhada apresentação ainda pode resultar em falsa conclusão. 

A verdade não é definida pela intenção, uma vez que boas intenções podem estar erradas; não é como nós sabemos, mas o que sabemos; não é simplesmente o que se acredita, pois uma mentira acreditada é uma mentira; não é o que se provou publicamente, já que uma verdade pode ser conhecida em particular (por exemplo, a localização do tesouro enterrado). É incompatível com o erro, a ignorância, a distração, a confusão, a falácia e o “lapsus linguae” ou o “lapsus calami”.

A palavra grega para “verdade” é “Alêtheia”, que significa “des-esconder” ou “nada esconder”. Transmite a ideia de que a verdade está sempre disponível, aberta e acessível para todos a poderem ver, sem nada ficar escondido ou obscuro. A palavra hebraica para “verdade” é “emeth”, que se relaciona com “emunah” e significa firmeza, constância e duração, o que implica uma substância eterna e algo em que se pode contar.

Do ponto de vista filosófico, há três modos de definir a verdade: o que corresponde à realidade; a o que corresponde ao seu objeto; o simples facto dizer como realmente é.

A verdade corresponde à realidade ou “o que é”, pelo que é de natureza correspondente, ou seja, corresponde ao seu objeto e é conhecida pelo seu referente. Por exemplo, o professor diante da turma pode dizer: “A única saída desta sala é à direita”. Para a turma que está de frente para o professor, a porta de saída pode ser à sua esquerda, mas é verdade que, para o professor, é à direita.

A verdade coincide com o seu objeto. Pode ser verdade que uma pessoa pode necessitar de tantos miligramas dum determinado medicamento, mas outra pessoa pode necessitar de mais ou de menos para produzir o efeito desejado. Isso não é verdade relativa, mas apenas um exemplo de como a verdade deve coincidir com o seu objeto. Seria errado que um paciente pedisse ao médico que lhe desse uma quantidade inadequada dum medicamento ou dissesse que qualquer remédio serviria para a doença em questão.

E a verdade é simplesmente dizer como é; é a maneira como as coisas realmente são, e qualquer outro ponto de vista é errado. Um princípio fundamental da filosofia é ser capaz de discernir entre verdade e erro, ou como Tomás de Aquino observou: “É tarefa do filósofo fazer distinções”.

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As palavras de Tomás de Aquino não são muito populares hoje. Fazer distinções está fora de moda numa era pós-moderna do relativismo. Isto é especialmente observável em questões de fé e religião, onde cada sistema de crenças é para ter a mesma quantidade de igualdade quando se trata da verdade. Há, pois, filosofias e cosmovisões que desafiam o conceito de verdade, mas, quando cada uma é examinada criticamente, acaba por ter natureza autodestrutiva.

A filosofia do relativismo diz que toda verdade é relativa e que não existe tal coisa como verdade absoluta. Entretanto, há que perguntar se isso constitui a alegação de que “toda a verdade é relativa”, ou que há uma verdade relativa e uma verdade absoluta. Se for verdade relativa, não tem sentido, pois não sabemos quando e onde se aplica; se for verdade absoluta, então há verdade absoluta. Além disso, o relativista trai a sua posição ao afirmar que a posição do absolutista é errada, porque podem estar corretos também os que dizem que a verdade absoluta existe. Em essência, quando o relativista diz que “não há nenhuma verdade”, pede que não se acredite nele, e a melhor coisa a fazer é seguir o seu conselho. Os seguidores do ceticismo duvidam de toda a verdade. Assim, o cético é cético do ceticismo, já que duvida da sua própria afirmação sobre a verdade. Mas, se o cético não põe em dúvida o ceticismo, temos a certeza de pelo menos uma coisa: a verdade absoluta existe, o ceticismo, que ironicamente se torna verdade absoluta. O agnóstico diz que não se pode conhecer a verdade. No entanto, a mentalidade é autodestrutiva porque afirma conhecer pelo menos uma verdade: que a verdade não pode ser conhecida. Os pós-modernistas simplesmente não afirmam nenhuma verdade em particular. Frederick Nietzsche descreveu a verdade assim:

Que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos ... verdades são ilusões ... moedas que perderam as suas fotos e agora importam apenas como metal, não mais como moedas.”.

Ironicamente, embora tenha moedas que são agora mero metal, o pós-modernista afirma pelo menos uma verdade absoluta: a verdade de que nenhuma verdade deve ser afirmada. Como as outras cosmovisões, o pós-modernismo é autodestrutivo e não resiste à sua própria afirmação.

Uma popular cosmovisão é o pluralismo, para o qual todas as asserções sobre a verdade são igualmente válidas. Ora, não podem ser verdadeiras simultaneamente asserções contraditórias, uma que diz que está a chover em Lisboa neste momento e outra que diz que não. O pluralismo brita-se aos pés da lei da não contradição, que diz que algo não pode ser tanto “A” como “não A” simultaneamente e no mesmo sentido. E a lei da não contradição é uma evidência inegável. Além disso, é de anotar que o pluralismo afirma ser verdadeiro e que nada contra ele é falso – sendo essa uma afirmação que nega o seu próprio princípio fundacional. Por trás do pluralismo está a atitude de tolerância. No entanto, o pluralismo propaga a ideia de que todos têm o mesmo valor com todas as suas reivindicações sobre a verdade, sendo igualmente válidas. Ora, todas as pessoas podem ser iguais, mas nem todas as reivindicações sobre a verdade o são. O pluralismo não distingue opinião e verdade – distinção que Mortimer Adler enuncia:  

O pluralismo é desejável e tolerável naquelas áreas que são questões de gosto e não em questões sobre a verdade”.

Quando o conceito da verdade é criticado, é-o por uma ou mais das seguintes razões: queixa contra quem, alegando ter a verdade absoluta em matéria de fé e religião, tem postura intolerante, crítica que não entende que, por natureza, a verdade é intolerante, pelo que tem de ser intolerante o professor de matemática por manter a crença de que 2 + 2 só pode ser 4; e a objeção de que é arrogante afirmar que alguém está certo e outem está errado, tendo de ser, por absurdo, arrogante o professor de matemática que insiste em apenas na resposta certa para um problema de aritmética, tal como o serralheiro quando diz que só uma chave abrirá a porta trancada. Um outro “mas” contra os defensores da verdade absoluta em fé e religião é que tal posição exclui as pessoas em vez de as incluir. Porém, tal “mas” não percebe que a verdade, por natureza, exclui o seu oposto. Há ainda um protesto contra a verdade, pois é divisivo e ofensivo alguém reivindicar ter a verdade. E o crítico afirma que tudo o que importa é a sinceridade. Todavia, a verdade é imune à sinceridade, crença e desejo. Não importa quanto se acredita sinceramente que uma chave errada abrirá uma porta. Assim, a verdade não é afetada pela sinceridade. Por fim, objeta-se que a verdade é impermeável à vontade. Uma pessoa pode desejar que o seu carro não esteja sem combustível, mas se o medidor indica o tanque como vazio e o carro não funciona, então não há desejo que lhe valha. Alguns admitem a existência da verdade absoluta, mas, a seguir, afirmam que tal postura só é válida na ciência, não em questões de fé e religião. É o positivismo lógico, popularizado por filósofos como David Hume e AJ Ayer, afirmando que as alegações sobre a verdade devem ser tautologias (v.g: todos os solteiros não são casados) ou empiricamente verificáveis (isto é, testáveis via ciência). Para eles, a conversa sobre Deus é absurda.

Os que defendem que só a ciência pode fazer reivindicações sobre a verdade não reconhecem que há muitos campos onde a ciência é impotente. Por exemplo, a ciência: não pode provar as disciplinas de matemática e lógica porque as pressupõe, nomeadamente os axiomas; não pode provar verdades metafísicas como a de que há mentes além da minha; é incapaz de fornecer a verdade nas áreas de moral e ética; pode ser usada, por exemplo, para provar que os nazistas eram maus; e é incapaz de afirmar verdades sobre as posições estéticas como a beleza do nascer do sol. E, se alguém declarar que “a ciência é a única fonte de verdade objetiva”, faz uma reivindicação filosófica que não pode ser testada pela ciência.

Há quem diga que a verdade absoluta não se aplica à moralidade. Porém a resposta negativa à questão se “é moral torturar e matar uma criança inocente” é absoluta e universal. Mais quem defende a verdade relativa sobre a moral sempre quer que o seu cônjuge seja absolutamente fiel.

É muito importante entender e adotar a verdade absoluta em todas as áreas da vida (incluindo a fé e religião), porque há consequências no caso de se estar errado. Dar a alguém a quantidade errada de medicamento pode matá-lo; tomar um gestor de investimentos as decisões monetárias erradas pode empobrecer uma família ou a empresa; embarcar no avião errado levará o passageiro aonde não quer ir; e lidar com cônjuge infiel pode resultar na destruição da família e até em doença.

Como o apologista cristão Ravi Zacharias explica: o facto é que a verdade importa, sobretudo quando eu sou o recetor de uma mentira. E em nenhum lugar isso é mais importante que na área da fé e da religião. A eternidade é muito longa para se estar errado.

Para Platão e Aristóteles a verdade é a “exata correspondência” dum enunciado com a realidade da coisa proferida. Aristóteles diz que, na busca da verdade percorremos 4 degraus fundamentais: ignorância, estado de completa “ausência de conhecimento” do sujeito em relação ao objeto (pois ignorar é desconhecer); dúvida, quando um conhecimento é tido como possível (porém, as razões para afirmar ou negar algo estão em equilíbrio); opinião, quando o sujeito julga ter conhecimento provável do objeto, afirmando conhecer, mas com temor de se enganar; e certeza, quando o sujeito tem plena firmeza do seu conhecimento em relação ao objeto (o conhecimento surge como algo evidente).

O conceito de verdade como correspondência ficou celebrizado pela asserção de Tomás de Aquino segundo o qual, “a verdade é a adequação do pensamento à coisa real” (adaequatio rerum et intellectus). Mas, embora considerada correta por várias correntes filosóficas, tal definição traz um grave inconveniente quanto à precisão por se basear na adequação entre o “pensamento e a realidade”. Mas que é a realidade e qual a nossa perceção da mesma? Para aferirmos das nossas limitações, refira-se que a nossa visão é sensível a uma pequena faixa do amplo espectro de radiações eletromagnéticas, o espectro visível (~390 a 700 nm), ao passo que alguns insetos como as abelhas percebem o ultravioleta e algumas cobras percebem radiação na região do infravermelho. Ou seja, se os nossos olhos fossem sensíveis a radiações com “frequências” maiores que o ultravioleta e menores que o infravermelho, a nossa “realidade visual” seria bem diferente.

Por sua vez, o ouvido humano capta apenas as frequências na “região audível”, ou seja, em média, frequências em torno de 20 a 20.000 Hz. Abaixo da frequência mínima, temos o infrassom; e acima da frequência máxima, temos o ultrassom. Ambos são inaudíveis para o ouvido humano. No entanto, alguns animais como os morcegos e os golfinhos captam frequências na região do ultrassom; e os tigres e elefantes são sensíveis ao infrassom. Por isso, se a nossa audição fosse capaz de perceber ultrassons e infrassons a nossa “realidade sonora” seria bem diferente.

E o sentido do olfato é bem pouco desenvolvido nos humanos se comparado ao de outros animais.

Portanto, podemos concluir, considerando 3 dos nossos 5 sentidos, que o nosso nível de “perceção da realidade física” é muito limitado. Isso sem considerarmos a hipótese de que existam nos seres humanos outros sentidos que ainda estão em estágios “embrionários” de desenvolvimento.

O contraste entre a verdade como justiça e a mentira como injustiça

Nos preditos julgamentos de Jesus, é inconfundível o contraste entre a verdade (justiça) e mentiras (injustiça). Lá estava Jesus, a Verdade, a ser julgado por aqueles cujas ações eram banhadas em mentira. Os líderes judeus quebraram as leis destinadas a proteger o arguido de condenação injusta. Trabalharam com afã para topar qualquer testemunho que incriminasse Jesus e, na sua frustração, ativeram-se a provas falsas aduzidas por mentirosos. Porém, nem isso pôde ajudá-los a atingir o objetivo. Quebraram uma outra lei e obrigaram Jesus a implicar-Se a Si mesmo.

Ante Pilatos, os líderes judeus mentiram de novo. Com efeito, tinham condenado Jesus por blasfémia, mas, como sabiam que isso não era suficiente para persuadir Pilatos a matá-Lo, afirmaram que Ele era um desafio a César e quebrava a lei romana ao incentivar o povo a não pagar impostos. Pilatos detetou a sua deceção superficial e nem sequer abordou a acusação.

Jesus, o Justo, estava a ser julgado pelo injusto. O facto é que este último sempre persegue o primeiro. Foi por isso que Caim matou Abel. As conexões verdade-justiça e falsidade-injustiça são demonstradas por uma série de exemplos no Novo Testamento: “Deus envia-lhes uma força enganadora para que acreditem no que é falso, para que sejam julgados todos os que não deram crédito à verdade, mas se deleitaram na injustiça(2T 2,11-12). “A ira de Deus revela-se do céu contra toda a impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça(Rm 1,18). “Retribuirá a cada um segundo as suas obras, isto é, a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade, mas ira e indignação aos que, por rebeldia, são indóceis à verdade e dóceis à injustiça(Rm 2,6-8). “Nada faz de inconveniente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade(1Cor 13,5-6).

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Concluindo

A pergunta que Pilatos fez a Jesus precisa de ser reformulada a fim de ser completamente precisa. A sua observação “Que é a verdade?” ignora o facto de muitas coisas poderem ter a verdade, mas só uma coisa poder ser a Verdade. A verdade deve originar-se de algum lugar. A realidade é que Pilatos estava a olhar para a fonte da Verdade naquela manhã. Não muito tempo antes de ser preso e levado ao governador, Jesus declarara que é a verdade(cf Jo 14,6) – o que parecia incrível. Como pode um homem ser a verdade? Não o podia ser, a menos que fosse mais que homem, que é o que afirmou ser. E a afirmação de Jesus foi validada quando ressuscitou dos mortos (cf Rm 1,4).

Um homem que vivia em Paris recebeu a visita dum estranho do interior. Querendo mostrar-lhe a magnificência de Paris, levou-o ao Louvre a ver a grande arte e, depois, a um concerto num majestoso teatro para ouvir uma grande orquestra sinfónica. No fim do dia, o visitante confessou não ter gostado da arte ou da música. O anfitrião respondeu que “eles não estão em julgamento, ao passo que tu estás”. Pilatos e os líderes judeus achavam que estavam a julgar Cristo, quando eram eles que estavam a ser julgados. Além disso, O que foi condenado servirá como seu Juiz, como o será de todos os que detêm a verdade em injustiça.

Pilatos nunca chegou ao conhecimento da verdade. Eusébio, historiador e bispo de Cesareia, sustenta que Pilatos se suicidara durante o reinado do imperador Calígula, um final triste e um lembrete para todos de que ignorar a verdade pode levar a consequências indesejáveis.

De facto, a verdade passa pelos conteúdos de verdade, mas assenta na pessoa que é a Verdade.

2022.04.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Origem, conceções e função da verdade

 

A procura da verdade constituiu sempre um dos problemas fundamentais da filosofia, mas o seu conceito não é unívoco. Ao invés, há diferentes conceções sobre a natureza da verdade e do seu conhecimento. Entre elas, ressaltam as advindas das línguas grega, latina e hebraica, dependendo de qual das três ideias originais da verdade predomine, se moldará e direcionará o conceito de verdade. Em todas as conceções são preservados aspetos fundamentais, como: causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros; causas da existência e das formas de existência dos seres; princípios necessários e universais do conhecimento racional; causas e princípios da transformação dos próprios conhecimentos; separação de preconceitos e hábitos do senso comum e atitude crítica do conhecimento; explicitação, com todos os pormenores, dos procedimentos do conhecimento e dos critérios da sua realização; liberdade de pensamento para investigar o sentido da realidade que nos circunda e de que fazemos parte; comunicabilidade, ou seja, critérios, princípios, procedimentos, percursos realizados, resultados obtidos, que devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais (Para Espinosa, o Bem Verdadeiro é o capaz de se comunicar a todos e ser compartilhado por todos); transmissibilidade, ou seja, critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público (segundo Kant, temos o direito ao uso público da razão); veracidade, ou seja, o conhecimento não pode ser ideologia ou não pode ser máscara ou véu para dissimular e ocultar a realidade servindo os interesses da exploração e da dominação entre os homens.

A verdade deve ser objetiva, devendo ser, por isso, compreendida e aceite universal e necessariamente, sem que tal signifique que seja neutra ou imparcial, pois está o sujeito do conhecimento vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode redundar em mudanças que afetem a realidade natural, social e cultural. Por outro lado, a verdade, postulando a liberdade de pensamento para o conhecimento, exige que os seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos. Há, contudo, um certo relativismo entre as diferentes conceções sobre a natureza da verdade, mas que se interligam.

Do latim “ueritas”, define-se a verdade como adequação do intelecto ao real. Assim, a verdade é a propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam. “Veritas” é relacionável com o verbo “uereor” (receio, temo), pois o pensador teme não ser capaz de envidar todos os esforços para a consecução da verdade, ou afastar-se do caminho (“uerita”), que a ela conduz, bem como com o nome “ueru” (espeto, esteio), porque a verdade é exornada da virtude de apoio ao homem e da capacidade de lhe revelar o mundo e de o revelar ao mundo. “Veritas” refere-se à exatidão dum relato, não da qualidade das coisas, mas de quanto é exato o seu relato. Assim, um relato é verdadeiro se enunciar pormenorizada e exatamente os factos reais. Do grego “alêtheia, a verdade recorta-se ao não oculto ou ao não dissimulado, ao que vem ao de cima. “Alêtheia” é o oposto de “pseudos” (escondido, dissimulado). O que importa é que olho e espírito, vendo o verdadeiro, estão diante de algo evidente próprio das coisas. A verdade está nas coisas. Por isso, dizer a verdade é dizer a verdade do que está na realidade manifestada, e não na realidade que não se manifesta, oculta, a que engana. E, em hebraico, verdade relaciona-se com “emunah”, palavra que se reporta ao pactuado, para o presente ou para o futuro. Tem a ver com a esperança, a confiança, a ideia de que o que se combinou vai realizar-se. Remete para o pacto histórico e político e para a profecia.

Em geral, entende-se por verdade a qualidade pela qual o procedimento cognoscitivo se torna eficaz ou obtém êxito. Tal caraterização pode aplicar-se às conceções pelas quais o conhecimento é um processo mental e às que o consideram um processo linguístico ou semiótico. E tem a vantagem de prescindir da distinção entre definição de verdade e critério de verdade. Tal distinção nem sempre é feita e, quando o é, representa apenas a admissão de duas definições de verdade. Por outro lado, a verdade é a concordância entre o sentido e a realidade, entre os argumentos e a verificação da existência sólida dos elementos que sustentam a argumentação.

Nietzsche diz que os homens constroem as suas histórias em fundamentações capazes de produzir uma verdade para a moral sobre o ser justo ou não. E busca, no decorrer do tempo, a explicação para obter respostas de como e que passos o ser humano foi capaz de dar para chegar a determinada conclusão. Para ele, a verdade, embora não seja absoluta, é capaz de esclarecer e justificar valores impostos e particulares.  

A verdade possui dupla interpretação, ou seja, entende-se em sentidos. Para a exposição da verdade pretende-se, antes de mais, mostrar a exposição do conteúdo e, depois, a forma em que se baseia verdade. Estes dois aspetos precisam um do outro para o entendimento da verdade.

Para Platão, a verdade aplica-se, primeiro, ao objeto e, depois, ao enunciado; já para Aristóteles, a verdade está ligada ao ato de dizer e, dessa forma, não há verdade sem enunciado, mas este não basta em si mesmo como verdade.

Na “República”, Platão narra a alegoria por acerca de alguns prisioneiros que estavam numa caverna, totalmente amarrados, tendo acesso apenas às sombras projetadas pela claridade da luz da fogueira. E, como já se haviam acostumado a essa situação, criam que isso era a realidade. Entretanto, um prisioneiro saiu da caverna e descobriu como era maravilhoso o lado de fora; voltou para contar a novidade aos seus antigos companheiros e não foi compreendido. Por isso, motivo, os prisioneiros resolveram nunca saírem da caverna, por temerem o que estava lá fora.

Para Heidegger, a interpretação da alegoria platónica é uma doutrina da verdade na qual se demostra a essência da verdade.

A alegoria da caverna ilustra a essência da formação, mas a sua interpretação deve apontar para a doutrina platónica da verdade. A alegoria não ilustra apenas a essência da formação, antes permite, ao mesmo tempo, a apreensão duma transformação essencial da verdade. Subsiste a relação essencial entre formação e verdade, pois a essência da verdade e o modo de sua transformação é que tornam possível a formação em sua estrutura fundamental.

Por seu turno, Aristóteles afirma que não é possível haver verdade sem enunciado porque é pelo enunciado que haverá algo que se discuta e seja base para a afirmação. Aristóteles aproximou-se da lógica e essa relação foi conhecida como coisa. Segundo Aristóteles, há dois teoremas fundamentais: o primeiro que a verdade está no pensamento ou na linguagem, e não no objeto; o segundo é a medida da verdade está presente no objeto, na ação. E é a partir destes pressupostos que se equacionam as teorias da verdade, que são de duas ordens: substantivas; e minimalistas.

Nas teorias substantivas da verdade, ou tradicionalistas, enquadram-se: a da correspondência, a da coerência, a pragmatista e a da verificação ideal.

Considerando que X é uma frase, uma declaração, um pensamento ou uma proposição e que o símbolo “sse” é o “se e somente se”, então as 4 teorias podem expressar-se assim:

Teoria da correspondência – X é verdadeiro sse X corresponde a um facto; teoria da coerência – X é verdadeiro sse X é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente; teoria pragmatista – X é verdadeiro sse X é útil de se acreditar; teoria da verificação ideal – X é verdadeiro sse X é provável, ou verificável em condições ideais.

A teoria da correspondência tem a sua raiz na asserção de Aristóteles: “dizer do que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade”. Entretanto, comparamos coisas heterogéneas, ou seja, dum lado, uma expressão, frase, do outro, o facto. Essa teoria funciona razoavelmente para factos positivos, mas não para factos negativos. Por exemplo, se dizemos que “há um gato na sala”, temos um facto (o gato está na sala). Aplicando a fórmula da teoria da correspondência, temos que “há́ um gato na sala” se e somente se há́ um gato na sala. Há, pois, correspondência entre o enunciado e o facto. Mas, se tentarmos aplicar a fórmula da teoria da correspondência a factos negativos, ela não funciona. Por exemplo, se dissermos que “não há́ um gato na sala”, o enunciado é verdadeiro se e somente se não há um gato da sala. Ora, aparentemente a coisa é a mesma, mas não o é realmente, porque apenas estamos a dizer o que não há na sala e não algo que lá haja. Não temos uma informação útil. Não sabemos a que facto corresponde expressão linguística “não há um gato na sala”.

Já a teoria da coerência afirma que, nos enunciados, as coisas devem ser comparadas com coisas, as crenças com crenças, etc. Um sistema de crenças é verdadeiro quando os seus elementos são coerentes uns com os outros. A verdade é a propriedade de pertença a um sistema coerente de crenças ou enunciados. Entretanto, objeta-se ao coerentismo que há vários conjuntos harmoniosos de crenças muito bem estruturados, mas que não estaríamos dispostos a gastar esforço algum a seu favor numa discussão. São coerentes e ousamos chamá-los verdadeiros, embora em nada nos convençam a falar de alguma realidade. Se o coerentismo abre a guarda ao relativismo, não será solução para as falhas do correspondentismo, pois no limite apenas tece o tapete do ceticismo. Ora, o ceticismo é a figura contra a qual a filosofia tem a sua guerra permanente, já que o cético é o que fala sobre a impossibilidade do conhecimento verdadeiro. A teoria da verdade como coerência considera a verdade como resultando da sua coerência com um sistema de crenças ou verdades determinadas anteriormente. Desse modo, estará preservada a ausência de contradição dentro do sistema.

Foi contra a abertura da teoria da coerência diante do relativismo e do ceticismo que James e Dewey introduziram a teoria pragmatista da verdade. Segundo esta teoria, a verdade resulta do consenso entre o que é considerado aceitável face ao real. É uma corrente filosófica norte-americana, difundida no final do século XIX, segundo a qual a verdade é o que serve de solução imediata aos problemas, mas não se prende a um sistema moral normativo: o que se toma como verdadeiro é o agir humano em função de objetivos práticos.

Não há nada de novo no método pragmático. Sócrates foi adepto dele. Aristóteles empregou-o metodicamente. Locke, Berkeley e Hume trouxeram pequenas contribuições à verdade através dele. Shadworth Hodgson insiste em que as realidades são só o que sabemos delas.

Para os pragmatistas a verdade tem de ser útil e satisfatória, correspondendo aos meios que condicionam o pensamento. O pragmatismo tem como caraterística epistemológica o empirismo.

E, para a teoria da verificação ideal, em parte pragmatista, a verdade da proposição estabelece-se a partir dos resultados, ou seja, da sua aplicação prática e da sua verificação pela experiência. Para esta teoria, o “X” será verdadeiro somente se “X” for verificável em condições ideais. A verdade é subordinada à nossa capacidade de a descobrir e é entendida como o resultado do processo de verificação (real ou possível). Assim, um enunciado somente será verdadeiro se for possível ter acesso epistémico à sua verdade.

Nas teorias minimalistas enquadram-se a teoria deflacionista, a teoria da redundância e a teoria semântica – todas estão no campo semântico.

Os filósofos deflacionistas desmembram a verdade e tiram dela toda a carga metafisica nela implícita. Dizem que a verdade não é uma propriedade “real”, ou “robusta”, ou uma propriedade metafisicamente interessante. A palavra “verdade” é só um item de performance que tem o objetivo de auxiliar a frase e a deixar mais completa, pelo que não pertence ao campo metafisico.

Para a teoria da redundância, a verdade não é uma propriedade substancial, porque não é uma verdade. Segundo esta teoria, a expressão “é verdade” é redundante. Ou seja, quando afirmamos que “é verdade que Rosa é jornalista”, a expressão “é verdade” é redundante.

A teoria semântica afirma que a verdade é a propriedade das sentenças. Foi feita sobre um caráter lógico da proposição. Esta, para ter significado, tem de ser passível das atribuições de verdadeiro ou falso, segundo critérios analíticos ou empíricos.

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Há diferentes conceitos sobre o que é verdade. Diversos autores, estudiosos e filósofos apresentam distintas visões, destacando-se Platão e Aristóteles, cujas ideias outros reciclaram. Para Platão, a verdade aplica-se, primeiro, ao objeto e, depois, ao enunciado. E, para Aristóteles, a verdade está ligada ao ato de dizer. Aristóteles explica a verdade através das teorias substantivas de verdade (não considera a pragmatista): a da correspondência, a da coerência e a da verificação ideal. Em cada uma, explica a verdade com enfoque e função diferente. A teoria da correspondência é dizer do que é que ele é, ou não dizer do que é que ele não é, é a verdade. Já da teoria da coerência afirma que não tem sentido, e que nos enunciados as coisas devem ser comparadas com coisas e as crenças com crenças.

Ainda são defendidas as teorias substantivas, mas atualmente adotam-se, na maior parte das vezes, as minimalistas. Falar em minimalismo remete para o que é detalhado, pois o ser humano sempre busca os mínimos detalhes para expor os seus pontos de vista, o que leva à prática constante da teoria minimalista. As teorias minimalistas são todas do campo semântico, mas diferem entre si por passos bem visíveis ou por sutilezas só percetíveis para quem tem formação filosófica, técnica, nas áreas de lógica, semântica e filosofia da linguagem.

A verdade é essencial para compreensão do ser humano e suas relações. Portanto, é fundamental na convivência social, nas relações económicas, na definição de políticas públicas, na busca da justiça, nas decisões judiciais, na obtenção da coerência nas petições dos juristas e na aplicação das normas do ordenamento jurídico.

2022.04.28 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Palavras “comprimento” e “cumprimento” – da alotropia à paronímia

Todos os falantes do português sabem distinguir entre os termos “comprimento” e “cumprimento” e os linguistas dão-no-los como parónimos, pois têm grafia e pronúncia muito semelhantes, mas têm significados muito diferentes e “supostamente” origens diferentes. Estamos, pois, ante o fenómeno da paronímia, fenómeno linguístico que ocorre entre palavras que têm significante parecido, mas significado distinto, isto é, que têm estrutura, escrita e/ou sonora, muito semelhante, porém sem qualquer relação de significado.

Assim, temos, por exemplo: absolver (declarar inocente, perdoar), adsorver (reter por adsorção ou assimilação) e absorver (sorver, incorporar); cavaleiro (aquele que monta em cavalos) e cavalheiro (aquele que é cortês, polido); descrição (definição, explicação aprofundada) e discrição (comedimento, modéstia, reserva); emigrante (que ou quem emigra ou vai estabelecer-se noutra região ou noutro país diferente do seu) e imigrante (que ou quem imigra ou vem estabelecer-se em região ou país diferente do seu); eminente (elevado, proeminente, distinto, ilustre, nobre) e iminente (próximo, imediato, prestes); exportar (mandar ou transportar para outro país ou região) e importar (introduzir num país ou região produtos provenientes de outros países ou regiões); perfeito (acabado, rematado, completo; sem defeito; magistral; primoroso, notável, destro; que não deixa dúvidas; [tempo verbal] que exprime que, no momento em que estamos já está realizado aquilo que o verbo significa; [acorde] formado por três ou mais notas; [número] igual à soma das suas partes alíquotas) e prefeito (o que preside ao estudo e vigia os estudantes nos colégios e seminários, chefe de prefeitura na antiga Roma ou do município no Brasil, superior de comunidade eclesiástica, chefe de departamento em França); ratificar (confirmar, aprovar) e retificar (corrigir, consertar, alinhar); soar (tocar, badalar, emitir som) e suar (transpirar, gotejar).

É de anotar que em casos como “emigrante” e “imigrante”, “eminente” e “iminente”, “soar” e “suar”, é preciso fazer um esforço para pronunciar as palavras de modo que não sejam homófonas, isto é, diferentes na escrita e iguais na pronúncia, distinguindo-se pelo contexto.

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Ora o vocábulo “comprimento” é assumido, na física, como grandeza de base que exprime a distância percorrida entre dois pontos e cuja unidade de medida é o metro (no grego, “métron”, medida); em termos geométricos é a medida do lado mais oblongo dum paralelogramo; em termos genéricos, é a extensão longitudinal entre duas extremidades, a distância, o tamanho, a grandeza; e, por extensão, comprimento de um terreno e também: duração, extensão de tempo, comprimento de fala.

Ao termo associa-se a noção de medida, no latim, “mensura” (do verbo “metior”, cujo pretérito perfeito e “mensus sum”) e, no português medieval, “mesura”. No quadro das dimensões (medidas) fica relacionado com a largura, a altura e/ou profundidade – todas condicentes com as noções de medida, grandeza, distância, extensão. E, quando temos um objeto com as três dimensões, chamamos-lhe corpo, sólido; e, se tem as faces planas, é um poliedro.   

Etimologicamente “comprimento” vem do radical antigo compr (comprir) + mento.

E o vocábulo “cumprimento” usa-se em diversas aceções: a) ato ou efeito de cumprir uma norma, observância, execução completa; b) gesto ou palavra de saudação; c) elogio, lisonja; d) (no plural) saudações, felicitações.

Então, “cumprimento” reporta-nos à saudação e ao elogio, quando referente ao verbo cumprimentar; ao ato de concluir alguma obrigação ou tarefa, quando referente ao verbo cumprir satisfazer; à observância de lei ou regulamento, quando referente ao verbo cumprir como contrário ao verbo transgredir; e à forma conjugada do verbo cumprimentar na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa.

Etimologicamente a palavra vem, como no caso do suposto parónimo acima referenciado, do radical antigo compr (comprir) + mento.

Quer dizer que no português arcaico só havia a forma “comprir”, não se usando a forma “cumprir”. Significa isto que “cumprimento” e “comprimento” têm uma origem etimológica comum, o “complementum” latino (complemento, enchimento, extensão), do verbo “complere” (encher inteiramente, concluir, acabar, completar, preencher, recrutar), derivado de “cum + plere”. 

Anote-se que no latim, embora exista a preposição e sufixo “cum” (equivalente ao grego “syn”), na formação de palavras por prefixação o prefixo surge como “com” antes de “b”, “m” e de “p” (v.g: combustio, communio, complector, amplexus …) e “con” nos outros casos (v.g: condo, conficio, connubium…). Veja-se que, mesmo as nossas palavras “cúmplice” e “cumplicidade” têm como étimo “complex”.

Se a “comprimento” associamos as noções de grandeza, medida e distância, também as devemos associar a “cumprimento”, pois o trovador medieval, em relação à sua “senhor”, tinha que guardar a mesura, a medida ou a distância, não fosse ela assanhar-se ou o marido vir a descobrir o caso amoroso. Por outro lado, o trovador chama-a “comprida de bem” a reconhecer a sua grandeza moral. E também havemos de associar a cumprimento a perfeição, o bom acabamento, a completude, a plenitude, pois o trovador reconhece na sua “senhor” a que Deus fez a maior e a mais comprida de bem que “todalas que en el mundo ay”. E nós saudamos a Mãe de Jesus como a Cheia de Graça (gratia plena).

 Também é corrente, quando nos dirigimos a alguém que reputamos mais elevado na sociedade dizermos “dá licença que o cumprimente”. Os romanos quando saudavam o imperador e outros superiores “estendiam” o braço direito. Os militares fazem a continência, mantendo alguma distância, perfilando-se em sentido e levando a mão à testa com alguma rigidez.

Os dois gladiadores romanos antes do início da luta, tantas vezes mortal para ambos, perfilavam-se diante do imperador à distância protocolar, estendiam a mão direita na sua direção e clamavam: Aue, Caesar uictor, morituri te salutant! (Os deuses te salvem, César vencedor, os que vão morrer saúdam-te!).

Trata-se de observância ou cumprimento de rituais, protocolos.

Em ambos os casos de “comprimento” e “cumprimento” falamos de extensão e complemento. Medir uma grandeza ou uma distância gera uma completude de conhecimento que pode revestir-se da necessária utilidade; cumprir uma lei ou norma significa completá-la na sua finalidade e objetivos e, quando avaliamos o seu cumprimento, percebemos a distância entre o que se deve fazer e o que efetivamente se fez ou se a norma, lei ou regulamento são adequados e exequíveis; saudar uma pessoa significa, por um lado, reconhecer a sua importância e grandeza e, por outro, guardar a distância que o respeito impõe, podendo eventualmente não haver sucesso, bem como satisfazer ou preencher os requisitos da boa relação interpessoal. É comunicar elevando à plenitude atitudinal duas ou mais pessoas que são ou passam a ser do mesmo universo de relação ou de interesse.

Repare-se que a temática do complemento é recorrente na vida. Em geometria, dizem-se complementares dois ângulos adjacentes cuja soma faz um ângulo reto; no casamento, os cônjuges são complemento um para o outro; na sintaxe gramatical, a proposição tem o complemento direto, o complemento indireto, o complemento oblíquo, o complemento do nome, o complemento do adjetivo, o complemento do advérbio, o complemento agente da passiva: e há orações que servem de complemento a outros elementos da frase.    

Ora como os dois vocábulos “comprimento” e “cumprimento” têm o mesmo étimo latino “complementum” e até começaram a ter a mesma história, mais do que parónimos, devem ser entendidos como divergentes ou alótropos com os significados que o uso especificou.

É o que sucede com tantos outros como “solitário” e “solteiro” (de “solitarium”), significando o primeiro “o que vive sozinho” e o segundo “o que não é casado”; “óculo” e “olho” (de “oculum”), significando o primeiro “óculo” e o segundo “olho”, “plano” e “chão” (de “planum”), significando o primeiro “plano” (superfície lisa) e o segundo “chão” (solo), “mácula”, “malha”, “mancha”, (de “maculam”), significando o primeiro “impureza” e os seguintes “marca” e “nódoa”, respetivamente.

Assim, mais do que a paronímia, deveríamos considerar a alotropia gramatical – em que um étimo dá origem a várias formas lexicais – por analogia com a alotropia física e química, propriedade segundo a qual alguns corpos simples apresentam diferentes estados a que correspondem propriedades distintas.

Brincando até dizemos muitos cumprimentos, larguras e alturas.

Os gregos saudavam-se com o “Khaîre” (Alegra-te), e “Khaírete” (Alegrai-vos). Os romanos saudavam-se com o “Salue” (Tem saúde) e “Saluete” (Tende saúde), “Aue” (Deus te salve ou os deuses te salvem) e “Auete” (Deus vos salve ou os deuses vos salvem), quando se aproximavam; e “Vale” (Tem valor, força) e “Valete” (Tende valor, força), à noite ou quando se afastavam. Alegria, saúde e valor são predicados do homem que vive em plenitude do homem completo, que tem todas as medidas.

Enfim, performances que o uso determina. Hoje, para mal dos nossos pecados, em “comprimento” e “cumprimento”, há paronímia, porque esquecemos a alotropia gramatical. É pena. Falta-nos química!  

2022.04.27 – Louro de Carvalho