Os
trechos evangélicos que liturgicamente se proclamam no IV domingo da Quaresma e
no V, no Ano C, são respetivamente a parábola do Pai bondoso que tinha dois
filhos (Lc 15,1-3.11-32) e o episódio da mulher apanhada
em flagrante adultério (Jo
8,1-11).
É
óbvio que um olhar enviesado vê na primeira das parábolas só o filho pródigo (o
mais novo) que tudo
gastou da fortuna que era do Pai – que afinal lha dera por liberalidade sua e por
exigência do filho – levando vida dissoluta, que o irmão mais velho diz ter
tudo esbanjado com mulheres de má vida. Depois, refletindo, lá vamos à atitude
do filho mais velho, que trata o Pai como o patrão cujas ordens são escrupulosamente
cumpridas como se fossem rubricas de rito sacrificial ou imperativos legais
sobre cujo incumprimento se abateria o látego do castigo, tal como acusa o
irmão de tudo haver desperdiçado e acusa o Pai de a ele, filho cumpridor, nunca
lhe ter dado nada, mas de, para o devasso, mandar fazer uma festa em que é
imolado e consumido o vitelo gordo.
E
a curiosidade do leitor ou do ouvinte questiona o narrador se efetivamente o
filho mais velho, que não queria entrar na festa do irmão mais novo, chegou a
entrar ou não.
É
certo que se contrapõem aqui duas atitudes dos irmãos: o mais novo, na sua
rebeldia, exige ao pai a parte da herança que lhe cabe, abandona a casa paterna,
dissolve toda a fortuna em vida dissoluta, experimenta o sofrimento, mas decide
voltar e é recebido amorosamente pelo Pai, que manda fazer festa; o mais velho
não exige nada, cumpre ordens, mas, quando o irmão regressa, pela-se de inveja
porque o Pai mandou fazer festa e recusa-se a entrar em casa.
Se
acabará por participar na festa a instâncias do Pai não o sabemos, porque o
narrador não o diz.
Com
efeito, a narrativa não pode estar fechada, porquanto o escopo da parábola é
apresentar, através das parábolas o verdadeiro rosto de Deus, e não satisfazer
a nossa curiosidade.
E
o rosto de Deus que Jesus quer apresentar e vai concretizar na sua vida e
ensinamento não é o do Deus que pune o pecado, o Deus da vingança – conceito corrente
na mentalidade judaica e nas nossas antigas catequeses paroquiais e familiares –,
mas o Deus liberal, que dá o que Lhe é pedido, que respeita a liberdade dos
filhos; é o Deus que tem pena de quem se afasta da sua casa; é o Deus que
acolhe quem regressa, independentemente da magnitude ou da fealdade dos erros
cometidos; é o Deus que insta à concretização da fraternidade tentando demover
do seu orgulho aquele que se julga mais justo que o outro, acusando tudo e
todos do que fazem e do que não fazem; é o Deus que sente alegria por quem
volta, por quem vive e manda fazer festa e quer que todos participem nela. Com efeito,
o seu objetivo e grande gosto é que os filhos se juntem em festa, em relação de
comunhão com o Pai e entre eles.
Se
o irmão mais velho veio a participar ou não na festa depende de ele ter
deixado, a instâncias do Pai, transformar o coração empedernido pelo ciúme em coração
aberto à novidade e ao perdão. A festa do Pai é, por sua natureza, inclusiva; o
seu cuidado é por todos e para com todos, embora seja mais visível e premente
para com aqueles que necessitam mais dele.
Também
poderíamos perguntar quanto tempo durou a festa, mas a pergunta é inútil, pois
a festa do Pai, uma vez iniciada, não mais acabará, é a festa infinda, eterna. A
festa começou, diz o Evangelho, que não diz quando acabou, justamente porque
não tem fim
Este
Pai é de vistas largas, coração grande, braços abertos, pés ágeis. E Jesus é o
seu rosto humano entre humanos recetivos ao mistério, ao perdão, à surpresa
desafiante de Deus.
Se
os escribas e fariseus iam ter com o Mestre para o experimentarem (cf
Lc 15,1-3), foram
por lã e vieram tosquiados, mas as multidões reviram-se no filho que errou, mas
caído em si regressou, pelo que desejam participar na festa indicada e prometida
por Cristo, ao serviço da qual Ele deu a vida até à última gota de sangue.
***
No
respeitante ao episódio referido no Evangelho de João, é de assinalar que se repete
com mais uns pozinhos de malícia a história da intenção dos que trazem a mulher
apanhada em flagrante adultério à presença de Jesus: vinham, não apenas para o experimentarem,
mas para O apanharem numa armadilha e obterem matéria para O acusarem.
Embora
seja interessante interrogarmo-nos por que motivo só “apanharam” em flagrante
adultério a mulher e não também o homem (o adultério implica a parceria), o importante é perceber através
das atitudes de Jesus como é o rosto misericordioso do Pai. Segundo a Lei de Moisés,
quem comete adultério deve morrer por apedrejamento e fizeram questão de lembrar
a Jesus que a mulher em nome da Lei deve ser condenada.
Jesus
baixou-se, começou a escrever com o dedo na areia e desafiou: “Quem estiver sem pecado atire a primeira
pedra!”. E todos se foram afastando a começar pelos mais velhos.
Jesus
levantou-se e, voltado para a mulher, já que ninguém a condenara, sentenciou: “Eu também não te condeno. Vai em paz e não
tornes a pecar.”.
Mais
uma vez fica espelhada a mensagem de Jesus sobre o rosto de Deus: não de condenação,
mas de misericórdia, compaixão, perdão, acolhimento, festa.
Porém,
o ensinamento de Jesus à multidão continuou no Templo, obviamente em discussão
com os Judeus, mas ficando Jesus a afirmar-se como Luz do mundo e a apresentar as
suas obras como testemunho de Si próprio.
***
Na
homilia na Missa em Malta, neste dia 3, o Papa Francisco fez uma abordagem pertinente
deste episódio, relevando a presença do Povo de Deus na cena e exaltando Jesus
como imagem do Pai e como Mestre de uma escola de discípulos cuja vida tem a
oportunidade de transformação e de capacitação para o apostolado e para o
perdão.
Diz
o Pontífice que, num horizonte, de manhã no coração de Jerusalém, “o protagonista
é o povo de Deus, que no átrio do templo procura Jesus, o Mestre:
deseja escutá-Lo, porque a sua palavra ilumina e encoraja”, pois a sua doutrina
“toca a vida e liberta-a, transforma-a, renova-a”.
Na presença do
povo, Jesus não tem pressa: “sentou-Se – diz o Evangelho – e pôs-Se a ensinar”.
E Francisco sublinha que, “na escola de Jesus, há lugares vazios”, que alguns estão
ausentes: a mulher e os acusadores. Chegando mais tarde, “não foram ter com o
Mestre como os outros. Os escribas e os fariseus pensam que já sabem tudo, mas
a mulher, como pessoa perdida, procura a felicidade por caminhos errados.
Nos acusadores
da mulher vê o Papa a imagem dos que se vangloriam de ser justos,
observadores da lei de Deus, pessoas regradas e justas, não se preocupando com
os próprios defeitos, mas mostrando-se muito atentos na descoberta dos alheios.
Por conseguinte, apresentam-se a Jesus para “O fazerem cair numa armadilha e terem
de que O acusar”, intento que espelha a interioridade das pessoas cultas e
religiosas, que conhecem as Escrituras, frequentam o templo, mas subordinam
tudo isto aos próprios interesses sem combaterem os pensamentos maus que se
agitam no seu coração. Veem Jesus como inimigo a eliminar. Para tanto, colocam-lhe
diante uma pessoa, como se fosse uma coisa, chamando-a desdenhosamente ‘esta
mulher’ e denunciando publicamente o seu adultério, derramando nela a aversão
que sentem pela compaixão de Jesus.
E,
à luz deste episódio, o Santo Padre adverte para o risco de na nossa
religiosidade e em qualquer comunidade se insinuar “a traça da
hipocrisia e o vício de apontar o dedo”, havendo “sempre o perigo de
entender mal Jesus, ter o seu nome nos lábios, mas negá-Lo nas obras”, mesmo a levantar
estandartes com a cruz. Então saberemos se somos discípulos na escola do Mestre
“pelo nosso olhar, pelo modo como olhamos para o próximo e como
olhamos para nós mesmos”.
A
questão é se agimos com Jesus, isto é, com um olhar de misericórdia, segundo o coração
de Deus, ou se agimos segundo o nosso impulso, ou seja, de forma inquisitória e
desdenhosa, como os acusadores do Evangelho, “que se erguem como defensores da
Deus, mas não se importam de espezinhar os irmãos. Por outro lado, temos de ver
como olhamos para nós mesmos. E diz o Papa:
“Os acusadores da mulher estão convencidos de que não têm nada a
aprender. Com efeito a aparência externa é perfeita, mas falta a
verdade do coração. São a figura dos crentes de cada época que fazem da fé
um elemento de fachada, onde sobressai o aspeto exterior solene, mas falta a
pobreza interior, que é o tesouro mais precioso do homem. De facto, para Jesus
o que conta é a abertura disponível de quem não se sente perfeito, mas
necessitado de salvação.”.
No
atinente à mulher adúltera, o
Papa sublinha a sua situação que parece irremediável, mas que, ao invés dos
acusadores, se abre aos seus olhos um horizonte novo, antes inconcebível. Pronta
a receber palavras implacáveis e severos castigos, “vê-se absolvida por Deus,
que lhe abre de par em par um futuro inesperado: “Ninguém te condenou? – diz-lhe Jesus – Também Eu não te condeno. Vai e
de agora em diante não tornes a pecar” (Jo 8,10.11).
E
o Santo Padre enfatiza a diferença entre o Mestre e os acusadores: enquanto
estes citam a Escritura para condenar, “Jesus,
Palavra de Deus em pessoa, reabilita completamente a mulher, restituindo-lhe a
esperança”. De facto, como ensina o Papa, “qualquer advertência, se não for
movida pela caridade e não contiver caridade, afunda ainda mais quem a recebe”;
porém, Deus deixa sempre aberta
uma possibilidade e sabe encontrar caminhos de libertação e
salvação.
Estão ali
Misericórdia e miséria, como pensa Santo Agostinho, Cristo e a mulher (é de recordar o título da
Carta Apostólica “Misericordia et misera”,
no termo do Jubileu Extraordinário da Misericórdia). A mulher muda graças ao
perdão.
E
Francisco pensa que, “perdoada por Jesus, ela por sua vez aprendeu a perdoar”, passando
talvez a ver os acusadores “como aqueles que lhe permitiram encontrar Jesus”. Na
verdade, os discípulos do Senhor, nós como Igreja, perdoados por Ele, temos de
nos transformar em testemunhas incansáveis de reconciliação, “testemunhas dum
Deus para o Qual não existe a palavra ‘irrecuperável’, dum Deus que sempre
perdoa, sempre” e “continua a crer em nós e todas as vezes dá a possibilidade
de recomeçar”. Está visto – digo eu – que é melhor revermo-nos na figura
daquela mulher do que nos seus acusadores, nos que procuram o Mestre para O
ouvirem do que nos escribas e fariseus. Só que, às vezes, somos mais fariseus e
escribas, mais acusadores…
Mais:
em Malta, considerou o Bispo de Roma que “esta mulher, que conheceu a
misericórdia na sua miséria e volta curada pelo perdão de Jesus”, nos sugere,
como Igreja, “que principiemos de novo a frequentar a escola do Evangelho, a
escola do Deus da esperança, que sempre nos surpreende”. Na verdade, imitando-O,
não nos concentraremos na denúncia dos pecados, mas sairemos amorosamente à
procura dos pecadores; “não ficaremos a contar os presentes, mas iremos em
busca dos ausentes”; não apontaremos o dedo, mas pôr-nos-emos à escuta. Enfim, deixar-nos-emos
surpreender por Ele e acolheremos “com alegria a sua novidade”.
***
“Deus quer que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4).
“Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o
seu Filho Unigénito a fim de que todo o que n’Ele crê não se perca, mas tenha a
vida eterna” (Jo 3,16). “Deus
não enviou o Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja
salvo por meio dele” (Jo 3,17).
2022.04.03 – Louro de
Carvalho
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