O
Patriarcado do Moscovo e primaz de
todas as Rússias está cada
vez mais isolado em relação à guerra na Ucrânia. Com efeito, as suas
declarações de apoio ao
conflito bélico em curso na Ucrânia e a favor do presidente russo Vladimir Putin
continuam e, depois de terem originado protesto veemente de centenas de
clérigos e comunidades religiosas femininas, estão a causar verdadeiro abalo no
mundo ecuménico, tanto que muitos pedem ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI) que expulse das suas fileiras o Patriarcado de
Moscovo.
Depois de
haver reiteradamente legitimado a guerra em nome da religião e da história e
acusado o Ocidente de ambição e o Patriarca de Constantinopla de cisma, a
última tomada de posição é um convite para combater os “inimigos internos e
externos de Moscovo”, rogando que, “neste período difícil para nossa pátria,
que o Senhor ajude cada um de nós a nos unirmos, mesmo em torno do poder”. E “assim
surgirá a verdadeira solidariedade no nosso povo, a capacidade de rejeitar os
inimigos externos e internos e construir uma vida com mais bem, verdade e amor”.
Não é a
primeira vez que o Patriarca Kirill apoia as intenções militares da
Rússia. Tem feito isso desde o início do conflito na Ucrânia. E a sua
postura tem provocado uma onda de mal-estar e de choque no mundo ecuménico.
O “SIR News”, da agência católica SIR, pela
voz da jornalista M. Chiara
Biagioni, questionou diretamente o secretário-geral interino,
Reverendo Ioan Sauca, da Igreja Ortodoxa Romena, que respondeu em termos
sintéticos do seguinte modo:
“Todos nos sentimos zangados,
frustrados, desapontados e, humana e emocionalmente, tendemos a tomar decisões
imediatas e radicais. No entanto, como seguidores de Cristo, foi-nos
confiado o ministério da reconciliação e da unidade. Seria muito fácil
usar a linguagem dos políticos, mas somos chamados a usar a linguagem da
fé. É fácil excluir, excomungar, demonizar; mas somos
chamados, enquanto CMI, a ser uma plataforma de encontro, diálogo e escuta,
mesmo se e quando discordamos. Isso sempre foi o CMI e eu sofreria muito se
essa vocação se perdesse e a natureza do CMI mudasse.”.
Porém, deixa
uma asserção lapidar: “Deus na guerra está do lado de quem sofre”. E do meu ponto de
vista, sofrem os ucranianos sobre quem se abate a feroz onda de destruição,
morte e fuga; sofre o povo russo que, por decisão do poder político, é obrigado
a fazer a guerra contra um povo irmão e com idiossincrasia igual ou similar; e
sofre o mundo pela carestia que o assola.
Em
entrevista à susodita jornalista Ioan Sauca esclarece que “a decisão de suspender uma Igreja membro
do CMI não é da autoridade do secretário-geral, mas do Comité Central”, o corpo
governante. De facto, a Constituição do CMI define as condições para a
suspensão na Regra I, 6:
“O Comité Central pode suspender a membresia
de uma igreja: a pedido da igreja; porque o fundamento teológico ou os
critérios de membresia não foram mantidos por aquela igreja ou; porque a
igreja tem teimosamente negligenciado as suas responsabilidades de
membresia. Esta decisão é tomada pelo Comité Central do CMI somente após
sério discernimento, audiências, visitas e diálogos com as igrejas envolvidas e
discussões.”.
O CMI já tratou de casos semelhantes. O mais conhecido é o da
Igreja Reformada Holandesa na África do Sul, que apoiou, mesmo teologicamente,
o apartheid, o que deu azo a fortes debates
e condenações de outras igrejas membros do CMI. Mas acabou por ser ela a autoexcluir-se
por sentir que não podia pertencer-lhe. Assim, não foi o CMI que a
suspendeu ou excluiu. Entretanto, foi readmitida.
Outros
casos, muito mais recentes, ocorreram em 1991, na Assembleia de Camberra, em
que a Guerra do Golfo se tornou um dos assuntos mais polémicos, tendo a grande maioria
das delegações concordado em afirmar inequivocamente que a guerra “não é santa
nem justa”. Mas houve oposição ao apelo por um cessar-fogo imediato e
incondicional que veio principalmente das igrejas americanas e da Igreja da
Inglaterra. Foram colocadas questões teológicas sobre as igrejas que defendiam
a guerra. A questão nevrálgica era se “igrejas que defendem abertamente
uma guerra podem ser membros da nossa comunhão”. E alguns pediram que
fossem excluídos. Mais uma vez, o CMI não decidiu excluir essas igrejas no
mais forte desejo de continuar o diálogo. A frase mais citada em Camberra
foi a do secretário-geral do Conselho de Igrejas do Oriente Médio. E a
abordagem espiritual prevaleceu. A frase mais citada em Canberra foi a do secretário-geral
do Conselho de Igrejas do Oriente Médio. De facto, quando instado a dizer de que lado da guerra está Deus, a resposta foi:
“Deus está do lado dos que sofrem”. E a abordagem
espiritual prevaleceu.
Na guerra da
Iugoslávia houve forte pressão para suspender a Igreja Ortodoxa Sérvia. De
início, o Patriarca Pavle apoiara líderes políticos e a maioria das pessoas que
viam a guerra como forma legítima de defender a identidade
nacional. Todavia, ao perceber que havia cometido erros na arena política,
desculpou-se publicamente. Assumiu o risco de participar em grandes
protestos antigovernamentais em Belgrado e ousou declarar:
“Se uma Grande Sérvia fosse estabelecida cometendo um crime, eu nunca o
aceitaria. (…) Podemos desaparecer, mas desapareceremos como seres
humanos. E de qualquer forma não vamos desaparecer porque estaremos vivos
nas mãos do Deus vivo.”.
Assim, o
testemunho dum “pastor exemplar”, dum “homem santo de Deus” foi corajoso em torno dos valores da fé cristã
numa situação difícil que podia servir de guia para o discernimento hoje.
O Padre Ioan Sauca não prevê qual será a decisão do Comité Central quando
reunir em junho próximo, mas acredita que será uma das questões mais quentes na mesa.
Confessa que
sofre especialmente como padre ortodoxo. Na verdade, os eventos trágicos,
o grande sofrimento, morte e destruição contradizem a teologia e espiritualidade
ortodoxas. E,como secretário-geral interno do CMI condenou a agressão
russa à Ucrânia, em apoio da declaração do metropolita Onufry que a chamou de “guerra
fratricida”, escreveu a Kirill e ligou aos dois presidentes para que
parassem a guerra. E uma delegação do CMI visitou as fronteiras da Ucrânia da
Hungria e da Roménia para encontrar os refugiados.
Ante o que
se passa de dramático, o sacerdote ortodoxo diz que “todos nos sentimos sem
esperança, com raiva, frustrados, desapontados e, humana e emocionalmente,
tendemos a tomar decisões imediatas e radicais”. Porém, sabe que nos foi
confiado como seguidores de Cristo o ministério da reconciliação, pelo que o
tema da próxima Assembleia do CMI lembra a todos que o amor de Cristo impele o
mundo todo à reconciliação e à unidade. E explicita o seu pensar:
“Seria muito fácil usar a linguagem
dos políticos, mas somos chamados a usar a linguagem da fé, da nossa fé. É fácil excluir, excomungar,
demonizar; mas somos chamados como CMI a ser uma plataforma de encontro,
diálogo e escuta mesmo se e quando discordamos. Isso sempre foi o CMI e eu
sofreria muito se essa vocação se perdesse e a natureza do CMI mudasse.”.
Questionado sobre como pode o CMI pode cumprir a sua missão enquanto uma
guerra fratricida está em curso, responde que acredita na força do diálogo e do
processo de reconciliação, pois “a paz imposta
não é paz” e “uma paz duradoura deve ser uma paz justa”. Mais sustenta que
“a guerra não pode ser justa ou santa”, pois “matar é matar”, sendo que “isso
deve ser evitado através do diálogo e da negociação, ouvindo primeiro a vítima
e depois o agressor”. E acredita que o
autor do crime pode ser transformado pelo poder do diálogo e por obra da graça
de Deus, responsabilizando-se pelas faltas, reparando os danos e avançando na
via da paz justa. Parecerá idealista e utópico frente a “sinais óbvios
de crimes de guerra”, mas as Sagradas Escrituras e a história dão muitos
exemplos desse tipo.
A concluir a
resposta a esta questão, o sacerdote não deixará de se manifestar contra
qualquer agressão, invasão ou guerra, continuará profético e fará tudo
para que o CMI seja fiel à sua missão, a de manter aberta a mesa do diálogo, pois,
“se excluirmos aqueles de quem não
gostamos ou de quem discordamos”, será de questionar “com quem falaremos, como
podemos avançar para a reconciliação e uma paz duradoura e justa”.
Sobre o conflito contínuo entre as Igrejas Ortodoxas, o atual líder do
CMI diz que esta organização procura
encorajar as suas igrejas a abordarem sempre os seus desacordos e divisões pela
oração mútua, diálogo teológico e trabalho conjunto. E, embora o CMI não
tenha autoridade legal sobre as suas igrejas, cria espaços ecuménicos em que se
pode abordar o que separa. Os vários espaços ecuménicos criados na história
pelo Concílio Ecuménico de Igrejas ajudaram a construir pontes e confiança
entre as Igrejas Ortodoxas que estavam isoladas por circunstâncias históricas.
Não concorda
o Padre Sauca com os que falam da morte do ecumenismo devido à incapacidade de
algumas igrejas ortodoxas falarem umas com as outras. E afirma que a
família ortodoxa não é a primeira e a única que enfrenta tensões e divisões
internas e que desentendimentos entre igrejas,
por mais graves que sejam, não matarão o movimento ecuménico. A busca
da unidade cristã nasce da confissão de que a Igreja é una, apesar das divisões
humanas. Estamos comprometidos com o movimento ecuménico não por estar a
produzir muitos resultados, mas por ser um imperativo evangélico. E, para
concretizar este desiderato, ressalta a relevância dum órgão como o CMI, um
espaço livre que reúne igrejas de todo o mundo para dialogarem e encontrarem a
amizade juntas.
***
As posições críticas da atuação do Patriarca de
Moscovo têm vindo a multiplicar-se nas últimas semanas. Porém, uma das mais
contundentes, lançada nos últimos dias, vem de mais de 300 padres da Igreja
Ortodoxa da Ucrânia dependente do Patriarcado de Kirill e faz graves acusações
ao titular do cargo, exigindo que seja apeado da posição que ocupa.
Numa
petição dirigida,
no dia 10, ao Conselho dos Patriarcas Orientais, aqueles membros do clero
acusam Kirill de crimes morais, por abençoar as tropas russas e a invasão da
Ucrânia, e de heresia, por pregar a ideologia do “Mundo Russo”. Por estas razões,
instam os altos responsáveis das Igrejas ortodoxas a submetê-lo a um tribunal
eclesiástico internacional.
A ideologia do “Mundo Russo”, denunciada na tomada
de posição e considerada “não ortodoxa” e herética por uma recente declaração
de teólogos daquela confissão cristã, afirma que russos, ucranianos e
bielorrussos são um único povo e uma única Igreja.
Os subscritores da petição vincam os esforços do
metropolita Onufriy de Kiev para levar Kirill a condenar a guerra, mas o
fracasso de tais diligências resultou em “indignação em massa entre clérigos e
fiéis”. O texto denuncia Kirill, que reivindica para si um rebanho de fiéis que
abarca a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia e “abençoa diretamente a destruição
física do seu rebanho pelas tropas russas”. No texto é ainda sugerido que o Patriarca
de Moscovo está a chamar clérigos para animar e “reunir tropas russas
desmoralizadas”.
Os clérigos insurgentes afirmam que, por imperativo
de consciência, não podem “continuar com qualquer forma de subordinação
canónica ao Patriarca de Moscovo”.
Como
explana o site da revista católica britânica “The Tablet”, o
Conselho dos Patriarcas Orientais a quem a petição é dirigida é “o órgão
histórico que considera as alegações contra os dignitários da Igreja Ortodoxa”
e “é composto pelos chefes das Igrejas autocéfalas que compõem a comunhão
ortodoxa”.
O próprio Vaticano sentiu, sem a explorar, a sua
desilusão pela tomada de posição de Kirill em prol da guerra e a marca
religiosa que lhe imprime na fundamentação. E o pedido a Kirill que inste o
Presidente russo à trégua pascal com cessar-fogo imediato não terá acolhimento.
Enfim, vamos aguardando com esperança o
desenrolar dos acontecimentos, mas excluir ou ostracizar ou classificar de
herege nada resolve. Estamos já bem longe do Concílio de Trento!
2022.04.13 – Louro de Carvalho
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