sexta-feira, 15 de abril de 2022

A Igreja como a “pátria dos afetos”

 

Foi Dom Manuel Linda quem, na homilia da Missa Vespertina da Ceia do Senhor, em Quinta-feira Santa, disse que o gesto do lava-pés “supõe delicadeza”. E, a propósito, declarou que a “Igreja, nos seus ministros e em todos os seus fiéis” deve tornar-se na “pátria dos afetos”.

Apelando ao cultivo de uma “fé atraente e apetecível”, o Bispo do Porto observou que a fé é “uma dádiva” e “um serviço” que deve ser “feito na simpatia e na ternura”.

Foi um gesto de Jesus para com os discípulos e que pode ser replicado liturgicamente nesta ocasião. E também Dom Manuel Linda o executou na celebração na Catedral explicando:  

Lavar supõe delicadeza, um toque de sensibilidade, um afago e uma certa doçura de atitudes, pois não se lava da mesma forma que se amanha uma pedra ou se abre um túnel à base de dinamite. A prática do serviço, portanto, há de ser a marca dos cristãos. Mas sempre e só na nobreza dos melhores afetos.”.

Por conseguinte, o prelado portuense aproveitou o ensejo para uma nota eclesiológica declarando que a “Igreja, nos seus ministros e em todos os seus fiéis” deve tornar-se na “pátria dos afetos”.

Referindo que o gesto de lavar os pés “não é de fácil compreensão”, mencionou que o próprio Jesus quis interrogar os seus discípulos perguntando-lhes: “Compreendeis o que vos fiz?.

É óbvio que Jesus não ia deixar o momento sem instruir os membros do seu colégio sem lhes segredar o significado desta sua atitude emblemática:

Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também.” (Jo 13,14-15).  

Lavar os pés é símbolo e sinónimo de “servir”. E Dom Manuel Linda, retirando uma conclusão para a prática da vida da Igreja, frisou que, se “tornamos a fé atraente e apetecível”, talvez “resolvamos mesmo a problemática vocacional”; e disse que “a falta de padres também terá a ver com a dificuldade de serem apenas alguns a servir quando a grande maioria não serve, mas apenas se serve”.

Para o Bispo do Porto, lavar os pés, ou seja, servir e deixar que nos sirvam, é “uma atitude que deve ser fundamentalmente do coração”, “chocante para a mentalidade daquele tempo e não menos para o nosso”. E “pertence a Deus e ao seu Reino aquele que, envolvido no seu amor, sabe servir os outros e o mundo a partir de atos concretos modelados pela ternura e pela amabilidade”.

Efetivamente, a Igreja, sendo a pátria do serviço, é a pátria do coração, a pátria dos afetos.

***

Também o Arcebispo de Braga, na homilia em celebração análoga na Catedral primacial, glosou o tema do lava-pés.  

Começando por anotar que a narrativa da última ceia ligada ao lava-pés apenas se encontra no Evangelho de João, esclareceu que o contexto da ceia e o destaque para o exemplo de humildade e de amor serviçal dado por Jesus nos reenvia para o evangelho de Lucas e para a exortação do próprio Jesus acerca do poder e do serviço (cf Lc 22, 24-27). E João atribui expressamente ao lava-pés realizado por Jesus o significado da humildade que os discípulos devem praticar imitando o Senhor (cf Jo 15,12.13), não esquecendo que o fundamento de tudo é o amor: “Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo” e mais claramente a seguir Jesus deixa o mandamento novo: “é este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei(Jo 15,12).

De facto, como diz o Arcebispo, “Jesus é mestre no servir e interpela-nos a fazer o mesmo”. E aqui cita José A. Mourão:

Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra.”.

Dom José Cordeiro articula, neste âmbito, o sacerdócio batismal de todos os fiéis e o ministério sacerdotal ao considerar “a passagem evangélica do lava-pés, que continua o lugar onde Jesus revela o Seu amor total de eterna vida”. Com efeito, “para Jesus, a única autoridade é o serviço”. E nós, que somos “servos inúteis a tempo inteiro(aqui cita D. Tonino Bello), não devemos querer sê-lo “em part-time”.

E o prelado bracarense – tendo escolhido 12 jovens a quem lavou os pés (porque eles não são apenas o futuro da Igreja – o que parece remetê-los para um amanhã muito distante), mas são já o seu presente: eles já precisam da Igreja e a Igreja já precisa deles – fez uma listagem de quem são hoje os lavadores dos pés. Transcrevo-a pela sua verdade e pertinência:  

“– Os que acompanham os jovens e os pobres;

 Os bons cuidadores dos idosos;

 Os que de máscara, luvas, bata e outros equipamentos materiais e espirituais combatem o mal comum da pandemia covid-19 e todos os males com o bem comum do seu serviço, profissionalismo, inteligência, coragem e confiança;

 Os médicos, os enfermeiros e todos os que laboram na saúde;

 Os voluntários e todos os cuidadores junto das famílias e das pessoas sós e mais vulneráveis;

 Os que trabalham nos hospitais, nos lares de idosos, nos laboratórios, nos múltiplos serviços do funcionamento da sociedade;

 Os artesãos da paz e da reconciliação;

 Os pastores e os consagrados que estão com o povo santo fiel de Deus;

 As autoridades civis e da saúde que servem ao bem comum;

 Os que rezam e no serviço silencioso praticam o dom da caridade;

 Os que praticam as obras de misericórdia em favor de todos e sobretudo dos pobres da nossa cidade e Arquidiocese;

 As pessoas e as instituições que são conforto para os migrantes e refugiados da guerra;

 – Todos os que arriscam dar a vida por amor.”.

Porém, não podemos esquecer que tudo deriva da “Eucaristia, dom para amar até ao fim do fim”.

Na verdade, a Igreja hauriu de Cristo a Eucaristia como o dom por excelência, porque “é dom d’Ele mesmo e, por isso, é verdadeiramente o mistério da fé e o sacramento do mistério da Páscoa”. Em Paulo (cf Ef 1,4-12; 3,1-13), o mistério de Cristo coincide com o plano divino da salvação, cujo fulcro é o Mistério Pascal. Assim, a mesa de peregrinos leva-nos ao banquete do Reino: “felizes os convidados para a ceia do Senhor”. Em cada celebração da Eucaristia, somos alimentados pelo Corpo de Cristo e manifesta-se a unidade do Povo de Deus.

A Igreja não vive de si mesma, mas da Eucaristia, que gera a comunhão. O sentido originário é, como diz santo Ambrósio: “Beijamos a Cristo com o ósculo da comunhão... Não se trata do ósculo dos lábios, mas do coração e da alma.”. Mas a fonte do dom do amor é a Trindade. Nós o rezamos na Oração Eucarística II: “Tu, Senhor, és verdadeiramente santo, és a fonte de toda a santidade”. A liturgia narra, num espaço celebrativo concreto, o espaço prometido. “O espaço, o tempo, o corpo, os gestos e as palavras traduzem a santidade de Deus no aqui e agora da história e chamam-nos à comunhão possível até que um dia seja plena” – diz o Arcebispo Primaz que, entende o “dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também(Jo 13,15) como “a vida que nasce da Eucaristia, dom da caridade e mistério de vida eterna”. 

***

Por sua vez, o Papa foi a uma prisão em Civitavecchia, no litoral romano e realizou o rito do lava-pés a 12 reclusos – 9 homens e 3 mulheres – de diferentes idades e nacionalidades. E proferiu a homilia sem um texto pré-escrito falando da “simplicidade” do gesto de Jesus: “Que belo seria se isso pudesse ser feito todos os dias e a todas as pessoas” – disse.

Além de alguns reclusos, havia uma representação dos agentes e funcionários e algumas autoridades, incluindo a Ministra da Justiça da Itália, Marta Cartabia.

A par da simplicidade do gesto do lava-pés, Francisco observou que esse era “uma coisa estranha” neste mundo: “Jesus lava os pés do traidor, aquele que o vende”. E acrescentou:

Jesus ensina-nos isto, simplesmente: vós deveis lavar os pés uns aos outros [...] um serve o outro, sem interesse: como seria belo se fosse possível fazer isto todos os dias e a todas as pessoas.”.

O Pontífice lamentou que muitos dos nossos gestos sejam realizados por interesse, quando “é importante fazer tudo sem interesse: um serve o outro, um é irmão do outro, um ajuda o outro, um corrige o outro e assim deveria ser feito”.

E, frisando que Jesus ao traidor, o chama de “amigo” e o espera até ao fim: perdoa tudo, vincou:

Isso gostaria de colocar hoje no coração de todos nós, inclusive do meu: Deus perdoa tudo e Deus perdoa sempre! Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Ele nos pede somente a nossa confiança.”.

Cada um de nós, disse ainda Francisco, “tem algo que está nos nossos corações há muito tempo, mas solicitai o perdão a Jesus”. E sugeriu uma pequena oração: “Senhor, perdoa-me. Eu tentarei servir os outros, mas Tu serves-me a mim com o teu perdão.”.

O Papa concluiu anunciando que ia repetir o gesto feito por Jesus:

Eu o farei de coração, porque nós sacerdotes deveríamos ser os primeiros a servir os outros, não explorar os outros. O clericalismo às vezes leva-nos para este caminho. Mas devemos servir.”.

E vincou: “há um Senhor que julga, mas com um julgamento estranho: o Senhor julga e perdoa”.

Enfim, a Igreja do amor, do coração, do serviço terno, afável e sem esperar recompensa há de ser nos seus membros e, em especial, nos seus ministros, a pátria dos afetos, radicada na Eucaristia, dom de Deus Pai, por Cristo, no Espírito Santo, e convocada para gerar comunhão.

2022.04.15 – Louro de Carvalho

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