Foi Dom Manuel Linda quem, na homilia da Missa Vespertina da Ceia do
Senhor, em Quinta-feira Santa, disse que o gesto do lava-pés “supõe
delicadeza”. E, a propósito, declarou que a “Igreja, nos seus ministros e em
todos os seus fiéis” deve tornar-se na “pátria dos afetos”.
Apelando ao cultivo de uma “fé atraente e apetecível”, o Bispo do Porto
observou que a fé é “uma dádiva” e “um serviço” que deve ser
“feito na simpatia e na ternura”.
Foi um gesto de Jesus para com os discípulos e que pode ser replicado
liturgicamente nesta ocasião. E também Dom Manuel Linda o executou na celebração
na Catedral explicando:
“Lavar supõe delicadeza, um toque de
sensibilidade, um afago e uma certa doçura de atitudes, pois não se lava da
mesma forma que se amanha uma pedra ou se abre um túnel à base de dinamite. A
prática do serviço, portanto, há de ser a marca dos cristãos. Mas sempre e só
na nobreza dos melhores afetos.”.
Por conseguinte,
o prelado portuense aproveitou o ensejo para uma nota eclesiológica declarando que
a “Igreja, nos seus ministros e em todos os seus fiéis” deve tornar-se na “pátria
dos afetos”.
Referindo que o gesto de lavar os pés “não é de fácil
compreensão”, mencionou que o próprio Jesus quis interrogar os seus discípulos
perguntando-lhes: “Compreendeis o que vos
fiz?”.
É óbvio que Jesus não ia deixar o momento
sem instruir os membros do seu colégio sem lhes segredar o significado desta
sua atitude emblemática:
“Se
Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés
uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais
também.” (Jo 13,14-15).
Lavar os pés
é símbolo e sinónimo de “servir”. E Dom Manuel Linda, retirando uma conclusão para a prática da vida da Igreja, frisou que, se “tornamos a
fé atraente e apetecível”, talvez “resolvamos mesmo a problemática vocacional”;
e disse que “a falta de padres também terá a ver com a dificuldade de serem
apenas alguns a servir quando a grande maioria não serve, mas apenas se serve”.
Para o Bispo do Porto, lavar os pés, ou seja, servir e deixar
que nos sirvam, é “uma atitude que deve ser fundamentalmente do coração”,
“chocante para a mentalidade daquele tempo e não menos para o nosso”. E “pertence
a Deus e ao seu Reino aquele que, envolvido no seu amor, sabe servir os outros
e o mundo a partir de atos concretos modelados pela ternura e pela amabilidade”.
Efetivamente, a Igreja, sendo a pátria do serviço, é a pátria
do coração, a pátria dos afetos.
***
Também o Arcebispo de Braga, na homilia
em celebração análoga na Catedral primacial, glosou o tema do lava-pés.
Começando por anotar que a narrativa da última ceia ligada ao
lava-pés apenas se encontra no Evangelho de João, esclareceu que o contexto da ceia
e o destaque para o exemplo de humildade e de amor serviçal dado por Jesus nos
reenvia para o evangelho de Lucas e para a exortação do próprio Jesus acerca do
poder e do serviço (cf Lc
22, 24-27). E João atribui expressamente ao
lava-pés realizado por Jesus o significado da humildade que os discípulos devem
praticar imitando o Senhor (cf Jo 15,12.13),
não esquecendo que o fundamento de tudo é o amor: “Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles
até ao extremo” e mais claramente a seguir Jesus deixa o mandamento novo: “é este o meu mandamento: que vos ameis uns
aos outros como Eu vos amei” (Jo 15,12).
De facto,
como diz o Arcebispo, “Jesus é mestre no servir e interpela-nos a fazer o mesmo”.
E aqui cita José A. Mourão:
“Jesus
não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu
ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra
faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra.”.
Dom José
Cordeiro articula, neste âmbito, o sacerdócio batismal de todos os fiéis e o ministério
sacerdotal ao considerar “a passagem evangélica do lava-pés, que continua o
lugar onde Jesus revela o Seu amor total de eterna vida”. Com efeito, “para Jesus, a única autoridade é o serviço”.
E nós, que somos “servos inúteis a tempo
inteiro” (aqui cita D.
Tonino Bello), não devemos
querer sê-lo “em part-time”.
E o prelado
bracarense – tendo escolhido 12 jovens a quem lavou os pés (porque eles não são apenas o futuro da
Igreja – o que parece remetê-los para um amanhã muito distante), mas são já o seu presente: eles já
precisam da Igreja e a Igreja já precisa deles – fez uma listagem de quem são
hoje os lavadores dos pés. Transcrevo-a pela sua verdade e pertinência:
“– Os que acompanham os jovens e os pobres;
– Os
bons cuidadores dos idosos;
– Os
que de máscara, luvas, bata e outros equipamentos materiais e espirituais
combatem o mal comum da pandemia covid-19 e todos os males com o bem comum do
seu serviço, profissionalismo, inteligência, coragem e confiança;
– Os
médicos, os enfermeiros e todos os que laboram na saúde;
– Os
voluntários e todos os cuidadores junto das famílias e das pessoas sós e mais
vulneráveis;
– Os
que trabalham nos hospitais, nos lares de idosos, nos laboratórios, nos
múltiplos serviços do funcionamento da sociedade;
– Os
artesãos da paz e da reconciliação;
– Os
pastores e os consagrados que estão com o povo santo fiel de Deus;
– As
autoridades civis e da saúde que servem ao bem comum;
– Os
que rezam e no serviço silencioso praticam o dom da caridade;
– Os
que praticam as obras de misericórdia em favor de todos e sobretudo dos pobres
da nossa cidade e Arquidiocese;
– As
pessoas e as instituições que são conforto para os migrantes e refugiados da
guerra;
– Todos os que arriscam dar a vida por amor.”.
Porém, não podemos esquecer que
tudo deriva da “Eucaristia, dom para amar
até ao fim do fim”.
Na verdade, a
Igreja hauriu de Cristo a Eucaristia como o dom por excelência, porque “é dom
d’Ele mesmo e, por isso, é verdadeiramente o mistério da fé e o sacramento do
mistério da Páscoa”. Em Paulo (cf Ef 1,4-12; 3,1-13), o mistério de Cristo coincide com o plano divino da salvação, cujo
fulcro é o Mistério Pascal. Assim, a mesa de peregrinos leva-nos ao banquete do
Reino: “felizes os convidados para a ceia
do Senhor”. Em cada celebração da Eucaristia, somos alimentados pelo Corpo
de Cristo e manifesta-se a unidade do Povo de Deus.
A Igreja não
vive de si mesma, mas da Eucaristia, que gera a comunhão. O sentido originário
é, como diz santo Ambrósio: “Beijamos a
Cristo com o ósculo da comunhão... Não se trata do ósculo dos lábios, mas do
coração e da alma.”. Mas a fonte do dom do amor é a Trindade. Nós o rezamos
na Oração Eucarística II: “Tu, Senhor, és
verdadeiramente santo, és a fonte de toda a santidade”. A liturgia narra,
num espaço celebrativo concreto, o espaço prometido. “O espaço, o tempo, o corpo, os gestos e as palavras traduzem a
santidade de Deus no aqui e agora da história e chamam-nos à comunhão possível
até que um dia seja plena” – diz o Arcebispo Primaz que, entende o “dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu
fiz, vós façais também” (Jo 13,15) como “a vida que nasce da Eucaristia, dom da
caridade e mistério de vida eterna”.
***
Por sua vez,
o Papa foi a uma prisão em Civitavecchia, no litoral romano e realizou o rito
do lava-pés a 12 reclusos – 9 homens e 3 mulheres – de diferentes idades e
nacionalidades. E proferiu a homilia sem um texto pré-escrito falando da “simplicidade”
do gesto de Jesus: “Que belo seria se
isso pudesse ser feito todos os dias e a todas as pessoas” – disse.
Além de
alguns reclusos, havia uma representação dos agentes e funcionários e algumas
autoridades, incluindo a Ministra da Justiça da Itália, Marta Cartabia.
A par da simplicidade
do gesto do lava-pés, Francisco observou que esse era “uma coisa estranha”
neste mundo: “Jesus lava os pés do
traidor, aquele que o vende”. E acrescentou:
“Jesus ensina-nos isto, simplesmente: vós
deveis lavar os pés uns aos outros [...] um serve o outro, sem interesse: como
seria belo se fosse possível fazer isto todos os dias e a todas as pessoas.”.
O Pontífice lamentou
que muitos dos nossos gestos sejam realizados por interesse, quando “é
importante fazer tudo sem interesse: um
serve o outro, um é irmão do outro, um ajuda o outro, um corrige o outro e
assim deveria ser feito”.
E, frisando
que Jesus ao traidor, o chama de “amigo” e o espera até ao fim: perdoa tudo, vincou:
“Isso gostaria de colocar hoje no coração de
todos nós, inclusive do meu: Deus perdoa tudo e Deus
perdoa sempre! Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Ele nos
pede somente a nossa confiança.”.
Cada um de
nós, disse ainda Francisco, “tem algo que está nos nossos corações há muito tempo,
mas solicitai o perdão a Jesus”. E sugeriu uma pequena oração: “Senhor, perdoa-me. Eu tentarei servir os
outros, mas Tu serves-me a mim com o teu perdão.”.
O Papa
concluiu anunciando que ia repetir o gesto feito por Jesus:
“Eu o farei de coração, porque nós
sacerdotes deveríamos ser os primeiros a servir os outros, não explorar os
outros. O clericalismo às vezes leva-nos para este caminho. Mas devemos servir.”.
E vincou: “há um Senhor que julga, mas com um
julgamento estranho: o Senhor julga e perdoa”.
Enfim, a
Igreja do amor, do coração, do serviço terno, afável e sem esperar recompensa
há de ser nos seus membros e, em especial, nos seus ministros, a pátria dos afetos,
radicada na Eucaristia, dom de Deus Pai, por Cristo, no Espírito Santo, e
convocada para gerar comunhão.
2022.04.15 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário