segunda-feira, 25 de abril de 2022

“Rostos dos Evangelhos”

 

Produzido pelo Dicastério para a Comunicação, da Santa Sé, em colaboração com a Biblioteca Apostólica do Vaticano, os Museus Vaticanos e a Rai Cultura, precedido de contribuição de Roberto Benigni refletindo sobre os rostos de Jesus e de Maria e em que o Papa Francisco relata os encontros de Jesus, o programa sob o título assinalado em epígrafe, passou na RaiUNo em horário nobre na noite do passado dia 16 para 17 de abril, noite da Páscoa. A direção e a fotografia são de Renato Cerisola, as músicas originais de Michelangelo Palmacci.

Além duma ampla entrevista gravada para a ocasião, o programa inclui algumas das reflexões que Francisco dedicou nos já nove anos do seu pontificado, nas suas homilias durante a celebração da missa da manhã em Santa Marta (algumas nunca mostradas antes), nas recitações do Angelus e em outras ocasiões, aos protagonistas dos Evangelhos: de Mateus ao Bom Ladrão, de Judas a Maria Madalena, da Adúltera ao Filho Pródigo.

A voz do Papa acompanha o espectador dentro das cenas evangélicas, representadas pelos grandes artistas nas pinturas, afrescos, miniaturas dos códigos e esculturas, muitos das quais são pertença do tesouro de beleza conservado no Vaticano. Cada personagem que encontra Jesus é contada pelo Papa e ilustrada por famosas imagens (mas algumas desconhecidas e inéditas) através das lentes do fotógrafo-diretor sobre as pinturas, afrescos e miniaturas e respetivos pormenores.

Os autores são Andrea Tornielli e Lucio Brunelli, que pensam que o programa dirá algo a crentes e não crentes. E dizem que se trata dum novo formato, que constitui um grande desafio. A ideia, como dizem, nasceu uma noite, enquanto jantavam, como forma de “comunicar o fascínio dos Evangelhos a crentes e não crentes, usando a arte e as habilidades de contar histórias do Papa Francisco”. Estão ambos convencidos de que “algumas das coisas mais belas ditas pelo Papa podem ser encontradas nas homilias ‘a braccio’ (sem texto), pronunciadas na missa em Santa Marta”, as quais “apresentam uma modalidade típica da espiritualidade jesuíta: a de ‘entrar’ nas cenas do Evangelho, descrevê-las, colocar-se no lugar das personagens, estar em cena, sem passar imediatamente à exegese ou ao ensino moral”. O próprio Papa, na aludida entrevista, sublinha “a importância desta contemporaneidade”. De facto, na entrevista que acompanha as histórias de dez personagens dos Evangelhos – diz Tornielli – o Papa considera que “ver” é fundamental na fé – enfim, maravilhar-se e ver. Na verdade, a arte, sobretudo o melhor da arte medieval – muito do que constitui a chamada Biblia Pauperum –, mas não só (vg: certas pinturas de Caravaggio e de Rembrandt) ajuda a entrar nas cenas do Evangelho.

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 “Rostos dos Evangelhos” reflete a maravilha do encontro com Jesus. E o Papa relatou alguns encontros com o Nazareno e descreveu os protagonistas. Registam-se as ideias mais relevantes. 

Regra geral, “o amor não é feito por correio”. E as vezes em que o é são exceções. O amor é contacto contínuo, conversa contínua, escuta. Por isso, é necessário termos um contacto direto com os Evangelhos. Porém, se não temos contacto com o Cristo vivo, o do Evangelho, ficar-se-á pelas ideias, ideologias sobre o Evangelho. Isto é, não contactamos com o Cristo vivo, mas apenas com doutrinas que saem do Cristo vivo, algumas das quais são verdadeiras e outras não. Ora, a redenção não foi feita por doutrinas, mas por uma pessoa. Quem se atém ao conhecimento dos dogmas, mas não contacta com o Evangelho, será católico de cabeça, não de coração. Mas o importante é ser católico, cristão com contacto vivo com Jesus.

A vocação de Mateus, o publicano

O início do programa foi precedido, como se disse, pela participação especial de Roberto Benigni, que falou sobre o rosto alegre de Jesus e descreveu o rosto de Maria como retratado na pintura de Rafael “Nossa Senhora Sistina”, preservada em Dresden (Alemanha).

A seguir, Francisco, depois de introduzir o tema falando sobre a necessidade do contacto contínuo com o Evangelho, apresentou uma das cenas evangélicas que mais o toca, a vocação de Mateus, o cobrador de impostos a quem Jesus dirige o olhar – trecho lido a 21 de setembro de 1953, quando Bergoglio decidiu tornar-se sacerdote. As palavras do Pontífice são ilustradas pelas filmagens de Cerisola, que introduz o espectador na pintura de Caravaggio a retratar a cena. E o Papa, interrogando-se sobre o que sucedeu então, focou-se na força do olhar de Jesus, que olhou para Mateus com tanto amor e misericórdia e o convidou: “Segue-me, vem”. E o chamado, olhando de lado, um olho em Deus e o outro no dinheiro, agarrado ao dinheiro como Caravaggio o pintou e com um olhar surpreso e áspero, em frente de “Jesus, amoroso, misericordioso”, deixou cair a resistência de quem tinha a ambição do dinheiro, levantou-se e seguiu-o.

A importância do "olhar" e do “ver” no Evangelho

Francisco falou do Bom Ladrão. Havia roubado a vida inteira. Mas, no final, arrependido, olhou para “Jesus tão bom e misericordioso” e roubou o céu. É um bom ladrão. E, a par do Bom Ladrão, surge Judas Iscariotes, que também era ladrão, mas acabou mal após a traição: acabou na forca.

Em seguida, o Papa continuou:

Uma das coisas que tanto nos ajudará os Evangelhos é pensar no encontro com Jesus: olhar para Ele para se encontrar com Ele. Ao ler o Evangelho, olhar, ver. Olhos cheios de contemplação. Ver também significa ouvir. Nos exercícios espirituais, quando meditamos as coisas da vida de Jesus, devemos vê-las, ouvi-las. É verdade que a fé vem do ouvir, do escutar, mas o encontro vem do ver.”.

Assim, acontece com Zaqueu, que se preocupou em ver Jesus. Para tanto, subiu à árvore qual profeta curioso. Até Deus – no Antigo Testamento – Se apresenta muitas vezes como Aquele que vê e, por isso, salva o povo fazendo o milagre e desafia: “Lembra-te do que fiz contigo, lembra-te do que viste”. Para o Papa, “ver está muito próximo da memória, e o caminho de crescimento na vida cristã é a memória: a memória das coisas que vimos – e ouvimos também – mas vimos.

A excelsa bondade de José

Francisco falou de modo comovente de José, esposo de Maria, o pai que protegeu a vida de Jesus, aceitando e ajudando a criar o filho que não era seu biologicamente. E, ao focar a consternação de José após a descoberta da gravidez de sua noiva, o Papa observou “a dor de José”, feita de dúvida e sofrimento. Não quer mandar Maria embora e/ou acusá-la publicamente e decide deixá-la em silêncio. Ele conhecia-a e amava-a. Sabia que “é pura”, mas não entendia o que se estava a passar. E, no meio da dúvida e da dor, o Senhor interveio num sonho através do anjo e deu a saber a José o que aconteceu em Maria. E José acreditou e obedeceu. Não foi desabafar com os amigos nem consultou os adivinhos para que lhe interpretassem o sonho. Acreditou e seguiu em frente.

A acompanhar a narrativa há imagens inéditas de miniaturas guardadas na Biblioteca Apostólica.

A profundidade dos olhares de Jesus sobre Pedro

O Papa descreveu os três olhares de Jesus sobre o pescador galileu que O negara, mas depois se arrependeu e ouviu do Nazareno o convite para guiar o rebanho. E recordou o fim do príncipe dos apóstolos: “Depois de toda a sua vida a serviço do Senhor, terminou na cruz como o Senhor”. Porém, não se gabou a dizer que terminava como o seu Senhor, antes pediu que o colocassem na cruz com a cabeça para baixo, para que pelo menos se veja que não era o Senhor, mas o servo.

E surge a figura de Pôncio Pilatos, ilustrada por esculturas de mármore dos Museus Vaticanos.

A importância das mulheres, a que não se tem dado relevância 

O Pontifice explicou a importância das mulheres no Evangelho. Tudo começa com uma mulher: uma mulher muito jovem em Nazaré que tem a visão dum anjo. Sim, para surgir o Deus feito homem, é uma mulher, Maria, que abre a porta e diz que aceita.

E, no quadro da ressurreição, é uma mulher, outrora pecadora, que foi eleita para dar a notícia: “Ele ressuscitou”. Os apóstolos não acreditaram nas mulheres e resolveram ir ao túmulo para ver como estão as coisas. E os discípulos de Emaús dizem que algumas mulheres vieram dizer que não havia corpo no sepulcro, que Ele havia ressuscitado, que havia anjos a dar esse testemunho, mas que ninguém O tinha visto a Ele. E diz o Papa que a fobia em relação às mulheres, que muitas vezes temos, é curiosa: parece que eram seres humanos de segunda categoria. Mas o Senhor também Se revelou às mulheres, através das mulheres, e também na Bíblia... Não se compreende Jesus sem uma mulher, isto é, sua Mãe.

Maria Madalena e a Adúltera

De Maria Madalena, Francisco disse que “encontramos aquela que, segundo os Evangelhos, viu primeiro Jesus ressuscitado”. Jesus chama-a pelo seu nome “Maria” e ela reconhece-O. Assim, “com a bagagem de desilusões e derrotas que cada um de nós carrega no coração”, ficamos a sentir que “existe um Deus próximo de nós que nos chama pelo nome e diz: ‘Levanta-te, para de chorar, porque Eu vim libertar-te’!”. Sobre a adúltera, o Papa, depois de descrever a cena e a armadilha inerentes à pergunta dos escribas a Jesus, concluiu que, “no final, permanecem somente Jesus e a mulher ali: permanecem a miséria e a misericórdia, como diz Santo Agostinho”. E Jesus despediu a mulher com estas maravilhosas palavras: “Vai e de agora em diante não peques mais”.

A encantadora surpresa do encontro

Francisco observou que “a finalidade da Palavra de Deus é o encontro”. Na verdade, quando encontramos o Senhor na sua Palavra, há o encanto. A sua Palavra não é como a palavra humana que muitas vezes, em lugar do encontro e do encanto, provoca divisão, separação, desilusão.

Ora, se lermos o Evangelho só intelectualmente como coisa histórica, não sentiremos a maravilha, o encanto. O encanto é o cheiro pelo qual se Deus a passar. É isso que Ele nos deixa. Jesus está presente nos Evangelhos. É por isso que não podem ser lidos como um romance ou uma coleção de contos de fadas. E não há remédio químico ou orgânico para sentir o encanto. Basta pegar no Evangelho com simplicidade e amor e Deus surpreender-nos-á.

O Evangelho todo em duas parábolas

Os dois últimos episódios breves do programa foram dedicados a duas parábolas comoventes contadas por Jesus. Diz o Papa que lhe causa sempre grande impressão reler a parábola do Pai misericordioso, porque lhe dá sempre “uma grande esperança”. O filho mais novo, que estava na casa do Pai, era amado, mas quer a sua parte da herança, vai embora, gasta tudo, chega ao nível mais baixo, mais longe do Pai. Mas, quando bate no fundo, sente saudade do calor da casa paterna e retorna. E o Pai, que nunca esquecera o filho, está lá, espera-o todos os dias, todos os momentos. O filho está sempre no coração do pai como um filho, mesmo que o tenha deixado e tenha desperdiçado toda a sua riqueza. E o pai, assim que vê o filho ainda longe, corre ao seu encontro e abraça-o com ternura. É a ternura de Deus, sem uma palavra de reprovação, porque “ele voltou”. E essa é a alegria de pai.

E o Pontífice evoca a parábola do Bom Samaritano, lembrando que “alguns teólogos antigos disseram que nesta passagem está todo o Evangelho”. Efetivamente cada um de nós é o homem ali, ferido, e o Samaritano é Jesus. Por outro lado, Jesus quer que seja cada um de nós o bom samaritano que socorra sem demora quem está estatelado no chão e implique todas as pessoas que forem necessárias para a recuperação total do sinistrado. O episódio dedicado ao Bom Samaritano conclui-se com a imagem da estátua do Bom Pastor (que transporta ao ombro a ovelha que estava perdida), presente nos Museus Vaticanos.

A graça de sentir-se atraído por Jesus e a força para o anúncio

O programa termina com a resposta do Papa à questão do porquê de a figura de Jesus e a história dos Evangelhos sempre fascinarem os que não creem, mesmo os distantes. E a resposta é: “Porque Ele é o Senhor”, não uma personagem. Saber que “é o Senhor” é, para nós uma graça de vida, como o é mostrar essa mensagem que Ele nos veio trazer. É importante ver e ouvir Jesus e, por esta razão, sentir-se atraído pela sua pessoa. É uma graça ver, contemplar e sentir a atração por Ele para O podermos anunciar de forma clara e respeitosa. E torna-se imperativo fazer como as mulheres na manhã da Ressurreição: ver, ouvir e correr a anunciar a Boa Notícia!

2022.04.24 – Louro de Carvalho

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