segunda-feira, 4 de abril de 2022

O protagonismo de estranha legitimidade do Presidente da República

 

Ângela Silva, jornalista do “Expresso”, viu na intervenção de Marcelo na tomada de posse do XXIII Governo Constitucional o discurso ‘ad hominem’ que António Costa dispensava ouvir. O Presidente deixou vários desafios ao Governo e um aviso direto ao Primeiro-Ministro em discurso que faz lembrar o de Sampaio na posse do XVI Governo Constitucional, liderado por Santana Lopes. Sampaio prometera especial atenção ao desempenho do Governo nas áreas económica, financeira e da justiça; agora Marcelo desfia exigências e metas, avisa que a maioria absoluta “não tem desculpas nem alibis” e pede reformas no SNS, economia, justiça e sistema eleitoral.

Sublinhando que, em democracia, nunca o poder pode ser absoluto, nem ditadura da maioria e que “é muito e é exigente” aquilo que tem de ser feito, o Presidente dividiu o caderno de encargos em coisas “urgentes” e coisas “profundas”. E explicou: urgente é “a segurança, a estabilidade, a unidade no essencial, a concentração no que é decisivo e não haver tensões secundárias”, num contexto em que “saibamos tirar as lições destes dois anos”, pois “não somos uma ilha” – e uma pandemia ou uma guerra mudam tudo; e coisas “profundas” são reformar (depressa e bem) o SNS, apostar muito mais no crescimento sólido e duradouro do país, ter uma “estratégia global para combater as desigualdades” e promover “uma melhor Justiça, a exigir passos mais vigorosos”.

Marcelo pediu “que se acautele o que sobra da pandemia e o que venha de gripe com vacinação a tempo” e que tudo se faça “para ir protegendo os custos dos bens essenciais” para evitar passar da pandemia da saúde para a da inflação. E, sobre os fundos europeus, disse ser necessário “garantir que avançam depressa no tempo para aliviar perdas vividas” e para que “algo muito diferente possa ficar”, sempre com a preocupação de acautelar a justiça social e que quem é filho ou neto de pobre ou de gente do interior” não estará condenado a ser diferente.

“São muitas missões em tão pouco tempo”, observou o Presidente que, pela sua parte, continuará a zelar “pela estabilidade e pelo compromisso”, a “abrir espaço de afirmação às oposições”, a “vigiar deslumbramentos, adiamentos e autocontemplações, para não ter que intervir a posteriori” e, “se necessário, avançar para decisões mais arriscadas ou ingratas, sem hesitações ou inibições”. E, antecipando que “vão ser 4 anos de aventura”, quer “humildade, desapego pessoal, resistência física e psicológica, acerto nos recursos humanos, transparência nos propósitos, espírito reformista” e (virando-se para Costa sorri), “se for possível, otimismo, sempre”. Costa reagiu rindo-se.

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Porém, a pessoalização do discurso consistiu no recado presidencial ao Primeiro-Ministro no sentido de que quem anda a personalizar votos e ganha não pode sair a meio do mandato, pois o povo que lhe deu a maioria absoluta espera que ele cumpra até ao fim. Por um lado, o Presidente, contrariando a ideia do sistema de que os eleitores elegem os deputados para o Parlamento, de que emana o governo sob as condições definidas constitucionalmente (nomeação presidencial, ouvidos os partidos com assento parlamentar e tendo em conta os resultados eleitorais), legitimou indevidamente a ideia corrente de que o eleitorado elege o Primeiro-Ministro; por outro, deu como credível o rumor de que António Costa admitia trocar o Governo em 2024 por um lugar cimeiro em Bruxelas e tratou de lhe condicionar o futuro em público. Ora, quer vá Costa quer fique, a imagem que Marcelo lhe pôs na fronte é a do político que, tendo personalizado uma campanha eleitoral para vencer as eleições, admitiu abandonar o barco a meio. E Marcelo foi bem explícito ao dizer: “Sabe que já não era fácil (sair a meio), mas tornou-se mais difícil”. Referia-se à guerra na Europa.

Nestes termos, ficou algo obnubilado o balizamento governativo que o Presidente pôs ao novo Governo, quer no atinente à situação internacional, com críticas ao ocidente por tudo “o que não sabíamos”, mas “alguns sabiam”, quer no concernente às exigências que pôs à maioria socialista (tem condições excecionais para, sem desculpas ou álibis, fazer o que tem de ser feito).

Nos anos que se seguem, ou António Costa desiste do sonho europeu e se dedica com afinco ao caderno de encargos que o Presidente elaborou, ou teima no que Marcelo disse “não ser fácil” e arranja um problema a quem lhe suceder, que desembocará em eleições antecipadas. Aliás, o Presidente deixou-o entreler ao admitir que, “se necessário”, não hesitará em “avançar para decisões mais arriscadas ou ingratas”, como recordou tê-lo feito ao convocar as últimas legislativas e ao decretar vários estados de emergência.

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O Presidente da República tinha anunciado que quer apostar mais na política externa e dedicou parte do discurso ao novo contexto internacional. Neste sentido, frisou que “de repente todos descobrimos como tínhamos mudado”, para explicar como não só “não foi de repente” como tudo o que parecia que “não sabíamos”, afinal muitos “sabiam”, designadamente que a Rússia não tinha desistido, pois “ninguém gosta de passar de potência mundial a potência regional”, e que os mais poderosos países europeus apostavam nas cumplicidades económicas com Moscovo “para moderar e condicionar a visão russa”. Por isso, o Chefe de Estado antecipa um novo status quo geoestratégico e uma imprevisibilidade económica, não se sabe se por meses ou anos, e avisa que, “se demorar a paz, pode ser desolador o panorama do crescimento, a exigir correções das expectativas pensadas para o mundo antes da guerra”.

O Primeiro-Ministro, sem fugir à questão das dificuldades que a guerra cria (“acrescenta um enormíssimo fator de incerteza”), apontou à necessidade de manter os objetivos traçados de antes do conflito. Para Costa, é preciso esperar para ver se é possível voltar a um status quo de geopolítica que ajude a estabilizar a situação económica e a recuperar alguma normalidade com o bloco Moscovo-Pequim. Com o poder de compra em perda (5,2% de inflação em março), o Chefe do Governo joga na pressão para decisões europeias e guarda os maiores gastos para o OE de 2023, à espera de que até lá venha a paz.

Sobre o tema do cumprimento do mandato, a várias vozes foi dito que está tomada a decisão. “Para o Primeiro-ministro, é óbvio desde 30 de janeiro que não será candidato a qualquer cargo europeu em 2024” – vincou fonte próxima de Costa, tal como Vieira da Silva e Catarina Mendes. Porém, se Marcelo deixou o ultimato no dia da posse do Governo, Costa registou com satisfação o modo como o fez: ter-lhe atribuído uma legitimidade que até agora só o Presidente tinha: a de ter sido eleito pessoal e diretamente pelos portugueses.

Assim, ao invés do que preconizam alguns observadores, Costa estará não só disposto a cumprir o mandato integralmente como está disponível a assumir esse compromisso perante o país. Fará, assim, três mandatos e mais de 10 anos como chefe de Governo, evitando a ameaça que Marcelo fez pairar sobre a legislatura: se Costa rumasse a um cargo europeu, não aceitaria deixar o poder a outro socialista, convocaria eleições – um problema para o PS, obrigado a fazer uma sucessão e a ir a eleições logo a seguir. Por outro lado, Costa pode não ter descartado de todo uma ambição europeia. O compromisso terá validade até 2026, mas não para depois, ao que se junta o sinal de ter congregado no Governo todos os potenciais candidatos à liderança do partido.

António Costa, que tinha, de facto, a ambição de seguir a carreira política em Bruxelas, poderá apenas tê-la procrastinado para 2026, caso surja nova oportunidade. E o calendário da UE pode ajudar tal ambição: Charles Michel só poder fazer mais um mandato à frente do Conselho Europeu e o mandato do sucessor ou sucessora terá só 2 anos e meio. No fim desse, Costa estará livre, fora de São Bento. Para tanto, terá de “sinalizar” essa vontade dentro de 2 anos e meio, para marcar posição e tentar garantir um lugar na pole position para 2027, bem como ter sorte, já que pelo meio haverá eleições para o Parlamento Europeu, que definirão o quadro político que influencia­rá quem terá cargos nas instituições. Assim, Costa terá em São Bento, a seu lado, Tiago Antunes, o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, o homem que tem sido seu braço-direito nos últimos anos, à boleia da justificação oficial para a nova orgânica, pois é na Europa que se define mais a política nacional, sobretudo num cenário de guerra na Ucrânia. Por isso, mesmo ficando 4 anos e meio em Lisboa, Costa estará mais perto de Bruxelas que nos últimos anos.

Marcelo sempre acreditou que António Costa não se recandidataria a novo mandato em Portugal caso a anterior legislatura tivesse chegado ao fim. Agora, ninguém sabe se Marcelo alguma vez terá falado com o Primeiro-Ministro sobre o assunto ou se, contra todas as expectativas, lançou o ultimato em público. Por sua vez, Costa acentuou que “os portugueses resolveram nas eleições a crise política e garantiram estabilidade até outubro de 2026” e frisou que estabilidade “não é sinónimo de imobilismo”, mas “exigência de ambição e oportunidade de concretização”.

Tais asserções do Primeiro-Ministro geraram a continuidade da especulação dentro e fora do PS, incluindo o Palácio de Belém, adiantando-se que tudo depende de como o país chegar a 2024. O facto de a Polónia e a Hungria terem acabado de se juntar à lista dos países que deixam Portugal para trás no atinente ao crescimento económico augura missão difícil e a urgência de agarrar o crescimento sustentado do país, uma das prioridades “profundas” que Marcelo levou à posse.

Ineditamente o discurso de Marcelo foi mal recebido no PS. O deputado Pedro Delgado Alves criticou: “uma pessoa pode deixar de ser comentador, mas fica agarrado à pele.” E Carlos César, presidente do partido, corrigiu Marcelo dizendo que António Costa só está “refém do povo” e é fiscalizado pelo Parlamento, ao que Marcelo retorquiu: então, “o ultimato não é meu, é do povo”. A garantia de Costa de que o sonho europeu tem tempo não era esperada em Belém, onde se comenta que o espaço de manobra do Primeiro-Ministro se estreitara após o repto, mas ele seria sempre livre de escolher. Para Marcelo, o discurso ficará associado ao fim de um tabu; Para Costa, a Europa pode esperar.

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É feio e era desnecessário este ping-pong. Por mais razão que os observadores e comentadores queiram dar ao Presidente, não lhe cabe conferir qualquer legitimidade pessoal ao Primeiro-Ministro decorrente da eleição para o Parlamento, negando agora a validade da solução governativa de 2015. Não se elegem chefes nem membros do Executivo governamental. Se o legislador constituinte o quisesse, tê-lo-ia estatuído como o fez em relação ao presidente da Câmara Municipal e ao presidente da Junta de Freguesia. Ao Chefe de Estado incumbe cumprir e fazer cumprir a Constituição, não alterá-la nem interpretá-la à sua maneira.  

Não pode outrossim o Presidente estabelecer ou condicionar o Programa do Governo nem a atuação deste. O Governo apresenta, nos termos constitucionais, o programa ao Parlamento que se pronuncia apreciando-o e podendo rejeitá-lo. Por isso, critiquei Sampaio por abusivamente ter estabelecido em público um complexo balizamento à ação política do Governo, cerceando a liberdade do Primeiro-ministro na definição e execução do seu programa. E, desta feita, o Presidente merece crítica maior, pois, não só traçou um balizamento, mas estabeleceu, como refere Vital Moreira, um verdadeiro “caderno de encargos” (vd blog “causa nossa”), como acima se referiu e onde se contam coisas bem específicas. Independentemente do seu mérito objetivo, não cabe ao Presidente definir estes itens programáticos. Pode eventualmente pressionar sobre um ou outro em conversa com o Primeiro-Ministro e/ou em Mensagem ao Parlamento

É ao Governo, sob direção do Primeiro-Ministro que, tendo em conta o programa eleitoral do(s) partido(s) governante(s), define o programa e conduz livremente a sua ação, sob controlo político do Parlamento, perante quem é politicamente responsável. E, como diz Vital Moreira os poderes de controlo presidencial sobre o Governo são de pendor negativo: veto político, recusa de nomeações propostas por aquele, demissão do Governo em circunstâncias extremas, etc. Mesmo a fiscalização da aplicação dos fundos europeus não cabe ao Presidente nem a entidade da sua confiança, mas ao Parlamento. Com efeito, no nosso sistema de base parlamentar, mas em que o Presidente tem forte “poder moderador” (vg: poderes de veto político, de dissolução parlamentar), é essencial observar a separação constitucional de funções para evitar litígios desnecessários.

Mais: uma ameaça de eleições antecipadas para daqui a 2 anos é tão abusiva como o foi antes da rejeição do OE 2022. Além disso, os resultados eleitorais que deram maioria parlamentar não caducam com a morte, impossibilidade física ou cessação de funções do Primeiro-Ministro. Por isso, Jorge Sampaio deu posse ao sucessor de Durão Barroso. Não colheu a ideia de não ter sido eleito. Os eleitores votam em partidos!... O resto é fait divers de críticos ou protagonismo abusivo.

2022.04.04 – Louro de Carvalho

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