sábado, 23 de abril de 2022

O que pretende a Rússia, neste momento, na guerra com a Ucrânia

 

A poucos dias de o conflito completar dois meses, a guerra Rússia-Ucrânia está numa nova fase, com as tropas de Vladímir Putin a dirigirem-se para leste. E é importante saber o que pretende o invasor com a alteração da sua tática.

A invasão da Ucrânia que eufemisticamente a Rússia apregoa de “operação militar especial” e que esperava célere tornou-se numa guerra que já decorre há cerca de dois meses. Não lograram os russos fazer capitular Kiev nem o seu Governo, mas tentam derrubar os alicerces das casas, das infraestruturas e do espírito ucraniano. Neste âmbito, a descrição dos diversos cenários de destruição, estropiamento, fome, fuga e morte que o Presidente Zelensky fez ao Parlamento português fala por si, aliás como atestam outros relatos e visualizações.

Segundo o Presidente norte-americano, que falou ao seu país com enfoque na Ucrânia, onde vê abrir-se uma “janela crítica” de tempo, espera-se, nesta fase, a mesma “brutalidade” da anterior. Um comandante russo revelou que a intenção agora é privar a Ucrânia de qualquer acesso ao Mar Negro. E o Presidente Ucraniano previa junto dos deputados portugueses que, a seguir à Ucrânia, os russos ocupariam a Moldávia, a Geórgia e outros países.

Aglaya Snetkov, investigadora nas áreas de política externa, de segurança e interna da Rússia e autora de “Russia’s Security Policy under Putin: A critical perspective”, especialista em guerra e conflito, diz que o tipo de abordagem depende dos objetivos fixados, podendo a Federação Russa querer obter mais territórios à volta do Donbas, além dos reconhecidos em 2014.

Sintetiza a investigadora e editora do “Russian Analytical Digest”:

Será uma guerra muito mais convencional, mais focada em batalhas e trincheiras e equipamento de grandes dimensões. (…) Até ao momento, o foco tem sido ao longo das estradas e em algumas cidades, tentando isolar militarmente a Ucrânia. A partir de agora, veremos uma guerra em larga escala para os russos tentarem obter mais território.”.

Aglaya Snetkov pensa que o ataque ao navio russo Moskva não constitui um momento de viragem. Apesar de o facto relevar em termos de simbolismo e enfraquecimento da capacidade e da posição russas no Mar Negro, não foi o espoletador da mudança de planos, que radica na ausência de vitórias em outras partes do território defendidas pela resistência ucraniana. Mostra, no entanto, que “a Marinha russa não é assim tão boa” e que “os ucranianos conseguem ter vitórias e atingir alguns alvos”. A Rússia está focada no Donbas, para cujo controlo não precisa de grandes embarcações. Precisa de frota, sim, quando investe nas cidades da costa do Mar Negro e quando carece de apoio aos ataques em bases no mar. O pressuposto de as forças russas se dirigirem para sul, tomando Odessa, foi deixado para trás. Por isso, não é crível que o incidente com o Moskva tenha grande impacto na forma como a guerra se irá desenrolar.

O surgimento de familiares a reclamarem as vidas dos filhos e netos beliscou a imagem da Rússia, mas o Kremlin tenta diminuir tais efeitos e o episódio não afetará a opinião pública russa acerca da guerra porque as perdas e vitórias da Marinha são mais simbólicas que efetivas. É certo que houve incêndio no navio e que alguns tripulantes, não a maioria, foram salvos, mas, comparando com o desastre do submarino Kursk, em 2000, o primeiro grande falhanço de ‘relações públicas’ de Putin, este caso tem pouco a ver em relevância.

Jonáš Syrovátka, do departamento de Ciência Política da Universidade Masaryk em Brno (República Checa), que estuda a perceção e compreensão do sistema político russo pelos membros da elite política russa, refere que, duma perspetiva militar Zelensky não terá capacidade para enfrentar o exército russo, pelo que não há hipóteses de a cidade Mariupol se aguentar de pé.

O investigador admite que deixar as pessoas morrer à fome do lado de dentro da central siderúrgica onde se encontram os últimos resistentes da cidade pode ser o plano das forças russas, havendo muitas unidades que poderiam ser utilizadas para outros objetivos. E, para Aglaya Snetkov, a capitulação de Mariupol é só uma questão de tempo. Do lado ucraniano não há muito mais alimentos nem munições. O complexo da central siderúrgica é grande e fortificado e há muitos combatentes lá, mas estão retidos e não é possível abastecê-los. Para fazer um juízo certo sobre o que sucederá, era preciso saber, por exemplo, quantos soldados russos estão a segurar o cerco e qual será o tamanho das suas forças, pois o que suceder em Mariupol pode ser decisivo.

Segundo os dois investigadores em referência, a Rússia não tem necessidade desta vitória. E Jonáš Syrovátka, sustentando que o incidente com o Moskva foi humilhante e foi um fracasso, mas não foi decisivo no terreno, diz que “qualquer objetivo atingido pode funcionar como propaganda”, mas “é um pequeno conto de uma grande história”.

É difícil ajuizar que Putin esteja a vencer a guerra. Com efeito, desde o começo da guerra, teve de alterar os objetivos: queria fazer cair o Governo da Ucrânia, que não caiu; agora, diz querer libertar o Donbas, mas é difícil saber se conseguirá dominar o Donbas. Enfim, tem mudado de tática, reagindo ao que vai acontecendo no terreno. Para Aglaya Snetkov, o Donbas é importante para a Rússia porque tem mais russófonos e os russos quererem expandir o domínio que obtiveram em 2014. Ora, em termos práticos, é mais provável que militarmente consigam ter conquistas territoriais lá. Porém, o sul da Ucrânia é também um objetivo, que a Rússia dificilmente atingirá. Por outro lado, é de frisar que o exército russo está a enfrentar problemas e desafios como dantes: na logística, na coordenação, nas condições meteorológicas, na falta de motivação e de recursos humanos. De facto, não pensavam que a guerra evoluiria deste modo, não se prepararam para uma guerra tradicional, e o conflito está a evoluir no sentido de uma guerra convencional.

Além disso, o estado de espírito do Kremlin está abalado. E Snetkov justifica:

Já começaram a prender generais e oficiais-chave das operações militares. Isso indica-nos que há insatisfação. Começam a reconhecer que há a necessidade de um único comando, por isso há a consciência de que têm de mudar de estratégia. Estão mais ou menos conscientes dos seus fracassos.”.

Sobre o lançamento, para testar, dum míssil balístico intercontinental com capacidade nuclear, Jonáš Syrovátka defende que “vemos a mesma narrativa com as armas nucleares: é uma tentativa de mostrar que eles podem ser usados a qualquer altura do conflito”.

Face a este panorama é de questionar a diplomacia. Macron disse que o diálogo com Putin parou. E à questão se pode a comunidade internacional manter algum tipo de contacto diplomático, a resposta é que se trata de uma escolha política. Muitas críticas se ergueram contra Macron por ter perpetuado o diálogo sem qualquer resultado. Muitos analistas levantaram a questão de que é necessário ter um interlocutor, por ser necessário manter o diálogo vivo e canais de comunicação, não para partilhar informação, mas para compreender em que ponto Putin sente que se encontra.

Aglaya Snetkov lembra que “o Presidente Biden teve uma posição diferente”. A investigadora garante que o equilíbrio não é fácil numa situação como esta. Acredita que é preciso manter abertos alguns canais de comunicação para perceber como o outro lado está a pensar, o que é sempre importante numa guerra, mas compreende porque é que Macron foi criticado e não foi poupado quando hesitou em falar de genocídio.

Ora, “as pessoas focam-se na acusação de genocídio, acima da de crimes contra a humanidade, porque é muito mais simples de compreender”, diz Aglaya Snetkov, que sustenta:  

Na realidade, uma acusação de crimes contra a humanidade está ao mesmo nível do genocídio, e é uma definição legal”.

A investigadora não tem dúvidas quanto à ocorrência de crimes de guerra. E, à medida que a guerra se prolonga, há cada vez mais a certeza de que a Rússia quer eliminar a Ucrânia enquanto nação. E é indiscutível que há crimes de guerra. A narrativa russa fala de erradicar os ucranianos, mas depende de que vozes se ouvem. Alguns canais tocam neste tema, mas os líderes não é disso que falam. No entanto, no início da guerra, a teoria de que a Ucrânia não deveria existir não era uma narrativa tão proeminente como é agora.

Outra questão que a guerra levanta é a das consequências das sanções. Há indubitavelmente efeitos que estão a ser sentidos pelas pessoas. Vários relatórios estão a ser feitos no terreno, por exemplo, sobre bens de consumo que vão desaparecendo e filas às portas de lojas russas, mas não é certo que tais efeitos levem as pessoas a voltarem-se contra o regime, que responsabiliza os países ocidentais, culpando-os por estes efeitos. E, se analisarmos os efeitos da guerra à luz do avanço ou do travão a fundo na guerra, conclui-se que as sanções não param a guerra, mas são um instrumento ou mecanismo que serve para mostrar que não gostamos de alguém ou da sua postura. É óbvio que afetam a capacidade militar a longo prazo, mas não têm efeito imediato no campo de batalha, porque a capacidade militar já se encontra no terreno. Prejudicam a capacidade de a Rússia substituir a maquinaria de guerra em alguns meses. Só que, de momento, já tem todo o equipamento e exército, pelo que não será sentido impacto imediato nem suficientemente rápido para abalar a guerra. Talvez em alguns meses precisem de fazer substituições, mas até lá…

Quanto à continuidade das negociações, é de anotar que ambos os lados aguardam para saber se sairão vencedores desta fase da guerra. Por isso, Snetkov pensa que tão cedo não haverá rondas negociais. Eventualmente o fim da guerra acontecerá devido às negociações, mas estas não são possíveis neste momento. Não acontecerão até que a batalha em Donbas mostre quem está no lado vencedor ou no do perdedor. Ambos querem ver como corre antes de reatarem negociações, porque aí tem de se abdicar de algo. Nenhum dos lados estará disposto a isso até saber o que vai acontecer no Donbas. A Rússia quer obter algo para justificar os efeitos que estão a ser sentidos.

***

Quer-me parecer que os senhores da guerra – guerra que não tem qualquer justificação e que só merece a condenação – não estão interessados em que ela acabe. Várias entidades se têm mostrado disponíveis para a mediação. Houve negociações na Turquia. O secretário-geral da ONU, que tem condenado a crueldade da guerra, embora a princípio pareça ter tomado partido pela Ucrânia, vai a Moscovo dialogar com Putin, mas já esta a ser criticado por não ter ido primeiro a Kiev.   

E quem parece querer aproveitar a situação é a China a nível económico. Por isso, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, e o mais alto funcionário do Partido Comunista Chinês para questões diplomáticas, Yang Jiechi, tiveram “discussão substancial sobre a guerra da Rússia contra Ucrânia”. Jake Sullivan e Yang Jiechi “enfatizaram a importância de manter as linhas abertas de comunicação entre os Estados Unidos e a China”, como se lê num comunicado de Washington, após a reunião ocorrida em Roma, Itália. De facto, segundo o jornal “The New York Times”, a Rússia pediu à China que fornecesse equipamentos militares para a guerra e ajuda económica para auxiliar na superação das sanções internacionais. Pequim reagiu de forma vigorosa contra a informação, mas sem a desmentir. Disse Zhao Lijian, porta-voz da diplomacia chinesa, que “ultimamente, os Estados Unidos têm espalhado constantemente notícias falsas contra a China”. E Jake Sullivan avisou durante uma entrevista televisiva, garantindo que “haverá consequências” se alguém procurar ajudar a contornar as sanções:

Estamos a acompanhar de perto até que ponto a China está a fornecer, de uma forma ou de outra, assistência material ou económica à Rússia (…) Queremos que Pequim saiba que não vamos ficar parados. Não vamos permitir que nenhum país compense as perdas da Rússia devido às sanções económicas aplicadas a Moscovo.”.

Porém, as sanções, com pouco efeito na guerra em si abatem-se, pelos efeitos, nos países europeus, que se veem a braços com o aumento crescentemente brutal dos bens alimentares e energéticos e levam os EUA a tornar a Europa dependente dos produtos controlados pela América.

E é ilusória a asserção da Presidente da Comissão Europeia de que a Rússia não se aguentará economicamente.

Por fim, interrogo-me como é que Zelensky pede ao nosso Parlamento (a moda de falar aos parlamentos incrementa o ambiente belicista) que lhe mandemos armas – solicita uma declaração de guerra?! – e alinhemos no reforço das sanções e no processo de adesão à UE, quando isso UE e integração na NATO são os pomos de discórdia invocados para a guerra, o não cumprimento dos tratados? Ademais, a diplomacia faz-se através dos executivos; a solidariedade humanitária faz-se às claras.  

E, se houver um ataque premeditado ou um acidente de guerra na zona da NATO ou desta na zona russa, não teremos uma guerra à escala mundial em que a Europa ficará desfeita, se algum dos blocos nucleares entrar em desespero de causa, tendo os EUA rompido os tratados segundo os quais a NATO não se estendia além da Alemanha? Mas nada justifica esta guerra cruel!

2022.04.23 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário