sexta-feira, 31 de março de 2023

O significado do batismo para os cristãos

 

Ocorreu, a 31 de março, mais um aniversário do meu batismo. E, como entendo dever contrariar uma certa onda de deserção da Igreja católica, manchada pelos desmandos dos abusos sexuais, por parte de alguns dos seus responsáveis, deixo aqui o testemunho do meu apreço pela Igreja de que faço parte e que, em tempos, servi em funções de liderança pastoral, conforme soube e pude.

É óbvio que o crime é intolerável, o seu encobrimento merece crítica, as vítimas merecem apoio a todos os níveis, nomeadamente a audição, o acompanhamento e, mesmo, a indemnização, quando solicitada e ponderadas as circunstâncias, sobretudo se os agressores tiverem falecido ou sofrerem de doença incapacitante e estiverem em situação de penúria (casos em que se pode impor a obrigação supletiva e subsidiária da autoridade e dos recursos da Igreja).

Contudo, a Igreja, constituída por pecadores e para pecadores, tem a sua força e a sua referência em Jesus Cristo, que funciona como cabeça deste corpo místico e é guiada pelo Espirito Santo, que, não raro, deixa de ter a obediência que se Lhe deve. E, embora tenha de se envergonhar pelos erros em cujo seio se cometem, sobretudo por causa da arrogante autorreferência e do frequente abuso de poder, ela deve continuar a testemunhar a fé no Ressuscitado, para o que deve alimentar-se do templo da Palavra e da Eucaristia, respirar o ar dos campos e das ruas e apresentar-se, apesar de tudo, ao Mundo como sinal e instrumento de salvação, não em si, mas em Cristo.

Ora, começa a fazer-se parte da Igreja através do batismo cristão.

O termo “batismo” é a transliteração dos gregos báptisma e baptismós (em Latim, baptismus e baptisma), derivados do verbo baptízô, traduzivel por “batizar”, “imergir”, “banhar”, “lavar”, “derramar”, “cobrir”, “tingir” ou “purificar”.

Falo do batismo cristão, pois também as abluções do Antigo Testamento foram traduzidas por “batismos” no Grego koinê do Novo Testamento. Pela discussão entre os discípulos de João e os de Jesus (Jo 3,25-26) vê-se que as purificações katharismoí são usadas como sinónimos de batismo. E baptismós é a palavra usada em Lucas 2,22, quando Maria apresenta Jesus no Templo, referindo-se ao tempo de purificação das mulheres que tinham filho, como está na lei mosaica.

Também em Marcos 7,4, onde o termo não representa o batismo cristão, o verbo é traduzido, em diferentes versões da Bíblia, por lavar, ou, literalmente, batizar. E os textos de Marcos 10,38 e de Lucas 24,49 enfatizam o batismo como rito de passagem.

O próprio batismo de penitência e purificação que, à semelhança de outros profetas, João Batista ministrava às multidões e a que Jesus se sujeitou com uma das multidões, só prefigura o batismo cristão na dimensão da penitência e de purificação, que este comporta, e pela revelação que, excecionalmente, ocasiona da identificação de Jesus como o Filho, o amado de Deus Pai, e como o Ungido (Cristo) do Espírito Santo. Dele nos tornamos irmãos ou filhos no Filho.

Porém, a pregação e o batismo a todas as pessoas é um imperativo apostólico sempre e em toda a parte (cf Mt 28,20).  

Segundo algumas confissões cristãs, como a católica, a ortodoxa, a luterana e a reformada, o batismo é um sacramento de ingresso na comunidade e o fundamento da comunhão entre todos os cristãos. Assim, proporciona ao catecúmeno a graça de Deus. E, para a Igreja católica, o batismo não só é um sacramento de inclusão na Igreja, Corpo Místico de Cristo, Povo de Deus, Vinha do Senhor, Grei de Cristo, Esposa de Cristo, como é necessário para a salvação, fazendo-nos filhos especialmente amados de Deus e herdeiros de todos os seus bens.

Na Igreja católica, o batismo é ministrado às crianças e a convertidos adultos que não tenham sido antes batizados validamente. O batismo da maior parte das igrejas cristãs é considerado válido pela Igreja católica, pois o efeito chega diretamente de Deus, independentemente da fé pessoal, embora não da intenção do ministrante. Como os demais sacramentos, confere e significa a graça de Deus ex opere operato, não ex opere eius ministri, isto é, independentemente da santidade do seu ministro. Por isso, em caso de extrema necessidade, qualquer pessoa pode batizar, desde que o faça com a intenção de fazer o que faz a Igreja, derrame água sobre a cabeça da pessoa e pronuncie as palavras essenciais da forma do sacramento.

O rito essencial deste sacramento consiste em imergir na água o candidato ou em derramar a água sobre a sua cabeça ou aspergi-lo com água natural, chamando-o pelo seu nome e dizendo: “Eu o te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.”

O batismo liberta do pecado original e perdoa todos os pecados pessoais e as penas devidas ao pecado. Por isso, o recém-batizado adulto comunga, sem necessidade do sacramento da Reconciliação. Possibilita aos batizados a participação na vida trinitária de Deus, mediante a graça santificante e a incorporação em Cristo e na Igreja.

Os apóstolos impunham as mãos e batizavam e conferiam as virtudes e dons do Espírito Santo. Uma vez batizado, o cristão é um filho de Deus e um membro da Igreja e também pertence, para sempre a Cristo, se perseverar até ao fim em integridade de vida.

A Igreja católica e as tradições luteranas, anglicanas, reformadas e metodistas insistem no batismo das crianças porque, tendo nascido com o pecado original, têm necessidade de ser libertadas do poder do Maligno e de ser transferidas para o reino da liberdade dos filhos de Deus. Isto faz com que as pessoas não têm o direito de, durante o seu crescimento, pecar novamente, visto que Jesus Cristo não voltará à terra para novamente morrer na cruz e lhes dar o direito de ser perdoados. Porém, embora o batismo seja fundamental para a salvação, os catecúmenos e todos aqueles que morrem por causa da fé (batismo de sangue) e todos os que, sob o impulso da graça, sem conhecerem Cristo e a Igreja, procuram sinceramente Deus e se esforçam por cumprir a sua vontade (batismo de desejo), obtêm a salvação, porque Jesus Cristo morreu para a salvação de todos. E, quanto às crianças mortas sem serem batizadas, a Igreja, na sua liturgia confia-as à misericórdia de Deus, que é ilimitada e infinita.

Aquelas Igrejas também ministram o batismo às crianças e a adultos sem batismo considerado como válido anteriormente. Porém, no conceito de validade, apenas católicos, os luteranos e os anglicanos mantêm como válidos todos os batismos cristãos, excetuando-se apenas o dos grupos considerados pela ortodoxia cristã como paracristãos (adventistas, testemunhas de Jeová e Mórmons). Já nos grupos reformados e nos grupos metodistas, há diversas versões sobre aceitação ou não do batismo ministrado pela Igreja católica romana.

No cristianismo evangélico, para os recém-nascidos, há a cerimónia da apresentação da criança, sendo o batismo por imersão na água reservado a adolescentes e a adultos, após o novo nascimento, o nascimento pela fé.

No batismo, utiliza-se a água, como a matéria do sacramento, que simboliza purificar e lavar. Pode usar-se a imersão, a infusão (o comum na Igreja católica) ou a aspersão, o que significa morrer, ser sepultado e ressuscitar com Cristo.

Previamente, costuma impor-se ao candidato o sinal da cruz e fazer-se a unção com o óleo dos catecúmenos, para significar a adesão a um povo de santificados, um povo de lutadores pelas causas do bem. A unção com o óleo reporta-se aos ritos de purificação do Antigo Testamento, o tipo da purificação pelo sangue de Jesus Cristo. Assim como sucede com infusão ou aspersão da água, cuja maior dificuldade é de cunho cultural, pois os Hebreus entendiam bem esta forma de purificação. E a unção com o óleo do crisma, a seguir ao batismo, significa a assimilação à missão de Jesus, o Messias, que é profeta, o sacerdote e o rei. Por isso, todos integramos o povo profetas, a nação santa, a comum idade de reis (cuja realeza é servir na justiça e na caridade, não como mera assistência, mas como integral desenvolvimento pessoal, humano e social).

É batismo com água, pois, assim foram purificados os levitas. Em alguns momentos, a água era misturada com algo do sacrifício, tal como a cinza ou o sangue. Em alguns casos, eram lavados com água tanto pessoas como utensílios. É batismo no sangue, pois é o sacrifício operado com o derramamento de sangue de Cristo, fator da nova aliança de Deus com os homens É batismo no Espírito Santo, mencionado como promessa nos profetas.

É Batismo no sangue. Jesus ante o pedido de Tiago e João, seus discípulos, filhos de Zebedeu, reportou a sua morte futura como um batismo. Nele derramou o seu sangue e mediou uma Nova Aliança entre Deus e os homens, sendo Ele mesmo o sacrifício pelo pecado. Isto é reforçado na instituição da Ceia do Senhor. Os discípulos que haviam afirmado desejarem ser batizados com o mesmo batismo, morrerão, dando a vida por amor a Jesus.

É batismo no Espírito Santo. Cumpre a promessa e unifica os conceitos associados ao batismo com óleo. Pedro, na sua primeira carta, afirma que o povo de Deus é sacerdócio real, povo de propriedade exclusiva de Deus.

É batismo no fogo. João Batista afirmou que Jesus batizaria com o Espírito Santo e com fogo: “E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de levar; ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com fogo (Mt 3,11). Jesus respondeu a Nicodemos: “Em verdade, em verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espíritonão pode entrar no reino de Deus” (Jo 3,5). O fogo, tal como no caso da cinza no Antigo Testamento, está associado à purificação, mas neste caso, conforme os textos dos Evangelhos de Mateus e Lucas, significa a unção do Espírito Santo. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (At 2,2-4). “E os que ouviram foram batizados em nome do Senhor Jesus. E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas, e profetizavam” (At 19,3-6).

Esta é a grande referência da Igreja. Cristo, não o pecado, nem o poder, nem o carreirismo. Esta é a Igreja que tem de se mostrar ao Mundo, mesmo que uma Conferência Episcopal tenha sido, alguma vez, inepta ou insuficiente e, muitas vezes, demasiado atacada. Nesta Igreja, fraca humanamente, mas forte em Cristo, vale a pena acreditar. Não pode ser um terramoto a fazer desaparecer a fé. Se o faz, é porque ela precisa de novo vigor. E, se ela vacila, há que pedir mais fé ao Senhor da Vida.

2023.03.31 – Louro de Carvalho

Situações existenciais que levam à pobreza

 

Os estudiosos identificam três tipos de motivos da pobreza: o desemprego, a doença e o divórcio (três D) – situações que envolvem ruturas com impacto na vida das pessoas e das famílias.

O desemprego é a mais óbvia, embora haja alguns cambiantes a considerar, nomeadamente o que respeita à zona difusa entre emprego e desemprego. E o desemprego, além do próprio, envolve também os membros em idade ativa do agregado familiar, pois há uma inequívoca dimensão familiar na pobreza e no desemprego. Na verdade, as dificuldades existentes no mercado de trabalho atiram indivíduos e famílias para a pobreza e manifestam-se como ruturas.

Para lá do desemprego e a emparceirar com ele, são exemplo dessas ruturas a quebra de relações no trabalho com colegas ou com chefias, a precariedade no emprego e as más condições laborais.

A seguir ao desemprego, nos motivos que levam à pobreza, vem a doença, desde logo a doença crónica ou incapacitante (incluindo deficiência) com impactos variados na capacidade de as pessoas desenvolverem uma atividade laboral, no bem‑estar, na necessidade de, eventualmente, existir um cuidador (que fica impedido de exercer outra atividade ou, então fica sobrecarregado) e no acréscimo das despesas (medicamentos e outros bens de saúde). Assim, a doença de uma pessoa não é problema meramente individual, pois tem impacto alargado no círculo familiar.

E, a par da doença, a morte de familiares constitui um aspeto importante nas trajetórias de vida, com impacto na harmonia do agregado e no rendimento. Neste sentido, a morte de um provedor de recursos tem impacto nas dinâmicas de entrada na pobreza, mormente quando a intensidade laboral do agregado familiar é muito reduzida.

É de vincar que a intensidade laboral de um agregado familiar é considerada muito reduzida, quando os membros adultos trabalham apenas uma fração das horas mensais disponíveis para trabalhar, designadamente quando há pessoas desempregadas ou inativas (domésticas ou pessoas com deficiência, por exemplo).

Por último, vem o divórcio, atualmente, um fenómeno frequente, a que se equipara, para este efeito, o caso em que o casamento não foi formalizado, mas em que ocorre a separação definitiva dos casais em união de facto representa.

O divórcio próprio ou dos pais é algo que, em situações já de si são de grande fragilidade, lança facilmente as pessoas na pobreza, pela redução de rendimentos causada pela separação e pelos seus efeitos em cascata, incluindo a atividade laboral.

No entanto, mau grado a sua inegável capacidade para explicar a realidade, esta abordagem dos três D da pobreza tem evidentes limitações. Na verdade, analisar as desigualdades sociais a partir da perspetiva da pobreza é uma opção com forte componente política. Ao abordar a pobreza em termos individuais, minimizam‑se os fatores políticos, sociais e estruturais que contribuem para a produzir e reproduzir na sociedade. Por isso, não se pode perder de vista o contexto social em que o desemprego, a doença e o divórcio têm impacto na vida das pessoas: a desregulação do mercado de trabalho; as caraterísticas do tecido económico que favorecem determinados postos de trabalho, segmentados e desqualificados, mas que têm um papel importante na sobrevivência do sistema como um todo; a incapacidade do sistema educativo de cumprir as suas promessas de universalidade; a fragilidade da rede de segurança que o Estado proporciona, em caso de eventos disruptivos da vida dos indivíduos e das famílias, associados a perdas de rendimento; as insuficiências do apoio público à conciliação trabalho‑família.

A crise económica de 2009‑2014 acentuou as desigualdades de género, particularmente incidentes nas trajetórias de vida das mulheres, sobretudo nas mais idosas. Também pôs a descoberto, em vários casos, a maternidade como um fator de exclusão do mercado de trabalho.

Contudo, os três D não existem só nos processos de produção da pobreza, isto é, na entrada numa situação de pobreza, mas também estão presentes nos processos da sua reprodução ao longo da vida dos indivíduos e entre gerações e, até, da sua intensificação pelo aumento da distância ao limiar de pobreza. Com efeito, é claro que estes elementos estão presentes na trajetória de vida das pessoas, agravando situações já de si difíceis ou condicionando fortemente as suas vidas, reduzindo a sua margem de manobra e tornando as suas possibilidades de sair da situação de pobreza mais remotas. E, como nos processos de produção de pobreza, é preciso ter em conta os efeitos contextuais, quer sejam estruturais, mais associados ao funcionamento da sociedade (incluindo o da economia e o do Estado), quer sejam conjunturais, como os efeitos associados aos momentos de crise ou de crescimento económico.

Ainda sobre a entrada em situação de pobreza, há outro aspeto muito relevante: a vulnerabilidade. Trata-se de pessoas que estão acima do limiar da pobreza, mas para as quais qualquer acidente poderá redundar na sua entrada em situação de pobreza, bem como da sua família. O que distingue as pessoas vulneráveis não é a relação com o trabalho, a trajetória de emprego e o enquadramento familiar, mas o facto de terem rendimentos um pouco mais elevados do que as pessoas em situação de pobreza e de, em regra, não terem sido afetados pelos habituais fatores disruptivos. Todavia, uma situação de crise económica – como a de 2009‑2014, a que se iniciou em 2020 (provocada pela situação pandémica) e o atual panorama inflacionista –, em particular conjugada com um evento crítico associado a um dos três D, poderá lançá‑las, facilmente, numa situação de pobreza.

Uma crise económica, surgida de súbito, agrava a situação existencial de pessoas empregadas com um salário mínimo e até com um salário médio, bem como, por maioria de razão, a dos pensionistas, cujo poder reivindicativo é nulo.

Resta, ainda, atentar no caso da pobreza daquelas pessoas que entraram no Mundo sem qualquer posse de casa, de terra ou mesmo de família – os sem eira nem beira – sobretudo aqueles que ninguém procura ou aceita para emprego.

Por outro lado, ter emprego não significa não ser pobre. Com efeito, se o salário for de miséria (e, no futuro, a pensão de reforma for tão magra como acontece com a maior parte dos cidadãos), não garantindo a sobrevivência do trabalhador (e não contribuir para a da família) para o tempo de inatividade, como é o caso da velhice, a doença prolongada ou o desemprego de longa duração, temos um mercado de trabalho de pobres e de cada vez mais pobres, a par do grupo mínimo dos cada vez mas ricos e anafados. E a situação de pobreza gera males físicos e distúrbios mentais.      

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Os estudos publicados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFS) e pela Nova SBE, revelam que ter emprego não é sinal de abandono da pobreza. E João Pedro Tavares, presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), diz que os resultados desta avaliação confirmam a importância da iniciativa “Semáforo”, já em curso, na fase-piloto, monitorizando cerca de mil famílias.

O “semáforo” é uma ferramenta que avalia o estado de situação dos trabalhadores nas empresas ao nível da pobreza financeira e habitacional e ao nível da saúde, entre outros.

João Pedro Tavares  vê como “um mal menor” a promulgação, pelo Presidente da Republica, da Agenda do Trabalho Digno, por as medidas fazerem recair sobre as empresas respostas que deveriam ser dadas pelo Estado, por exemplo, os custos com a parentalidade e o emprego jovem.

A par do mérito das iniciativas da ACEGE, é de apontar a transferência da responsabilidade social da empresa para o Estado por parte de quem pretende menos Estado. No entanto, é de registar o tom crítico do presidente da ACEGE às disparidades espelhadas nas diferenças salariais nas empresas portuguesas, entre os gestores de topo e a os trabalhadores.

Confrontado como uma análise do Banco de Portugal (BdP), segundo a qual o grupo de trabalhadores mais penalizados pela contenção e pelos cortes salariais praticados pelas empresas entre 2006 e 2020 é o dos licenciados e dos mestres, contesta: “Esse é um grupo diferenciado em termos remuneratórios a cerca de 20% ou 30% acima dos restantes. Portanto, essa formação superior é uma formação que vale a pena ter e vale a pena apostar na educação.”

Perante a asserção de que o esbatimento da diferença entre salários, apontada pelo BdP, acontece por vários motivos, sendo um deles a subida do salário mínimo, João Pedro Tavares sustenta que o salário mínimo é um problema por si só, não no valor, mas no número de colaboradores que está a trabalhar, que é cerca de um em cada quatro, que recebe salário mínimo”. E observa que “o salário médio não sobe por múltiplos motivos”.

Fiquemo-nos por uma janela de razões. Muita atividade que enriquece o país é paga a custo muito baixo. E os lucros das empresas e os dividendos aumentam. Ora, aí os empregadores devem rever, quanto antes, as suas tabelas salariais. Porém, em muitos casos (e o Estado está neste âmbito), é difícil pagar o que é justo. Isto sucede pela magreza de receitas e pelos altos custos da produção e do funcionamento, nas empresas e na administração pública. O tema tem a ver com o mercado em geral. E as empresas não conseguiram acompanhar este surto inflacionista, porque muitas delas têm contratos estabelecidos, não fizeram atualização desses contratos e remuneram abaixo do que era a inflação.

Ora, daqui resultou uma perda de poder de compra dos trabalhadores de forma generalizada. Contudo, há empresas que remuneraram ao nível da inflação, há empresas que atribuem prémios e que procuram atualizar esses prémios, mas, de facto, não se pode esquecer que os níveis de pobreza e a disposição do limiar de pobreza em Portugal, cresceram depois da pandemia, processo que se agravou no último ano, que vinha numa trajetória relativamente positiva.

Porém, João Pedro Tavares expõe uma situação complexa: a ACEGE sabe que 30% dos pobres finais são trabalhadores, pelo que tem em marcha o “Semáforo”, um programa de transformação, de combate e de erradicação da pobreza.

O projeto torna visível o invisível, avaliando a situação de cada empresa no seu nível de pobreza. As famílias ficam ‘semaforizadas’ em amarelo, em verde ou em vermelho. E as que estão em amarelo ou em vermelho têm acesso a uma rede, assente na rede da economia social e do setor do Estado – através da Instituições particulares de Segurança Social (IPSS) e das redes da saúde – que, em coordenação entre todos, faz a assistência estas famílias, por outro lado, e tenta, por outro, levar a que seja a família a sair do estado de pobreza. Portanto, não se está a acudir aos casos mais precários, mas a famílias que, apesar de terem rendimentos, estão em situação de pobreza.

Não é a empresa que contacta a rede, pois, à luz da proteção de dados, não pode revelar qual é a família que está em assistência, mas a família acede a um centro de contacto e é redirecionada.

E o presidente da ACEGE, falando da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), defende que é de juntar a justiça intergeracional e dar novas oportunidades às novas gerações, constituindo a JMJ uma boa oportunidade para esta reflexão. E atira a rude informação: “Portugal é um país que nos últimos 20 anos decresceu no número de postos de trabalho, cerca de 77 mil postos. […] A União Europeia cresceu [em] 25 milhões de postos de trabalho e a Zona Euro [em] 19 milhões de postos de trabalho, mas Portugal teve o caminho inverso.” E dita: “Estes são precisamente os temas de origem que têm de ser debatidos, este é um tema crucial.”

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Será pouco? Porém, se o Estado, todas as associações empresariais e todas as ordens profissionais fizerem um pouquito, o panorama compor-se-á. Porém, melhor é mudar de paradigma.

2023.03.31 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 30 de março de 2023

Algumas tentativas de humanização nas empresas e nos serviços

 

O trabalho desempenha incontornável papel na vida de cada pessoa, dando-lhe o sentido de pertença a uma comunidade e o de cumprimento de uma missão intransferível.  

Não se trata do trabalho entendido em sentido puramente mercantilista, enquanto prestação de uma atividade paga, mas, sobretudo, na aceção abrangente de categoria humana que possibilita a expressão radical das nossas aptidões técnicas, fazendo de nós seres humano-sociais, capazes de transformar a sociedade e os seus territórios.

Uma vida sem esta componente fica circunscrita a um cinzento leque de trivialidades, pois é o trabalho que dá o tónus de utilidade e de elevação às nossas competências, tirando partido dos talentos e inclinações pessoais, tornando-se expressão total da nossa personalidade humana.

Isto, ao arrepio do sentido etimológico da palavra “trabalho”, que remete para uma perspetiva negativa. Efetivamente, o termo “trabalho” – do latino “tripalium” (três paus) – associava-se à ideia de tortura, pois o tripalium era a designação do instrumento (formado por três estacas de madeira) que visava a punição de um trabalhador não aplicado ou mesmo insurreto.

Porém, recuperando o sentido do termo “lavor” – do latino “labor”, derivado de “laborare” (lavrar), que remete para o trabalho na terra (a lavoura) –, teremos já a ideia positiva de uma ação transformadora (reservada a determinados escalões sociais). E, nos dias que correm, o conceito de trabalho evoluiu e tornou-se transversal a toda a sociedade, sendo entendido como a aplicação de determinadas faculdades, com dispêndio de tempo e de espaço, para atingir um determinado fim. Contudo, a dedicação a uma atividade, implicando sempre um maior ou menor esforço da parte do agente, atrairá, em si mesma, um conjunto de resultados valorativos.

Assim, ao trabalho está inerente a capacidade de a pessoa que trabalha contribuir, com as suas habilidades, para o bem da coletividade a que o seu múnus está associado, pondo a sua ciência e a sua técnica ao serviço dos interesses do grupo, com vista a atingir um determinado objetivo. Por outro lado, a dinâmica do trabalho implica uma componente de serviço, de estar ao serviço de, de estar dedicado a algo ou a alguém. E, obviamente, a parte remuneratória garante a sobrevivência do trabalhador, no presente e no futuro, e o seu contributo material para o sustento da família.  

A realização de cada um no trabalho será tanto maior quanto maior for a sua influência e o seu envolvimento na prossecução dos resultados do grupo. (Por grupo, entenda-se, neste contexto, qualquer tipo de agremiação (empresa, família, associação ou outro). E o valor intrínseco do trabalho corresponderá a uma contribuição para o bem comum e não a um resultado individualista ou narcisista.  

Assim, o trabalho não deve traduzir-se num carreirismo de fins egoístas, com vista à concretização estrita de objetivos de valorização pessoal, caso em que os interesses do indivíduo se sobreporão aos interesses do grupo. Este tipo de mentalidade leva a ter como objetivo último atingir, a qualquer custo, o máximo na carreira profissional. O trabalho torna-se ídolo, que absorve todo o tempo disponível e se sobrepõe a quaisquer outros interesses e valores. Neste cenário, sacrificam-se outras vertentes de satisfação e de crescimento pessoal, como a disponibilidade para a família e para os amigos, o cultivo da História o interesse pela Cultura, o apreço pelas Artes e pela Literatura, bem como o desenvolvimento de outros ofícios.

A par disto, os empresários e/ou os gestores tendem a desvalorizar a dimensão pessoal e familiar do trabalho e põem o acento na produtividade, na competitividade, no lucro, através da chamada economia de meios. As empresas, quando se restruturam, dispensam trabalhadores, eliminam postos de trabalho, criam novos serviços (para contratarem agentes a troco de menor remuneração), atendem pior os clientes, sobrecarregam os trabalhadores (ironicamente promovidos a simples colaboradores) com mais tarefas. E temos, em muitos casos, a proletarização de agentes que tinham vida de trabalho desafogada, bem como a semiescravização laboral: trabalhadores precários, sobrecarregados, em condições inumanas, mal pagos e sem direitos (anestesiados pelo regime de prestação de serviços e pela famigerada inevitabilidade).

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Entretanto, há tentativas de reverter ou de, pelo menos, mitigar a situação. Dão-se alguns dos exemplos mais significativos.

Foi aprovada, a 10 de fevereiro, no Parlamento, a Agenda do Trabalho Digno, que o Presidente da República promulgou a 22 de março.

O diploma contempla cerca de 70 medidas, com os seguintes objetivos: combater a precariedade e valorizar os salários; incentivar o diálogo social e a negociação coletiva, para que as soluções encontradas reflitam as realidades concretas de cada situação; promover a igualdade no mercado de trabalho entre mulheres e homens, com medidas novas destinadas a incentivar a real partilha das responsabilidades familiares; criar condições para melhor equilíbrio entre a vida profissional, a familiar e a pessoal; e reforçar os mecanismos de fiscalização, nomeadamente com cruzamento de dados para deteção mais eficaz de situações irregulares.

Por seu turno, a Associação Portuguesa de Certificação (APCER) promove a vertente de entidade familiarmente responsável nas empresas (EFR) e emite o certificado de EFR.

Com efeito, em todas as organizações, o objetivo das medidas de conciliação da vida profissional, pessoal e familiar é assegurar que as pessoas tenham sucesso nestas três dimensões da vida. As evidências revelam que o apoio aos trabalhadores no esforço de equilíbrio do trabalho com a vida pessoal e familiar não é “amabilidade”, mas obrigação. E lograr este equilíbrio resulta em benefício para todos os envolvidos, ao impactar, de forma positiva, na produtividade, na atração de talentos, na motivação e na retenção de força de trabalho.

Assim, a certificação EFR – Entidade Familiarmente Responsável é promovida pela Fundação Másfamilia, de que a APCER é parceiro, a fim de responder ao atual contexto sócio-laboral marcado pela flexibilidade, pela competitividade e pelo compromisso.

Os principais benefícios da implementação e da posterior certificação, de acordo com este referencial, são: a melhoria da imagem corporativa e da marca; o aumento da produtividade e da competitividade; a atração e a retenção de talentos; e a atração de investimentos socialmente responsáveis.

A Fundação Másfamilia nasceu em 2003, em Espanha, como organização privada, profissional, independente, sem fins lucrativos e de caráter benéfico. Desenvolve ações que supõem uma melhoria da qualidade de vida e de bem-estar das pessoas e das famílias, mediante a gestão da conciliação da vida pessoal, familiar e laboral, através do modelo EFR.

Foca-se na necessidade da gestão da conciliação e do apoio à família e à empresa. E, para que a conciliação laboral se torne efetiva, apresenta soluções inovadoras e altamente profissionais, como o certificado EFR, para a proteção e apoio das famílias, especialmente daquelas com dependências em seu seio.

Muitos artigos atinentes a esta matéria podem ler-se no site ver.pt, sob o signo dos valores, ética, responsabilidade (V.E.R.).

A Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), uma associação sem fins lucrativos, com vinculação internacional à UNIAPAC – Union Internationale Chrétienne des Dirigeants d’Entreprise, tem por fins: inspirar líderes a viver o amor e a verdade no mundo económico e empresarial e dar testemunho junto da comunidade; aprofundar, difundir e aplicar, na prática, a doutrina da Igreja Católica relativa à vida empresarial e às instituições empenhadas em promover a paz social e o desenvolvimento.

Para alcançar os seus fins, promove ações informativas e formativas; promove estudos e publica textos que facilitem o conhecimento da doutrina social da Igreja e as suas implicações práticas, bem como dos estudos e dos casos com interesse para a ética empresarial; promove e desenvolve projetos de intervenção que promovam a paz social, a competitividade da economia e o desenvolvimento empresarial centrado na dignidade de cada pessoa; e estabelece parcerias e colaborações com outras entidades, privadas e públicas, que permitam potenciar o seu trabalho.

Por fim e não menos importante, a Economia de Francisco.

Em carta dirigida especialmente aos jovens, em maio de 2019, o Papa Francisco desafiou todos a participarem num encontro em Assis, com vista a uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta.”

A reflexão sobre esta economia inspira-se em Francisco de Assis, o santo que se despojou de todas as formas de egocentrismo e pôs a vida ao serviço dos mais pobres, dos frágeis e da ecologia integral. E nasceu a Economia de Francisco – um movimento mundial, encabeçado pelas gerações mais jovens, mas que quer chegar a todos, a fim de promover uma economia mais orgânica, que integre e amplie a preocupação ativa pelo ambiente e pelas relações e vínculos que nos unem.

A rede da Economia de Francisco Portugal é “uma rede de pessoas, profissionais, investigadores, empreendedores, estudantes”, que, movendo-se por este novo paradigma, “procuram desafiar, fazer refletir e questionar o que precisa de ser transformado na economia estabelecida, em prol de uma economia mais centrada no amor e no cuidado pelo que nos rodeia.

Diz o Papa na exortação apostólica pós-sinodal “Christus vivit”, de 25 de março de 2019: “As vossas universidades, as vossas empresas, as vossas organizações são canteiros de esperança para construir outras modalidades de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do descarte, para dar voz a quantos não a têm, para propor novos estilos de vida.” Deus queira!

Esta economia desenvolve-se em torno de três eixos: a pessoa humana, configurando a crença numa economia com centro na pessoa, uma economia mais humana e inclusiva, dando vez e voz aos mais frágeis; a ecologia integral, que inspire a perspetivação dos desafios do tempo presente e o cuidado da nossa Casa Comum, a Terra; e o bem comum, o que postula o trabalho em rede para desenhar soluções e produzir conhecimento com vista a uma sociedade mais justa e fraterna.

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Se não houver uma verdadeira mudança de paradigma da economia, o que se faça não passará de remendo. A Economia de Francisco implica essa mudança, mas precisa de um perfil operacional, a que os economistas da praça tentam esquivar-se por via dos poderosos interesses instalados.

2023.03.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de março de 2023

Empresas e países amigos do ambiente ou nem tanto

 

Na apresentação das conclusões do Relatório-Síntese do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), advertiu que “a humanidade caminha sobre gelo fino”, que se está a derreter “rapidamente”. O relatório confirma a necessidade de uma ação global e imediata para garantir um futuro habitável para os humanos e para outras espécies, mas julga que ainda há esperança.

E, no Dia Mundial da Água (22 de março), António Guterres assinou o prefácio de um relatório sobre a água, avisando que “o superconsumo e o superdesenvolvimento vampírico, a exploração insustentável dos recursos hídricos, a poluição e o aquecimento global descontrolado estão a esgotar, gota a gota, esta fonte de vida da humanidade”.

Por outro lado, o uso desenfreado dos plásticos e a acumulação de plásticos nos oceanos estão a causar problemas ambientais de enorme dimensão.

Neste contexto, surgem as empresas amigas do ambiente, do social e da boa gestão – ESG (environment, social, governance). E o presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), António Saraiva, refere que Rui Nabeiro, o recém-falecido líder do grupo Delta, “sem estes conceitos académicos e de modas, sempre incorporou, na sua organização, estes mesmos princípios, estes mesmos valores, e com muita preocupação no social”.

Efetivamente, num estudo de mercado, da empresa Merco, sobre as empresas mais responsáveis a atuar em Portugal, a Delta Cafés é a primeira no ranking de 100, obtendo este feito pelo segundo ano consecutivo. E ocupa a posição cimeira nas três vertentes do ESG e lidera o ranking das empresas mais responsáveis em Portugal, com 10 mil pontos, quase o dobro da média da pontuação das 100 empresas referidas no estudo (5.326 pontos), em que participaram 252 executivos de grandes empresas, 41 jornalistas de informação económica, 31 membros do Governo, 39 analistas financeiros, 35 responsáveis de organizações não-governamentais (ONG), 38 dirigentes sindicais, 30 dirigentes de associações de consumidores e 800 cidadãos. 

Na segunda posição surge a Sonae e, depois, a EDP. A Ikea, empresa sueca que vende móveis em Portugal, a Jerónimo Martins, a Vodafone, o Lidl, a Galp, a Microsoft e o Google completam o top 10. A nível setorial, a Delta Cafés lidera na categoria da alimentação, a Vieira de Almeida nos advogados, a Accenture na Auditoria e Consultoria, o Grupo Volkswagen nos automóveis, o Santander na banca e o grupo Impresa (da SIC e do Expresso) nos meios de comunicação social.

Em comunicado, José María San, CEO do Merco, alerta que, “analisando a perceção dos consumidores sobre as empresas portuguesas, percebe-se que as duas variáveis com as classificações mais baixas são a responsabilidade social e a responsabilidade ambiental”. Por isso, “este é um desafio para as empresas, que deverão estar conscientes de que, apesar dos grandes progressos alcançados, as expectativas dos consumidores estão mais avançadas do que os progressos reais realizados”. Porém, comparando as conclusões do estudo feito em Portugal com o mesmo feito em Espanha conclui-se que, “do ponto de vista dos consumidores, as empresas portuguesas pontuam melhor do que as empresas espanholas”. Na mesma comparação, mas tendo em conta a opinião dos gestores e não dos consumidores, observa-se o inverso: “quando se trata de variáveis como a ética e boa governação, os gestores portugueses são mais críticos em relação às empresas portuguesas do que o são os gestores em Espanha”.

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Um relatório da ONU, de 2014, calculava que a indústria dos brinquedos gasta 40 toneladas de plástico por cada milhão de dólares de receitas. Um relatório, de 2021, publicado na revista Environment International e citado pela agência Bloomberg, calculava que, nos países ocidentais, cada casa compra, por ano e por criança, uma média de 18,3 quilos de brinquedos de plástico. E a revista Environmental Pollution divulgou em 2020 um estudo segundo o qual as peças da Lego atiradas aos oceanos levam 1.300 anos a decompor-se. Ora, isto não é sustentável. Por isso, a indústria já começou a transição: por exemplo, a Mattel fabrica as bonecas Barbie com plástico recolhido dos oceanos, e a dinamarquesa Lego produz peças de lego com um composto plástico de base vegetal, processado a partir da cana-de-açúcar.

Ao mesmo tempo, o polietileno verde, a borracha natural e a cortiça são alguns dos produtos que a indústria tem usado para substituir os plásticos.

Neste contexto, a Corticeira Amorim, empresa líder mundial no setor da cortiça, juntou-se à alemã Hape, líder mundial na área dos brinquedos de madeira, para criar uma joint venture, a Korko que fabrica e vende brinquedos de cortiça. E Carlos Duarte, diretor executivo da Amorim Cork Composites, revelou que, no ano passado, o primeiro ano desta parceria, foram vendidos mais de 100 mil brinquedos de cortiça e já estão prontos mais sete protótipos de brinquedos para serem lançados no mercado no Natal deste ano.

Um dos produtos que também está a ser comercializado no mercado são os building blocks que receberam do Itecons (Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico para a Construção, Energia, Ambiente e Sustentabilidade) avaliação carbónica negativa.

Por sua vez, a Greenvolt implementou uma Unidade de Produção para Autoconsumo na Essilor Portugal. Através da Greenvolt Next, foram instalados mais de mil painéis solares fotovoltaicos que permitem uma redução na fatura energética e reforçam os esforços da filial da empresa franco-italiana de lentes oftálmicas no sentido da redução da sua pegada carbónica.

O grupo industrial Sodecia e o BPI fizeram um acordo de 40 milhões de euros para refinanciar um programa de papel comercial existente, convertendo-o em financiamento sustentável, que apresenta condições indexadas ao desempenho da Sodecia, no atinente à redução da pegada de carbono e ao crescimento das vendas de produtos destinados a veículos elétricos.

A empresa sueca Klarna, uma das maiores fintech do Mundo, tem uma funcionalidade que permite saber se a loja que vende um aparelho eletrónico é ou não amiga do ambiente. E já tem 400 mil utilizadores com conta ativa em Portugal, mercado onde regista mil transações por dia, com um valor médio de compra de 114 euros.

Sines anda num corrupio de visitas institucionais, entre diplomatas e delegações vindas do estrangeiro, que querem perceber o que este concelho do litoral alentejano tem para oferecer. O hidrogénio verde concentra boa parte da curiosidade, mas há outros projetos em desenvolvimento para transformar o antigo polo de combustíveis fósseis numa plataforma global alinhada com a nova agenda verde.

Todavia, estão no ar algumas ambiguidades. Por exemplo, o Credit Suisse, que foi absorvido pelo rival UBS, era considerado o maior dinamizador do mercado debt-for-nature swaps, um instrumento financeiro que ajuda os países mais pobres a obter fundos em troca de projetos para garantir a sustentabilidade ambiental. Apesar disso, segundo a agência Reuters, o banco compara mal com o até agora rival UBS que está em fase mais avançada do processo de transição climática. Dados da Bloomberg mostram que, desde o Acordo de Paris, o Credit Suisse deu empréstimos de 21,7 mil milhões dólares a empresas ligadas aos combustíveis fósseis, ao passo que o UBS, no mesmo período, emprestou só 6,4 mil milhões.

Por outro lado, a União Europeia (UE) queria que os carros com motores a combustão deixassem de ser vendidos, nos 27, a partir de 2035 (quer a neutralidade carbónica em 2050). Mas, na reta final, já com a aprovação no Parlamento Europeu (PE), em fevereiro, culminando processo legislativo que implica o acordo prévio entre os países, a Alemanha pediu à Comissão Europeia (CE) que os carros movidos a combustíveis sintéticos fossem excluídos da meta de 2035. E, a 25 de março, foi anunciado acordo entre a Alemanha e a CE, abrindo espaço à concessão exigida por Berlim: a de que os carros com motor de combustão movidos a eletrocombustíveis (combustíveis sintéticos) possam circular além de 2035.

A indústria automóvel da Alemanha é a maior da Europa e das suas construtoras dependem milhares de postos de trabalho em todo o continente. Marcas como a Porsche não estão tão empenhadas a investir nos motores elétricos e estão a apostar em alternativas aos combustíveis fósseis como os eletrocombustíveis (e-fuels), os quais, apesar de representarem emissões de dióxido de carbono, são produzidos com base em energia renovável, através da captura de CO2 da atmosfera, que é combinado com hidrogénio.

A proposta da CE, apresentada em julho de 2021 para banir a venda de carros com motores de combustão, foi debatida e aprovada pelos 27, no final de 2022; e, tendo ido a votos em fevereiro deste ano, foi aprovada pelos eurodeputados. Porém, o veto da Alemanha foi apoiado por países com indústrias automóveis relevantes, como a Polónia, a Eslováquia, a República Checa, e Itália – que fez saber que só levantaria as suas objeções, se as exceções abrangessem, não só os e-fuels, mas também os biocombustíveis.

A perda do motor de combustão a partir de 2035 – para os carros vendidos até então saírem do mercado em 2050 – representa uma mudança estrutural para as marcas que, há vários anos, investem somas astronómicas para mudarem a forma de produção e modelos de negócio. A alternativa é manter o motor de combustão e descarbonizar a economia: os eletrocombustíveis.

Porém, algumas construtoras de automóveis, como a norte-americana Ford e a sueca Volvo, com mais 45 empresas, assinaram uma carta a apelar a que a UE mantivesse a proibição total de venda de carros com motores a combustão a partir de 2035, medida que “demorou quase dois anos a ser negociada”. Sob a égide do Climate Group, ONG que pugna pela limitação dos impactos das alterações climáticas, a carta defendia que “avançar com a proibição de acordo com o planeado dará estabilidade legal, algo vital para que as empresas possam avançar com os seus planos de descarbonização e investir em veículos elétricos.” “Recuar agora daria origem a um precedente perigoso e a comprometer a confiança no processo legislativo da UE”, alegam, dizendo que as concessões (à data da divulgação da carta ainda não anunciadas) iriam atrasar a transição para veículos puramente elétricos.

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Entretanto, depois de quase 15 anos de negociações foi aprovado, pelos Estados-membros da ONU, o Tratado sobre os Recursos Biológicos do Alto-Mar, incidindo sobre a larga porção de mar que fica além das áreas de jurisdição marítimas dos Estados costeiros. É uma vitória do multilateralismo e do direito internacional, quando os impasses geopolíticos que decorrem da tensão Ocidente/Rússia e Estados Unidos da América (EUA)/China e os velhos antagonismos Norte/Sul não são superiores à vontade coletiva da comunidade internacional, onde muitos países em desenvolvimento foram determinantes para a adoção do Tratado.

O Tratado regula a exploração dos recursos biológicos e genéticos do mar, prevendo de normas e mecanismos que visam proteger e conservar estes recursos, cada vez mais escassos. Assim, é essencialmente um tratado sobre a conservação do alto-mar. Desde logo, prevê a criação de áreas marinhas protegidas no alto-mar, determinante para a sua proteção e para o cumprimento do compromisso mundial de chegarmos a 2030 com pelo menos 30% do mar coberto por áreas marinhas protegidas.

E, para Portugal, tem um significado especial: Portugal começa a compreender que uma das riquezas principais do mar assenta na sua diversidade biológica, que é a matéria-prima da nascente indústria de biotecnologia marinha; e precisa de criar as suas áreas marinhas protegidas, criação que incentiva o cumprimento da obrigação internacional inerente à sua posição de país do mar.

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Terá, a sério, o ambiente melhores dias e será mais promissor o futuro?

2023.03.29 – Louro de Carvalho

Relatório da AI radiografa drasticamente 2022 no Mundo

 

O último relatório da Amnistia Internacional (AI) mostra que há povos e guerras que não merecem a atenção dos que têm o poder de mudar algo. E ante as falhas de quase todos os países do Mundo em proteger os seus cidadãos, esmorece a esperança de que a resposta mundial à agressão russa marcasse nova era para um sistema internacional fundado em valores e no direito.

Os crimes contra a Humanidade ocorrem em toda a parte, sem sanção ou crítica. Os ditadores seguem impunes. Diz-se que 2022 foi o ano em que a guerra voltou em força à Europa, mas ela já existia há oito anos no leste da Ucrânia, pelo que os ucranianos não chamam “guerra” a esta, mas “invasão em larga escala”. A outra marinava e o Ocidente não interferia.

Nos países menos desenvolvidos, centenas de conflitos, com armas de fogo ou de controlo social, alimentam a deterioração das condições de vida de centenas de milhares de pessoas. A lei humanitária internacional é usada como dá jeito, conforme o interesse em causa. Se há interesses económicos comuns e alianças geopolíticas, as coisas fazem-se, caso contrário, impera o silêncio. Esta duplicidade de atuação espelha a hipocrisia do uso do duplo tipo de critérios e de ações para denunciar os conflitos, protegendo os “bons”, não os “maus”.

Agnès Callamard, secretária-geral da AI, disse, na apresentação do relatório de 2022, que “a invasão da Ucrânia pela Rússia é um exemplo assustador” do que pode suceder quando os Estados “pensam que podem desrespeitar o direito internacional e violar os direitos humanos sem consequências” e lembrou os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que se ergueu sobre destroços do conflito mais violento de que há memória, a II Guerra Mundial, reconhecendo o direito igual de todos os povos à paz e à liberdade.

A perpetuação do conflito israelo-palestiniano é um dos pontos que mais pesam na tese, defendida pela AI, de que o Ocidente tem um olho seletivo nas exasperações que elege. Com efeito, 2022 foi o ano mais violento da última década para os Palestinianos da Cisjordânia. Os Israelitas mataram 151 pessoas em 2022, sendo 37 menores de idade. E a política de construção de casas para Israelitas em territórios que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera parte de um Estado palestiniano futuro desaloja, todos os dias, famílias palestinianas.

A 5 de agosto, Israel lançou uma ofensiva de três dias sobre a Faixa de Gaza, porção de terra palestiniana, colada ao Mediterrâneo, de onde é difícil sair e onde tudo o que entra é controlado pelas forças israelitas. Pelo menos 1.700 palestinianos perderam as suas casas em 72 horas, 17 morreram devido aos ataques israelitas e sete foram vítimas de morteiros, que dispararam, sem querer, do lado palestiniano. E o silêncio dos Estados Unidos da América (EUA), face ao apartheid que Israel impõe nos territórios ocupados, cobre Israel para perseguir os Palestinianos.

Ao fim de 20 anos de guerra, os EUA saíram do Afeganistão, fenecendo as ilusões que as mulheres tinham de mudança sólida do seu papel na sociedade. Sem alternativa num país dominado por um grupo imbuído do seu machismo superlativo, as afegãs ficaram impedidas de aceder a qualquer tipo de escolaridade ou de emprego. No Irão, os protestos por liberdade levaram à detenção e à morte de centenas de pessoas, principalmente jovens, sendo as mulheres as principais vítimas, como no Afeganistão.

Nos EUA abundam os exemplos de sociedade enviesada contra as mulheres. Até em países onde há recursos financeiros, democracias robustas, funcionamento dos serviços, tudo fatores de garantia de melhores condições de vida às mulheres, nota-se o retrocesso de direitos.

Em 2021, o Supremo Tribunal dos EUA reverteu a decisão “Roe contra Wade” que garantia o direito ao aborto às mulheres, ao criar a ligação entre este ato médico e o direito à privacidade entre doente e médico. Por causa dessa decisão, dezenas de casos judiciais, a nível estadual, contribuem para a restrição dos direitos das mulheres. A discriminação de mulheres negras, pobres, indígenas, imigrantes sem documentos, entre outras, aumenta. E estes são os segmentos da população com salários mais baixos e condições familiares mais instáveis.

Na Polónia, Justyna Wydrzynska, ativista pelo direito ao aborto foi condenada a oito meses de serviço comunitário por ter enviado comprimidos indutivos de aborto a uma mulher que pediu ajuda à associação Abortion Dream Team, que Justyna dirige. É a primeira pessoa na história da Polónia condenada em caso de ajuda ao aborto, indo a pena até aos três anos de prisão.

No Paquistão e na Índia, os “assassínios de honra” são problema grave. Duas irmãs, com dupla nacionalidade, espanhola e paquistanesa, foram mortas em 2022 pelos respetivos maridos, com quem foram forçadas a casar, por se recusarem a pedir-lhes vistos de cônjuge para Espanha. Muitos pais casam as filhas com homens da mesma família (no caso, primos direitos) para mais membros da família entrarem na Europa, pelo processo de reunificação familiar.

Este foi também o ano em que se confirmou a mortandade da guerra de dois anos na Etiópia. Mais de 600 mil pessoas morreram em 2021 e 2022, número que os investigadores europeus da universidade de Ghent, na Bélgica, os primeiros a chamar a atenção para as atrocidades na região do Tigray, corroboraram. Em 12 anos de guerra na Síria, terão morrido entre 350 e 400 mil pessoas. No Iémen, em guerra há sete anos, morreram 377 mil pessoas.

No Myanmar, o exército persegue as minorias religiosas e a violência intensificou-se. Em maio de 2022, a AI divulgou o relatório específico para a situação no país, que relata o uso generalizado de detenções arbitrárias, tortura e execuções extrajudiciais de civis. Embora as minorias étnicas, nomeadamente cristãos e muçulmanos, sofram, há décadas, nas mãos do exército, houve um aumento significativo da violência, após o golpe militar de fevereiro de 2021, que levou à morte de centenas de civis e ao deslocamento de mais de 150 mil pessoas em três meses (de dezembro de 2021 a março de 2022).

Este ano, a comunidade internacional reage à agressão da Rússia sobre a Ucrânia e condena a invasão, mas isso contrasta com a pouca ação a outras violações de direitos humanos em países como a Etiópia, o Myanmar e a Arábia Saudita, que tanto viola os direitos dos seus cidadãos como está envolvida na terrível guerra do Iémen”, diz o diretor da AI de Portugal, Pedro Neto.

Os custos da crise climática intensificaram-se. Inundações, secas, ondas de calor e incêndios causaram mortes, perda de bens de primeira necessidade, habitações, florestas e culturas agrícolas, provocando crassa escassez alimentar e doenças em várias zonas do globo.

A União Africana declarara 2022 como o Ano da Nutrição, mas as condições climáticas extremas desencadearam o contrário. Na Somália, a seca severa aumentou os casos de subnutrição e, na Nigéria, as inundações precipitaram um surto de doenças transmitidas pela água, matando centenas de pessoas e de animais. Aumento do nível do mar e inundações afetaram comunidades costeiras empobrecidas em países como o Bangladesh, as Honduras e o Senegal.

Apesar de as alterações climáticas atingirem todo o Mundo, é em África que se regista a maioria das consequências. Em 2022, o Corno de África sofreu a sua pior seca em 40 anos e partes da África Austral sofreram inundações inéditas, causadas por chuvas intensas. Em Madagáscar, as tempestades tropicais e os ciclones mataram mais de 200 pessoas de janeiro a abril.

Na África do Sul, as chuvas destruíram milhares de casas. Na África Ocidental, as autoridades nigerianas não conseguiram implementar medidas suficientes para mitigar o impacto das inundações que mataram, pelo menos, 500 pessoas. No Senegal, o aumento do nível do mar causou erosão nas aldeias de pescadores, forçando as comunidades a deslocar-se para o interior.

Dois anos antes da guerra da Síria enorme seca levou ao êxodo rural para os meios urbanos. Muito do descontentamento que gerou os protestos radica nesse evento climático, que levou à abundância de mão-de-obra nas cidades, onde não havia emprego para todos.

Em setembro, um terço do Paquistão ficou submerso, provocando a fuga de milhares de pessoas, embarcar algumas em viagens perigosas até à Europa, aonde nem todos chegam. O facto de a cidadania paquistanesa ter aparecido, em 2022, entre as três mais comuns a chegar ao Reino Unido pelo canal da Mancha revela a correlação entre as alterações climáticas e o aumento de pedidos de asilo, registando-se um fenómeno migratório de dimensões que o Ocidente nunca viu e para o qual não se está a preparar.

Na Argélia, os fogos florestais mataram 40 pessoas. No Iraque, as tempestades de areia e as ondas de calor obrigaram cerca de 10 mil famílias a sair das suas casas.

Há outros exemplos de zonas do globo afetadas por conflitos regionais ou por tragédias climáticas que modificaram a forma de vida dos povos, mas os indicados ilustram bem o problema é a causa de quase todos os problemas: a desigualdade. É a desigualdade de tudo, incluindo de atenção mediática, de distribuição de recursos, como ajuda humanitária e medicamentos, e a dos esforços diplomáticos para resolução de conflitos. A pandemia de covid-19 e, agora, a guerra na Ucrânia exacerbaram o padrão duplo. As nações ricas acumularam vacinas e enfraqueceram os sistemas de redistribuição, contribuindo para aprofundar a desigualdade. Os países ricos falharam nas medidas de alívio das esmagadoras dívidas dos países em desenvolvimento.

Na Europa, tudo se fez para acolher ucranianos, a União Europeia (UE) facilitou o acesso à proteção internacional, mas para outras pessoas, como as de origem africana, que também fogem da guerra, a abertura não é a mesma. Os EUA acolhm milhares de ucranianos, mas prendem, deportam e torturam pessoas do Haiti, que vive uma situação igualmente dramática.

Na região de Xinjiang, na China, a minoria muçulmana uigur é vigiada, presa, endoutrinada contra a própria etnia, assassinada e torturada. Apesar das violações dos direitos humanos, equivalentes a crimes contra a Humanidade, Pequim escapou da condenação internacional pela Assembleia Geral da ONU, pelo Conselho de Segurança e pelo Conselho de Direitos Humanos. Este último estabeleceu um Redator Especial sobre os direitos humanos na Rússia e um mecanismo de investigação no Irão, mas votou para não se investigar mais, nem apreciar o relatório do que se passa em Xinjiang, num país que diz querer liderar as negociações de paz na Ucrânia (quando só lhe interessa a diplomacia comercial), mas que devia dar o exemplo com Taiwan.

Na Rússia, foram encerrados meios de comunicação, ONG privadas de fundos e alvo de buscas e de mandados de apreensão de material (caso da “Memorial”, que venceu o prémio Nobel da Paz em 2022), por terem chamado guerra à guerra. Jornalistas foram presos no Afeganistão, na Etiópia, no Myanmar, na Rússia, na Bielorrússia e em mais países onde há guerras.

Na Austrália, na Índia, na Indonésia e no Reino Unido, aprovaram-se leis que restringem as manifestações; no Sri Lanka, utilizaram-se os poderes do estado de emergência para restringir os protestos contra o aumento do custo de vida; no Reino Unido, a lei dá às autoridades amplos poderes, como o de proibir “protestos ruidosos”; em dezembro, as forças de segurança peruanas reprimiram indígenas e camponeses, pelos protestos contra a deposição do ex-presidente Pedro Castillo; e, em Moçambique, a par de inundações e de violência em Cabo Delgado, jornalistas, defensores dos direitos humanos e oposição política sofreram a repressão.

E uma reportagem da agência Lusa, já este ano, registava as queixas de manifestantes contra os métodos de repressão da polícia, cada vez mais comuns, tendo matado manifestantes em países como o Equador, a Colômbia, a Somália, a Serra Leoa, o Chade ou as Filipinas.

Enfim, sofrimento, guerra, violência e violação dos direitos humanos vistos sob duplo critério.

2023.03.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de março de 2023

Crise da habitação é ameaça aos direitos humanos em Portugal

 

A Amnistia Internacional (AI) considera que as medidas tomadas pelo Governo, até ao fim de 2022, foram insuficientes para garantir casas acessíveis a quem precisa e alerta para despejos forçados que afetam, “desproporcionalmente”, a população cigana e a de origem africana

No relatório de 2022, a AI aponta a Portugal as limitações ao direito à habitação, bem como a continuidade da brutalidade policial, da violência e da discriminação de género, da exploração de migrantes e da degradação ambiental

O relatório anual da AI sobre o estado dos direitos humanos no mundo em 2022, lançado a 28 de março, traça os pontos negros identificados em Portugal, indo o seu primeiro alerta para a continuação da violência policial, referida em edições anteriores, e para a desresponsabilização dos agentes por má conduta. E a crise da habitação em Portugal, identificada há alguns anos, é o terceiro ponto que suscita críticas à AI. “As medidas tomadas pelo Governo [em 2022] foram insuficientes para melhorar as condições de habitação e [para] garantir casas acessíveis, apesar dos dados divulgados no final de 2021 mostrarem que mais de 38 mil pessoas precisavam de um teto.” A par disso, sobressai a manutenção de relatos de despejos forçados que deixam as pessoas em piores condições habitacionais (em alguns casos de pessoas sem-abrigo), afetando, “desproporcionalmente”, a população de etnia cigana e a de origem africana.

Casos de exploração de milhares de trabalhadores migrantes em trabalhos na agricultura, a maioria proveniente do sudeste asiático, bem como as condições inadequadas de habitação em que vivem, suscitam contundentes reparos daquela organização internacional, que apresenta como exemplo o caso de Odemira, revelado em janeiro de 2022. Em junho, o Grupo de Peritos sobre o Tráfico de Seres Humanos (GRETA), do Conselho da Europa, que visitara o país em 2021, revelou que a exploração laboral, com a habitação em condições sub-humanas, se mantinha como a forma mais comum de abuso das vítimas, atingindo sobretudo o setor agrícola e o da hotelaria.

Entretanto, o Governo apresentou a consulta pública o pacote “Mais Habitação”, duramente criticado pelas câmaras municipais, que reivindicam para si mesmas tal competência, a par dos investidores privados, por setores grados da população, sob o espectro do ataque à iniciativa privada e ao direito à propriedade privada, e pela generalidade dos partidos à direita.

Por sua vez, os partidos à esquerda consideram insuficientes as medidas do pacote; e os inquilinos aceitam-no, mas com a reserva de não prever a revogação da chamada Lei Cristas, ou seja, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que aprova medidas para dinamizar o mercado de arrendamento urbano, nomeadamente, alterando o regime substantivo da locação, designadamente conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento, alterando o regime transitório dos contratos celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (que aprovou o NRAU – novo regime de arrendamento urbano), reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo, e criando um procedimento especial de despejo do local arrendado que permita a célere recolocação daquele no mercado de arrendamento.   

A somar a estas críticas, junta-se a tomada de posição pública de Cavaco Silva a reforçar a ideia da lei Power/Point, importada de outros setores criticantes, mas atribuindo a sua elaboração a “ignorantes marxistas”. E, quase logo a seguir, o Presidente da República, que tinha chamado “melão” ao pacote, matou-o politicamente, ao denominá-lo de lei-cartaz, destinado a ficar no papel, pois é um pacote inoperacional.

Resta, pois, saber o que fazer do pacote “Mais Habitação” e dos dois mil e setecentos contributos que a consulta pública lhe ofereceu.

Entretanto, os investidores privados fizeram da casa a mercadoria de luxo, inacessível ao comum dos cidadãos, quer pelos altos preços de compra, quer pelo alto preço de renda mensal. E as autarquias parecem ter acordado, agora, para a sua responsabilidade no fomento da habitação a preços mais acessíveis.

Neste contexto de especulação e de exploração, os centros das grandes cidades ficam inabitáveis pela população da classe média. E os observadores opinam que não é justo facultar a famílias de carteira meio recheada que, à custa dos impostos deles, vivam nos centros de cidade, como se essas famílias também não pagassem impostos e o seu trabalho não constituísse uma significativa mais-valia para a sociedade.  

Assim, a par dos altos preços de compra e venda de casa, as rendas inflacionadas e os despejos fazem aumentar os pedidos de casas às autarquias da área metropolitana de Lisboa (AML) e da área metropolitana do Porto (AMP), mas só há vagas para 2,5% dos candidatos, quando há mais de 26 mil famílias à espera de habitação social.

Pedir casa à câmara é o último recurso. Feitas as contas, somadas as despesas, subtraídas ao rendimento disponível, o resultado não dá para pagar habitação no mercado de arrendamento comercial. Mais de 26 mil famílias a residir na AML e na AMP não veem forma de encaixe nesta contabilidade a renda inflacionada de um imóvel e de manutenção do orçamento familiar acima do negativo. E quando têm casa, basta uma pequena subida na renda ou na prestação (no crédito à compra de casa), uma cessação de contrato de trabalho, um despedimento, uma doença, um filho não programado, a conta do supermercado anediada pela guerra, para tudo se desequilibrar, pois não há aonde ir buscar um suplemento. Resta a candidatura, no concelho de residência, habitação municipal, de renda ajustada ao rendimento. Mas podem ser anos e anos de espera.

A crise da habitação juntou-se à crise económica e criou condições para abalar a estrutura das famílias mais carenciadas, as primeiras a chegar à lista de espera e as que ocupam os lugares cimeiros. Em 28 autarquias da AML e da AMP, há 26.312 agregados familiares à espera de vagas sociais, quase 19 mil, na região da capital, e cerca de 7400, na área da Cidade Invicta. A maioria dos pedidos (15.884, o equivalente a 60%) deu entrada ou foi renovada em 2022, segundo o Expresso.

 

Era preciso aumentar, ali, em mais de um terço, o número de imóveis municipais. Porém, a capacidade de resposta está muito a leste da realidade. Para entrega imediata, havia, no final de 2022, só 658 casas: 471, na AML, e 187, na AMP. Na área da AML, 13 dos 18 concelhos não tinham, então, qualquer vaga disponível, o mesmo sucedendo com quatro concelhos, na AMP.

Estão identificadas mais 2509 habitações municipais desocupadas, mas precisam de obras. Em 2022, só 913 famílias (3,4% das candidaturas) receberam uma chave da câmara. A este ritmo, seriam precisos 29 anos para acabar com a espera e só se se travassem novas inscrições.

Na generalidade dos concelhos, a atribuição dos imóveis sociais faz-se com base na classificação por pontos, que soma critérios de risco, carência ou exclusão (número de filhos, desemprego, rendimento, deficiências, problemas de saúde, casa degradada, ordem de despejo, etc.), só havendo resposta para os casos mais graves dos mais graves.

A maioria destes sem-casa não é sem-abrigo. São famílias monoparentais ou alargadas que suportam a espera em quartos, em casa de parentes, em imóveis insalubres ou ocupados, num T0 para cinco, num anexo abarracado, numa garagem.

O problema é maior na área metropolitana da capital, que concentra 71% dos agregados em espera por uma habitação. Porém, a pressão não se fica pelos concelhos mais povoados. Com a fuga de população para as localidades limítrofes da AML, atrás de rendas comportáveis, a especulação imobiliária seguiu-a, aproveitando a procura. E municípios com pouca habitação social, porque nunca tiveram pedidos que motivassem a sua construção ou aquisição, veem-se a braços com listas de espera, algumas até superiores ao património edificado e totalmente lotado.

Entre as razões apresentadas para o pedido de casa às câmaras, contam-se: o aumento das rendas e os despejos; as “dificuldades económicas para fazer face ao pagamento mensal da renda e às despesas fixas”; a “especulação dos preços da habitação”; e a “escassez de casas para arrendar”. Rendas é a palavra mais repetida, despejos e penhoras não ficam atrás.

A solução para a falta de habitação social passa pelos milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que financiará a construção de novas habitações municipais – bairros e prédios dispersos –, a aquisição para reabilitação e a reabilitação de imóveis públicos. A meta é a criação de 26 mil fogos para famílias em situação carenciada e sem acesso a habitação condigna e o reforço da habitação acessível a jovens e a famílias da classe média.

O Programa de Arrendamento Apoiado, dirigido aos agregados em maior privação, tem uma lista de espera de 7093 candidaturas (a maior da AML e da AMP), subtraídos os pedidos inválidos, mas as casas vagas no imediato passam pouco das 400. E os pedidos não param de aumentar. A estes números somam-se as famílias que se inscrevem no Programa de Renda Acessível, com a média de 3485 em cada concurso, e as 800 candidaturas ao Subsídio Municipal de Arrendamento Acessível, que estiveram abertas até 28 de fevereiro. E, por exemplo, em Lisboa, a Carta Municipal de Habitação, entre outras medidas, prevê a requalificação de bairros sociais esquecidos, onde foram identificadas 13.150 situações de habitação indigna; a construção de mais 9624 fogos de habitação municipal, sendo que atualmente 930 estão em obra, 1721 em projeto e 5967 em estudo; o regresso das cooperativas; e a compra de imóveis devolutos.

A conclusão da revitalização do parque habitacional, para a maioria dos empreendimentos municipais, é o fim de 2025, quando têm de estar executados os fundos do PRR. Para a maio­ria das famílias em lista de espera, a casa está a quase três anos de distância.

Enfim, como diz o primeiro-ministro, “parodiando” o “Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, “em país onde não há habitação todos falam e têm alguma razão”. Por isso, governo e autarquias têm um largo e longo caminho a percorrer, na certeza de que, para lá das divergências ideológicas e outras, “Salus Reipublicae lex suprema esto” (A salvação da comunidade seja a suprema lei). E todas as autarquias devem assumir o problema e a solução.

2023.03.28 – Louro de Carvalho