sábado, 18 de março de 2023

Desclassificados () últimos documentos secretos sobre a guerra colonial

 

Noticiou o Público, em título de primeira página, que o Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, desclassificou os documentos que faltavam sobre a guerra colonial. Porém, lido o conteúdo do texto noticioso, verifica-se algo diferente e que estávamos sob um equívoco político e, sobretudo, de termos.

O equívoco político, do meu ponto de vista, residia no facto de a Assembleia da República (AR) ter discutido e rejeitado, a 23 de janeiro deste ano, um projeto de Resolução do Bloco de Esquerda (BE), que recomendava a desclassificação de todos os documentos militares até 1975, em particular os respeitantes à guerra colonial.

Afinal, a desclassificação já estava feita, quando alguns defendiam que só a Armada ainda tinha alguns (poucos) documentos por desclassificar e outros se insurgiam contra a classificação de documentos considerados essenciais para o enquadramento da Historia política de Portugal.

Por outro lado e como decorre do exposto, bem como da fresca notícia do Público, o PR não acabou, agora, de desclassificar documentos, apenas declarou que “boa parte da documentação” relacionada com o período da guerra colonial “já está acessível ao público ou veio a ficar acessível nos últimos anos”, vincando que recebe, periodicamente, pedidos de investigadores para a consultar. “Eu verifico se realmente está preenchido o prazo [a partir do qual é permita a consulta] e normalmente autorizo o acesso aos documentos”, explicou, esclarecendo que isso ocorre com “todas as administrações da guerra colonial ou guerra ultramarina”, que terminou há 49 anos.

Como refere o mesmo jornal Público, segundo fonte oficial da Presidência da República, os documentos foram desclassificados em junho de 2019, inclusive as atas do Conselho Superior de Defesa (CSD) do período compreendido entre abril de 1968 e fevereiro de 1974.

Terá a obsessão pela transparência ou pela separação de poderes levado a AR a um debate inútil, por extemporâneo, por parte dos deputados?

Há, pois, diferença entre desclassificar e facultar o acesso à investigação. O que sucede, agora, é que os documentos estão digitalizados e o acesso a eles é mais fácil.

O PR falava no Funchal, onde participou no encerramento do Congresso dos Juízes Portugueses e na inauguração da delegação da Madeira da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, e reagiu à notícia de que a Presidência da República desclassificara os documentos que faltavam sobre a guerra colonial, nomeadamente as Atas do Conselho Superior de Defesa do período marcelista (1968-74), esclarecendo o que, efetivamente, está em causa.

O Público, que refere que o ex-Presidente da República Cavaco Silva se recusou a desclassificar o último lote, mas Marcelo Rebelo de Sousa avançou com o processo em junho de 2019, regista: “Houve um investigador, já há quatro anos, que pediu esses documentos e tinha direito, uma vez que já tinha passado o prazo de reserva em relação ao acesso a esses documentos”, explicou, referindo que, “na altura, foi autorizado”. “Pelos vistos, foi sabido agora”, ironizou.

O chefe Estado frisou que recebe, periodicamente, pedidos de investigadores que querem ter acesso aos documentos, “para saber como foi a política portuguesa, a ligação a países estrangeiros, com países amigos e países adversários, como é que correram algumas reuniões do Conselho da Defesa”.

A comissão de acesso aos documentos administrativos tinha interposto vários recursos para a Presidência da República para que os documentos fossem desclassificados ainda no tempo de Cavaco Silva, algo que o chefe de Estado, entre 2006 e 2016, sempre recusou fazer.

Isto acontecia ao arrepio da lei, a qual estabelece que a classificação dos documentos como os do segredo de Estado não pode ultrapassar os 30 anos. Com efeito, o n.º 3 do artigo 4.º do “Regime do Segredo de Estado”, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de agosto, na atual redação, estabelece que “o prazo para a duração da classificação ou para a respetiva reapreciação não pode ser superior a quatro anos, não podendo as renovações exceder o prazo de 30 anos, salvo nos casos expressamente previstos por lei”.

Porém, muitas vezes, a consulta tem esbarrado em recusas que não têm qualquer base legal.

Agora, a documentação está digitalizada e mais disponível para consulta (já o estava noutros suportes, mas com maior dificuldade). Segundo a TSF, estes documentos relatam a guerra colonial durante o marcelismo e mostram as discussões entre o presidente do conselho de ministros, os chefes militares e o ministro da Guerra (aliás, ministro da Defesa Nacional: o governo de Marcello Caetano não tinha ministro da Guerra).

“O que estamos agora a falar talvez sejam coisas mais ao nível político ou diplomático, as relações com o exterior” – diz o tenente-coronel na reserva Pedro Marquês de Sousa, investigador da história militar, citado pela TSF, para quem a documentação agora disponível é de utilidade limitada. “O tema a esse nível já é suficientemente bem conhecido, até porque outros investigadores também fizeram o mesmo que eu, já tiveram acesso à documentação nos arquivos de Paris e de Londres”, acrescenta.

Em todo o caso, os interessados têm agora à disposição um longo e novo acervo sobre um período crítico da história da guerra colonial e que não estava ainda disponível.

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A este respeito, o Expresso online, vincando que se trata do último lote de documentos referentes à guerra colonial ainda classificado como secreto, revela que o levantamento desta classificação fora pedido, em 2013, durante o segundo mandato presidencial de Cavaco Silva, por José Matos, investigador independente em História Militar, o que foi recusado. O seu sucessor, Marcelo Rebelo de Sousa, pronunciou-se pela desclassificação dos ficheiros em 2019 e estes, uma vez digitalizados, passam, a partir de agora, a ser consultáveis pelos investigadores na página eletrónica da Presidência da República. Por outro lado, aponta vários mistérios desse período da história, que poderão ser esclarecidos.

O efeito da desclassificação é, antes de mais, o de um ato simbólico, porque deixa de haver documentos oficiais classificados relativos à guerra colonial. Em termos práticos, poderá não haver grandes novidades factuais, mas permitir-se-á cruzar informações com outras fontes já conhecidas – referentes ao citado período 1968/74 –, e proporcionar leituras políticas sobre o relacionamento entre o então primeiro-ministro Marcelo Caetano e as chefias militares.

Alguns dos eventuais cruzamentos de informações poderão lançar novas luzes sobre operações militares bem conhecidas realizadas naquele período.

É o caso, entre outras, da Operação Nó Górdio”, lançada por Kaúlza de Arriaga no Norte de Moçambique, de que resultou a destruição de bases da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e o alargamento da guerrilha a toda a metade setentrional do território (1970); da Operação Mar Verde, dirigida por Alpoim Calvão, que visava a mudança de regime na Guiné Conacri, através do desembarque em Conacri de tropas portuguesas e de oposicionistas a Sekou Touré, e cujo saldo prático foi a libertação de prisioneiros portugueses (1970); ou da Operação Ametista Real, levada a cabo a partir da Guiné-Bissau e que passou pelo ataque à base do Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC) de Cumbamori, em território do Senegal (1973).

E deste período há, pelo menos, três mistérios por esclarecer, na totalidade ou em parte: o desaparecimento, em 1971, da tripulação do cargueiro “Angoche”, ao largo da costa norte de Moçambique (encontrado à deriva, com fogo a bordo, mas vazio); o assassinato de Amílcar Cabral, líder do PAIGC, na Guiné-Conacri (1973); e os pormenores das operações de comandos no norte de Moçambique, que levaram ao massacre de centenas de civis, em Wiriamu, em 1972.

Há ainda outro efeito importante, embora indireto, desta desclassificação de documentos, que tem a ver com o modo como os portugueses lidam com a herança de 13 anos de guerra em África e com o recalcamento dos traumas passados, bem como com o seu debate sem peias ou complexos.

Ao invés dos Estados Unidos da América (EUA), que fizeram, no cinema e na literatura, o luto do Vietname, o tema guerra colonial é, em Portugal, mais exceção do que regra.

No cinema, apenas se destacam: “Um Adeus Português” (João Botelho, 1986), “Non ou a vã glória de mandar (Manoel de Oliveira, 1990) ou “Os Imortais” (António-Pedro Vasconcelos, 2003). E, na literatura de ficção, para lá da presença recorrente da guerra na obra de António Lobo Antunes, alguns casos isolados como “O Elogio da Dureza” (2021), de Rui Azevedo Teixeira.

Porém, houve enormes avanços nos livros de investigação histórica e divulgação, desde a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de Áfricas (1961-1974), em diversos volumes, da Comissão para o Estudo das Campanhas de África, criada no Estado-Maior do Exército, passando pelas obras dos historiadores militares Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, até às antologias coordenadas por Fernando Rosas/Mário Artur Machaqueiro (“O Adeus ao império”, edição Nova Vaga, 2017) ou por Miguel Cardina/Bruno Sena Martins (“Às Voltas com o Passado”, edição Tinta da China, 2018), uma e outra incluindo trabalhos de investigadores, tanto portugueses como angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos ou guineenses.

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Enfim, há que promover o debate aberto sobre o passado colonial, sem o esquecer e sem o enaltecer, mas analisando-o criticamente, situando-o no contexto histórico e político e assumindo-o com os seus contravalores e, porque não, também com alguns valores, nomeadamente no quadro do encontro de culturas.

2023.03.18 – Louro de Carvalho

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