terça-feira, 7 de março de 2023

TAP: tirar as ilações e as consequências jurídicas

 Quando surgiu a crise na transportadora aérea portuguesa (TAP, SA), conhecida a notícia de que Alexandra Reis, acabada de ingressar no governo como secretária de Estado, saíra da companhia aérea, onde desempenhara um cargo de administradora, percebendo uma indemnização de 500 mil euros, o Presidente da República fez saber que, mais do que uma questão jurídica ou ética, estava em causa uma questão política. Mais tarde, quando se teve conhecimento de alguns pormenores da auditoria a cargo da Inspeção Geral de Finanças (IGF), o chefe do Estado preconizava a necessidade de tirar as consequências jurídicas do caso. E é aqui que o ponto bate.

Do ponto de vista ético, a ex-administradora, não podendo, moralmente, perceber indemnização por ter deixado um cargo de relevo numa empresa pública, deveria devolver a importância referente à indemnização ou deixar o governo. Não sei se, por hesitação em avaliar as condições políticas que tinha ou deixara de ter, o ministro das Finanças demitiu-a de secretária de Estado do Tesouro, cargo que ocupara durante pouco mais de uma vintena de dias. O problema ético, que não foi resolvido, até porque, pelos vistos, a sobredita indeminização oferecia dúvidas sobre a sua legalidade, abriu a porta a que fossem tiradas consequências políticas por parte de alguns, o que agora o primeiro-ministro veio reforçar: o ministro das Finanças forçou o abandono do cargo da efémera governante; o então secretário de Estado das Infraestruturas, que sabia da indemnização e a autorizou, apresentou o seu pedido de demissão, obviamente aceite; e o mesmo sucedeu com o então ministro das Infraestruturas e da Habitação, que se demitiu devido à turbulência gerada em torno do caso, mas que, posteriormente, admitiu que soubera da indemnização.

As oposições clamavam – e clamam – que o ministro das Finanças, Fernando Medina, sai fragilizado do caso, mas o governante refere, com razão, que não era ministro ao tempo, não tendo de saber o que se passava na TAP. Porém, não terá procedido ao escrutínio prévio ao convite à ex-administradora para integrar a sua equipa governativa. Pode – é certo – aduzir, como Pedro Nuno Santos, então ministro das Infraestruturas e da Habitação, que a Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) avalizou a sua idoneidade com vista à escolha para presidir à NAV Portugal – Navegação Aérea, entidade pública empresarial que garante a prestação dos serviços de tráfego aéreo – Serviço de Controlo de Tráfego Aéreo, Serviço de Informação de Voo e Serviço de Alerta. E, por seu turno, Fernando Leão, ministro das Finanças ao tempo, já veio garantir que não sabia da indemnização, enquanto Pedro Nuno Santos argumenta que não comunicou às Finanças a indemnização de Alexandra Reis, por ser usual a TAP prestar informação às duas tutelas.

Entretanto, Fernando Medina e Pedro Nuno Santos deram conhecimento público de que tinham solicitado à IGF uma auditoria a essa medida da TAP, por suspeita de ilegalidade.   

Por fim, a IGF concluiu que o processo de indemnização de 500 mil euros, com recurso a uma figura jurídica que não existe, isto é, um despedimento com acordo, resultou em decisão nula.

Ora, visto que é nulo o acordo da TAP com Alexandra Reis, a IGF comunicou ao ministro das Finanças, para decisão da TAP, a necessidade de a ex-administradora devolver 450 mil euros dos 500 mil euros brutos pagos. 

O Acordo de cessação de relações contratuais celebrado entre a TAP, S.A. e Alexandra Reis, envolvendo a compensação global de 500.000 euros, é nulo, exceto nas partes relativas à cessação do contrato individual de trabalho (CIT) e à respetiva compensação (56.500 euros). E o Acordo previa o pagamento da retribuição do mês de fevereiro de 2022 (17.500 euros), que é devido.

renúncia da administradora não confere direito a indemnização. O Estatuto do Gestor Público (EGP) não prevê a figura de “renúncia por acordo” e a renúncia ao cargo contemplada naquele estatuto não confere direito a indemnização, pelo que a compensação auferida pela cessação de funções enquanto administradora carece de fundamento legal.

Ainda que se tratasse de demissão por mera conveniência, o processo estaria desconforme à lei, por o ato de demissão não ter sido praticado pelo órgão social competente, pois o mesmo competiria ao acionista (por exemplo, em Assembleia Geral), e não haveria direito a indemnização, na medida em que a administradora cessante não reunia o requisito temporal exigido de 12 meses de exercício de funções no respetivo mandato.

Em qualquer dos casos, ex-administradora terá de devolver à TAP os valores que recebeu na sequência da cessação de funções enquanto administradora, os quais ascendem a 443.500 euros, a que acrescem, pelo menos, 6.610,26 euros, correspondentes a benefícios em espécie. Porém, terá direito ao abono dos dias de férias não gozados naquela qualidade.

Os pagamentos efetuados e os benefícios em espécie concedidos são suscetíveis de configurar responsabilidade financeira reintegratória e sancionatória.

A IGF concluiu que os ministros estão excluídos de responsabilidades financeiras, mas o chairman e a presidente executiva ariscam multas.

Em suma, não foi observado o estipulado no Estatuto do Gestor Público (EGP), cabendo a culpa aos decisores da empresa e também às assessorias externas.

Por conseguinte, a IGF formulou as seguintes propostas:

- a homologação do relatório pelo Ministro das Finanças, nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 276/ 2007, de 31 de julho, que aprova o regime jurídico da atividade de inspeção da administração direta e indireta do Estado;

- a ponderação, no âmbito do exercício da função acionista, da ponderação da regularização dos atos necessários à cessação de funções da ex-administradora, caso se entenda tratar-se de uma demissão por mera conveniência – ver artigos 37.º a 39.º do regime jurídico do setor público empresarial (RJSPE), os artigos 26.º e 27.º do EGP, o artigo 412.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), bem como a alínea b) do artigo 11.º dos Estatutos da TAP, S.A.) –, e da avaliação da atuação dos administradores envolvidos, quanto à inobservância dos normativos aplicáveis (ver artigos 23.º e seguintes do EGP, artigo 21.º do RJSPE e artigo 64.º do CSC);

- o envio relatório, após homologação, ao Ministro das Infraestruturas, para conhecimento;

- o envio subsequente do relatório à TAP, S.A. para que promova as diligências necessárias
à devolução dos montantes recebidos indevidamente, bem como à ex-administradora, para conhecimento; e

- o envio do relatório ao Presidente do Tribunal de Contas, em cumprimento do disposto na
alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto (
Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), na atual redação, para conhecimento da matéria de facto e de direito, designadamente das situações referidas no n.º 5 do relatório, em virtude de poderem ser integradoras de infrações financeiras.

As situações em apreço, cujo valor total ascende a 450 110,26 euros, são: o pagamento efetuado à então administradora por cessação de funções, previsto no acordo de cessação de relações contratuais, que ascendeu a 443 500 euros, por inobservância no disposto nos artigos 37.º a 39.º do RJSPE e artigos 26.º e 27.º do EGP; e a atribuição à mesma ex-administradora  de "benefícios" constantes do Anexo II do Acordo de cessação de relações contratuais, dos quais foram utilizados, até ao momento, pelo menos, os declarados pela TAP, S.A., que totalizam 6 610,26 euros, por inobservância nos disposto nos artigos 26.º e 27.º do EGP.

O ministro das Finanças, na posse do relatório da IGF, homologou-o e, em conjunto com o Ministro das Infraestruturas, João Galamba, exonerou, alegando justa causa, o chairman da TAP, Manuel Beja, e a presidente executiva, Christine Ourmiére-Widener, como proposto.

***

Longe de estar resolvida a questão jurídica, ainda pode haver muito caminho a percorrer. Desde logo, falta saber o que pensa a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, a quem a TAP terá ocultado a verdade da celebração do acordo com Alexandra Reis.

E, se esta, embora discordando das conclusões da IGF, disse acatá-las e devolver à TAP a importância em referência, não deixa de atirar com as culpas para as assessorias externas, designadamente para a SRS legalidade e para a que a assessorou à interessada na indemnização, bem como à ex-presidente executiva da TAP.

Manuel Beja, ex-chairman da TAP, refere que a presidente executiva, Christine Ourmiére-Widener, lhe comunicou a avaliação “coerente” de que não assinar o acordo indemnização sairia mais caro, mas aceita a decisão do governo.

Por seu turno, a presidente executiva dispara culpas em todas as direções: para o governo, que sabia do acordo da TAP com a ex-administradora e o autorizou; para o governo, visto que pensava que havia comunicação entre as tutelas; para as assessorias externas; para a IGF, que não a ouviu em sede de contraditório, tendo sido a única interveniente no processo que não foi ouvida, o que configura discriminação inaceitável; e, obviamente, para Alexandra Reis, a quem acusa de lançar escolhos no pano de restruturação e de falta de competência para o exercício de funções administração. E desresponsabiliza-se de erros jurídicos.

Portanto, prevê-se que, não se ficando pela decisão governativa, Christine Ourmiére-Widener recorra aos tribunais a contestar a decisão da IGF e a exoneração de que foi objeto.

Também as assessorias externas, nomeadamente a que esteve do lado da TAP, não aceitará, de bom grado, qualquer ónus culposo na decisão da TAP em relação à indemnização.

Assim, a resolução das questões jurídicas pode absorver muito tempo. E, dado que, a Justiça funciona ao retardador, ainda cairão este governo e este parlamento antes da decisão jurisdicional.

E a política do Estado quanto às empresas públicas continuará como dantes: umas, como a TAP com administradores sujeitos ao EGP, sem direito a indemnizações; outras, como a Caixa Geral de Depósitos (CGD), com administradores sujeitos ao CSC (exceto quanto à obrigação declarativa de rendimentos, de património e de interesses).

Resta saber se os demais administradores da TAP também foram para casa só com a compensação por cessação do CIT. E tenho muita pena de que a ilustre francesa não venha a receber os cerca de três milhões de euros de prémio por ter cumprido todos os objetivos da restruturação da TAP – despedindo pessoas, eliminando serviços, comprando aviões e carros topo de gama. E o culpado de tudo será o governo, as assessorias e a ex-administradora indemnizada e não indemnizada!

2023.03.07 – Louro de Carvalho


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