sexta-feira, 31 de março de 2023

Situações existenciais que levam à pobreza

 

Os estudiosos identificam três tipos de motivos da pobreza: o desemprego, a doença e o divórcio (três D) – situações que envolvem ruturas com impacto na vida das pessoas e das famílias.

O desemprego é a mais óbvia, embora haja alguns cambiantes a considerar, nomeadamente o que respeita à zona difusa entre emprego e desemprego. E o desemprego, além do próprio, envolve também os membros em idade ativa do agregado familiar, pois há uma inequívoca dimensão familiar na pobreza e no desemprego. Na verdade, as dificuldades existentes no mercado de trabalho atiram indivíduos e famílias para a pobreza e manifestam-se como ruturas.

Para lá do desemprego e a emparceirar com ele, são exemplo dessas ruturas a quebra de relações no trabalho com colegas ou com chefias, a precariedade no emprego e as más condições laborais.

A seguir ao desemprego, nos motivos que levam à pobreza, vem a doença, desde logo a doença crónica ou incapacitante (incluindo deficiência) com impactos variados na capacidade de as pessoas desenvolverem uma atividade laboral, no bem‑estar, na necessidade de, eventualmente, existir um cuidador (que fica impedido de exercer outra atividade ou, então fica sobrecarregado) e no acréscimo das despesas (medicamentos e outros bens de saúde). Assim, a doença de uma pessoa não é problema meramente individual, pois tem impacto alargado no círculo familiar.

E, a par da doença, a morte de familiares constitui um aspeto importante nas trajetórias de vida, com impacto na harmonia do agregado e no rendimento. Neste sentido, a morte de um provedor de recursos tem impacto nas dinâmicas de entrada na pobreza, mormente quando a intensidade laboral do agregado familiar é muito reduzida.

É de vincar que a intensidade laboral de um agregado familiar é considerada muito reduzida, quando os membros adultos trabalham apenas uma fração das horas mensais disponíveis para trabalhar, designadamente quando há pessoas desempregadas ou inativas (domésticas ou pessoas com deficiência, por exemplo).

Por último, vem o divórcio, atualmente, um fenómeno frequente, a que se equipara, para este efeito, o caso em que o casamento não foi formalizado, mas em que ocorre a separação definitiva dos casais em união de facto representa.

O divórcio próprio ou dos pais é algo que, em situações já de si são de grande fragilidade, lança facilmente as pessoas na pobreza, pela redução de rendimentos causada pela separação e pelos seus efeitos em cascata, incluindo a atividade laboral.

No entanto, mau grado a sua inegável capacidade para explicar a realidade, esta abordagem dos três D da pobreza tem evidentes limitações. Na verdade, analisar as desigualdades sociais a partir da perspetiva da pobreza é uma opção com forte componente política. Ao abordar a pobreza em termos individuais, minimizam‑se os fatores políticos, sociais e estruturais que contribuem para a produzir e reproduzir na sociedade. Por isso, não se pode perder de vista o contexto social em que o desemprego, a doença e o divórcio têm impacto na vida das pessoas: a desregulação do mercado de trabalho; as caraterísticas do tecido económico que favorecem determinados postos de trabalho, segmentados e desqualificados, mas que têm um papel importante na sobrevivência do sistema como um todo; a incapacidade do sistema educativo de cumprir as suas promessas de universalidade; a fragilidade da rede de segurança que o Estado proporciona, em caso de eventos disruptivos da vida dos indivíduos e das famílias, associados a perdas de rendimento; as insuficiências do apoio público à conciliação trabalho‑família.

A crise económica de 2009‑2014 acentuou as desigualdades de género, particularmente incidentes nas trajetórias de vida das mulheres, sobretudo nas mais idosas. Também pôs a descoberto, em vários casos, a maternidade como um fator de exclusão do mercado de trabalho.

Contudo, os três D não existem só nos processos de produção da pobreza, isto é, na entrada numa situação de pobreza, mas também estão presentes nos processos da sua reprodução ao longo da vida dos indivíduos e entre gerações e, até, da sua intensificação pelo aumento da distância ao limiar de pobreza. Com efeito, é claro que estes elementos estão presentes na trajetória de vida das pessoas, agravando situações já de si difíceis ou condicionando fortemente as suas vidas, reduzindo a sua margem de manobra e tornando as suas possibilidades de sair da situação de pobreza mais remotas. E, como nos processos de produção de pobreza, é preciso ter em conta os efeitos contextuais, quer sejam estruturais, mais associados ao funcionamento da sociedade (incluindo o da economia e o do Estado), quer sejam conjunturais, como os efeitos associados aos momentos de crise ou de crescimento económico.

Ainda sobre a entrada em situação de pobreza, há outro aspeto muito relevante: a vulnerabilidade. Trata-se de pessoas que estão acima do limiar da pobreza, mas para as quais qualquer acidente poderá redundar na sua entrada em situação de pobreza, bem como da sua família. O que distingue as pessoas vulneráveis não é a relação com o trabalho, a trajetória de emprego e o enquadramento familiar, mas o facto de terem rendimentos um pouco mais elevados do que as pessoas em situação de pobreza e de, em regra, não terem sido afetados pelos habituais fatores disruptivos. Todavia, uma situação de crise económica – como a de 2009‑2014, a que se iniciou em 2020 (provocada pela situação pandémica) e o atual panorama inflacionista –, em particular conjugada com um evento crítico associado a um dos três D, poderá lançá‑las, facilmente, numa situação de pobreza.

Uma crise económica, surgida de súbito, agrava a situação existencial de pessoas empregadas com um salário mínimo e até com um salário médio, bem como, por maioria de razão, a dos pensionistas, cujo poder reivindicativo é nulo.

Resta, ainda, atentar no caso da pobreza daquelas pessoas que entraram no Mundo sem qualquer posse de casa, de terra ou mesmo de família – os sem eira nem beira – sobretudo aqueles que ninguém procura ou aceita para emprego.

Por outro lado, ter emprego não significa não ser pobre. Com efeito, se o salário for de miséria (e, no futuro, a pensão de reforma for tão magra como acontece com a maior parte dos cidadãos), não garantindo a sobrevivência do trabalhador (e não contribuir para a da família) para o tempo de inatividade, como é o caso da velhice, a doença prolongada ou o desemprego de longa duração, temos um mercado de trabalho de pobres e de cada vez mais pobres, a par do grupo mínimo dos cada vez mas ricos e anafados. E a situação de pobreza gera males físicos e distúrbios mentais.      

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Os estudos publicados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFS) e pela Nova SBE, revelam que ter emprego não é sinal de abandono da pobreza. E João Pedro Tavares, presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), diz que os resultados desta avaliação confirmam a importância da iniciativa “Semáforo”, já em curso, na fase-piloto, monitorizando cerca de mil famílias.

O “semáforo” é uma ferramenta que avalia o estado de situação dos trabalhadores nas empresas ao nível da pobreza financeira e habitacional e ao nível da saúde, entre outros.

João Pedro Tavares  vê como “um mal menor” a promulgação, pelo Presidente da Republica, da Agenda do Trabalho Digno, por as medidas fazerem recair sobre as empresas respostas que deveriam ser dadas pelo Estado, por exemplo, os custos com a parentalidade e o emprego jovem.

A par do mérito das iniciativas da ACEGE, é de apontar a transferência da responsabilidade social da empresa para o Estado por parte de quem pretende menos Estado. No entanto, é de registar o tom crítico do presidente da ACEGE às disparidades espelhadas nas diferenças salariais nas empresas portuguesas, entre os gestores de topo e a os trabalhadores.

Confrontado como uma análise do Banco de Portugal (BdP), segundo a qual o grupo de trabalhadores mais penalizados pela contenção e pelos cortes salariais praticados pelas empresas entre 2006 e 2020 é o dos licenciados e dos mestres, contesta: “Esse é um grupo diferenciado em termos remuneratórios a cerca de 20% ou 30% acima dos restantes. Portanto, essa formação superior é uma formação que vale a pena ter e vale a pena apostar na educação.”

Perante a asserção de que o esbatimento da diferença entre salários, apontada pelo BdP, acontece por vários motivos, sendo um deles a subida do salário mínimo, João Pedro Tavares sustenta que o salário mínimo é um problema por si só, não no valor, mas no número de colaboradores que está a trabalhar, que é cerca de um em cada quatro, que recebe salário mínimo”. E observa que “o salário médio não sobe por múltiplos motivos”.

Fiquemo-nos por uma janela de razões. Muita atividade que enriquece o país é paga a custo muito baixo. E os lucros das empresas e os dividendos aumentam. Ora, aí os empregadores devem rever, quanto antes, as suas tabelas salariais. Porém, em muitos casos (e o Estado está neste âmbito), é difícil pagar o que é justo. Isto sucede pela magreza de receitas e pelos altos custos da produção e do funcionamento, nas empresas e na administração pública. O tema tem a ver com o mercado em geral. E as empresas não conseguiram acompanhar este surto inflacionista, porque muitas delas têm contratos estabelecidos, não fizeram atualização desses contratos e remuneram abaixo do que era a inflação.

Ora, daqui resultou uma perda de poder de compra dos trabalhadores de forma generalizada. Contudo, há empresas que remuneraram ao nível da inflação, há empresas que atribuem prémios e que procuram atualizar esses prémios, mas, de facto, não se pode esquecer que os níveis de pobreza e a disposição do limiar de pobreza em Portugal, cresceram depois da pandemia, processo que se agravou no último ano, que vinha numa trajetória relativamente positiva.

Porém, João Pedro Tavares expõe uma situação complexa: a ACEGE sabe que 30% dos pobres finais são trabalhadores, pelo que tem em marcha o “Semáforo”, um programa de transformação, de combate e de erradicação da pobreza.

O projeto torna visível o invisível, avaliando a situação de cada empresa no seu nível de pobreza. As famílias ficam ‘semaforizadas’ em amarelo, em verde ou em vermelho. E as que estão em amarelo ou em vermelho têm acesso a uma rede, assente na rede da economia social e do setor do Estado – através da Instituições particulares de Segurança Social (IPSS) e das redes da saúde – que, em coordenação entre todos, faz a assistência estas famílias, por outro lado, e tenta, por outro, levar a que seja a família a sair do estado de pobreza. Portanto, não se está a acudir aos casos mais precários, mas a famílias que, apesar de terem rendimentos, estão em situação de pobreza.

Não é a empresa que contacta a rede, pois, à luz da proteção de dados, não pode revelar qual é a família que está em assistência, mas a família acede a um centro de contacto e é redirecionada.

E o presidente da ACEGE, falando da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), defende que é de juntar a justiça intergeracional e dar novas oportunidades às novas gerações, constituindo a JMJ uma boa oportunidade para esta reflexão. E atira a rude informação: “Portugal é um país que nos últimos 20 anos decresceu no número de postos de trabalho, cerca de 77 mil postos. […] A União Europeia cresceu [em] 25 milhões de postos de trabalho e a Zona Euro [em] 19 milhões de postos de trabalho, mas Portugal teve o caminho inverso.” E dita: “Estes são precisamente os temas de origem que têm de ser debatidos, este é um tema crucial.”

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Será pouco? Porém, se o Estado, todas as associações empresariais e todas as ordens profissionais fizerem um pouquito, o panorama compor-se-á. Porém, melhor é mudar de paradigma.

2023.03.31 – Louro de Carvalho

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