terça-feira, 14 de março de 2023

Evitar e combater os crimes de abusos sexuais de menores

 

Face à comoção (nem sempre genuína e isenta) da sociedade civil pela atitude dúbia da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) quanto ao relatório apresentado, a 13 de fevereiro, pela Comissão Independente (CI) por si criada, o Parlamento, na convicção de que a situação é grave e atravessa toda a sociedade, está a postos para a tomada de medidas legislativas e de medidas de proteção às vítimas, bem como de tratamento adequado dos prevaricadores culposos ou doentes.   

A CI – que validou 512 testemunhos, apontou, por extrapolação, para pelo menos 4.815 vítimas, e enviou 25 casos ao Ministério Público (MP), que abriu 15 inquéritos, dos quais nove foram arquivados – entregou à CEP a lista de alegados abusadores, alguns no ativo, tendo esta remetido para cada diocese a decisão de afastamento de padres suspeitos de abusos e rejeitado atribuir indemnizações às vítimas.

Assim, a 8 de março, na Assembleia da República (AR), o Partido Socialista (PS), o Partido Social Democrata (PSD), a Iniciativa Liberal (IL), o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) e os deputados únicos do Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Livre subscreveram um requerimento para a constituição de um grupo de trabalho para avaliação de alterações à legislação sobre abusos sexuais praticados contra menores. Este requerimento, que só não é subscrito pela bancada do Chega, segundo os sete partidos proponentes, deverá funcionar no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.

Efetivamente, conhecido o relatório final “Dar Voz ao Silêncio” da CI para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica, os subscritores do predito requerimento entendem que “a gravidade dos testemunhos” e “a extensão dos abusos e o sofrimento das vítimas tornam premente uma reflexão profunda sobre o que deve ser feito para, na medida do possível, reparar os danos sofridos pelas vítimas e prevenir a ocorrência desta criminalidade grave no futuro”.

O requerimento considera que o relatório, “pela sua extensão, pela pluralidade das abordagens adotadas e pela transversalidade das recomendações deixadas (que convocam alterações legislativas e a necessidade de reforço de políticas públicas em distintos planos ou subsistemas sociais) merece análise mais detida, em particular nos aspetos tidos por essenciais no quadro de uma possível intervenção legislativa a desencadear e/ou tramitar em sede parlamentar”. Nesse sentido, uma reflexão “centrada na ponderação das necessidades das vítimas e nos seus direitos, beneficiaria da sistematização dos trabalhos através da constituição de uma estrutura no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias”.

Além da audição de organizações, mencionadas no relatório final da CI, os subscritores sustentam que importa “recolher elementos junto das áreas governativas relevantes, de forma a enriquecer os trabalhos preparatórios de futuras intervenções legislativas ou de fiscalização parlamentar”.

Assim, o grupo de trabalho, entre outras missões, deverá realizar audições “que se afigurem pertinentes”, no quadro dos dados tornados públicos através do relatório da CI, e analisar as “recomendações de alterações legislativas previstas no referido relatório, designadamente com recurso ao levantamento de direito comparado e de Direito da União Europeia relevantes”.

Os partidos subscritores do requerimento defendem também que se “assumam os trabalhos indiciários de especialidade de eventuais iniciativas legislativas que venham a ser aprovadas na generalidade sobre a matéria no decurso dos seus trabalhos”.

Nestes termos, a Comissão de Assuntos Constitucionais da AR aprovou por unanimidade, a 8 de março, várias audições propostas pelo PS, pelo PSD e pelo Chega, entre elas, a audição da Comissão Independente para o estudo de abusos sexuais de menores na Igreja, do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, e da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, entre outras entidades.

Já a 23 de fevereiro, em declarações aos jornalistas na AR, o presidente do Chega, André Ventura, anunciou que o partido pretendia propor a criação de um grupo de trabalho “especificamente destinado aos abusos sexuais de menores e ao acompanhamento desta matéria”, com o objetivo de se ter na AR um grupo permanente de “aperfeiçoamento legislativo, institucional, de trabalho”, para constituir “um edifício jurídico sólido em matéria de combate ao abuso sexual de menores”.

A 9 de março, a AR debateu uma fixação da ordem do dia, agendada pelo Chega, que ficou de fora dos subscritores do referido requerimento, sobre o combate ao abuso sexual de menores em Portugal. E, subsequentemente, na sessão plenária extraordinária, a AR debateu, na generalidade, e aprovou, por unanimidade, o alargamento da idade da vítima para feitos de prescrição de crimes de abusos sexuais, sob projetos de lei do Chega, da IL, do BE e do PAN.

A sessão ficou marcada por críticas à “instrumentalização” do partido de André Ventura e por palavras de “agradecimento” à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica e de “coragem” às vítimas ouvidas pela mesma. E o PS, por seu turno, apresentou um conjunto de propostas para combater os abusos sexuais de menores, que incluem um programa de acompanhamento e fiscalização (compliance) para organizações que recebem crianças e alterações ao regime de denúncia de abusos.

A CI já tinha proposto o alargamento da idade da vítima em sete anos, ou seja, a prescrição deste tipo de crimes ficaria suspensa até que a vítima complete os 30 anos – hoje, a nossa lei prevê que este prazo termine aos 23 anos. O Chega, o PAN e o BE apresentaram projetos de lei neste sentido. Já a IL foi mais longe e propôs o alargamento até aos 40 anos. Os partidos com assento parlamentar aprovaram por unanimidade todas as propostas, à exceção da do Chega. Agora, deverão ‘uniformizar’ o projeto de lei durante a aprovação na especialidade.

“O BE traz esta proposta não atrás de um ímpeto populista, mas tendo já reconhecendo a necessidade revisão, mas esperando pelo parecer da comissão como garantia de idoneidade”, defendeu Pedro Filipe Soares. A IL, na voz de Patrícia Gil Vaz, justificou a posição do seu partido. “Sabemos que a média de quem denúncia o abuso é de 52 anos, 77% as vítimas nunca apresentaram queixa e só 4% formalizaram em tribunal. Além disso, muitos destes crimes acontecem no seio familiar e os jovens saem cada vez mais tarde de casa dos pais”.

Os projetos do PS, que deverão ser detalhados no grupo de trabalho para avaliação de alterações à legislação sobre abusos sexuais praticados contra menores, subscrito por todos os partidos à exceção do Chega, passam pela “obrigatoriedade de programas de compliance das organizações que acolhem crianças”, explicou a socialista Cláudia Santos, que deverá incluir a “fiscalização” através de “pessoas externas” e a aplicação de “códigos deontológicos e guias de boas práticas”, bem como a alteração do regime de denúncia de abusos, para que “qualquer pessoa com contacto com crianças passe a ter o dever de denúncia de vítimas, sejam elas crianças ou adultos, especialmente em situações de vulnerabilidade”.

Além da proposta que seguia a recomendação da CI, o Chega apresentou quatro projetos de lei, todos rejeitados na AR. Entre as propostas estava o agravamento das penas por crimes de abuso sexual ou um Plano Nacional de Combate à Pedofilia.

“Este tema não se resolve com lei penal, mas com canais de denúncia adequados e intervenção junto de grupos vulneráveis. Não é com um rolo compressor de direitos, liberdades e garantias”, disse Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS. Sobre o agravamento de penas, a socialista Cláudia Santos acrescentou: “O Conselho Superior da Magistratura e do Ministério Público já se pronunciaram e não podiam ser mais arrasadores. Há problemas de inconstitucionalidade.”

Também a bancada da IL acusou o Chega de hipocrisia e de aproveitamento político das vítimas. A este respeito, João Cotrim de Figueiredo vincou: “O exemplo de hipocrisia está nestes diplomas de inspiração securitária, como também na proposta de castração química que voltaram a mencionar. Não resolve nada, não impede reincidências. Mesmo assim, insistem. Não, porque estão preocupados com as vítimas, mas porque querem ser vistos a apoiar qualquer coisa com a palavra castração. Eis a essência de populismo.”

André Ventura classificou como “vergonhosa” a ausência do governo no debate e garantiu que a sua posição, quanto à castração química, não fere a dignidade humana. “Acreditamos na dignidade da pessoa humana, mas queremos a proteção das pessoas de bem”. E assegurou que o seu partido está “orgulhosamente só” na “luta contra pedófilos em Portugal”. A isto Eurico Brilhante Dias retorquiu. “Para nós, o ‘orgulhosamente sós’, nunca mais. 25 de abril sempre.”

Outra das críticas passou pela posição contraditória do partido de André Ventura em relação ao grupo de trabalho sobre abusos sexuais – subscrito por todos os partidos, à exceção deste. “O Chega apresentou um requerimento que pede um grupo de trabalho. Porque é que crítica se vem fazer o mesmo? É incompreensível”, atirou Fernando Negrão, deputado do PSD.

O grupo de trabalho prevê, como se disse, audições “que se afigurem pertinentes” no quadro dos dados presentes no relatório da CI. Antes, a comissão de Assuntos Constitucionais já tinha aprovado, por unanimidade, as audições propostas pelo PS, pelo PSD e pelo Chega, a José Ornelas, presidente da CEP, a Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, à CI e à ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro.

E a CEP, devagar, vai chegando às posições que vêm a ser defendidas: criação de um grupo permanente de contacto para prevenção e denúncia, formação de agentes da Ação Pastoral, vigilância, acompanhamento médico e psicológico das vítimas, retirada provisória de funções de sacerdotes suspeitos, por parte de cada bispo diocesano, até eventual condenação e, mesmo, uma responsabilidade solidária em termos indemnizatórios. Por sua vez, a Fundação JMJ (Jornada Mundial da Juventude) assinou, com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), um protocolo com vista à formação de voluntários da JMJ para a prevenção e deteção de casos de abuso sexual no quadro da JMJ. A Igreja, pela índole milenária, tornou-se pesada, mas vai indo.

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Embora em ambiente meio quente, a AR não legisla sobre o acontecimento, porquanto será tudo estudado e aprimorado no referido grupo de trabalho. E, se o aumento de penas comportaria problemas de constitucionalidade, aumento da idade para a prescrição é razoável. Importa evitar e combater o crime e salvar as pessoas.

2023.03.13 – Louro de Carvalho

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