terça-feira, 28 de março de 2023

Crise da habitação é ameaça aos direitos humanos em Portugal

 

A Amnistia Internacional (AI) considera que as medidas tomadas pelo Governo, até ao fim de 2022, foram insuficientes para garantir casas acessíveis a quem precisa e alerta para despejos forçados que afetam, “desproporcionalmente”, a população cigana e a de origem africana

No relatório de 2022, a AI aponta a Portugal as limitações ao direito à habitação, bem como a continuidade da brutalidade policial, da violência e da discriminação de género, da exploração de migrantes e da degradação ambiental

O relatório anual da AI sobre o estado dos direitos humanos no mundo em 2022, lançado a 28 de março, traça os pontos negros identificados em Portugal, indo o seu primeiro alerta para a continuação da violência policial, referida em edições anteriores, e para a desresponsabilização dos agentes por má conduta. E a crise da habitação em Portugal, identificada há alguns anos, é o terceiro ponto que suscita críticas à AI. “As medidas tomadas pelo Governo [em 2022] foram insuficientes para melhorar as condições de habitação e [para] garantir casas acessíveis, apesar dos dados divulgados no final de 2021 mostrarem que mais de 38 mil pessoas precisavam de um teto.” A par disso, sobressai a manutenção de relatos de despejos forçados que deixam as pessoas em piores condições habitacionais (em alguns casos de pessoas sem-abrigo), afetando, “desproporcionalmente”, a população de etnia cigana e a de origem africana.

Casos de exploração de milhares de trabalhadores migrantes em trabalhos na agricultura, a maioria proveniente do sudeste asiático, bem como as condições inadequadas de habitação em que vivem, suscitam contundentes reparos daquela organização internacional, que apresenta como exemplo o caso de Odemira, revelado em janeiro de 2022. Em junho, o Grupo de Peritos sobre o Tráfico de Seres Humanos (GRETA), do Conselho da Europa, que visitara o país em 2021, revelou que a exploração laboral, com a habitação em condições sub-humanas, se mantinha como a forma mais comum de abuso das vítimas, atingindo sobretudo o setor agrícola e o da hotelaria.

Entretanto, o Governo apresentou a consulta pública o pacote “Mais Habitação”, duramente criticado pelas câmaras municipais, que reivindicam para si mesmas tal competência, a par dos investidores privados, por setores grados da população, sob o espectro do ataque à iniciativa privada e ao direito à propriedade privada, e pela generalidade dos partidos à direita.

Por sua vez, os partidos à esquerda consideram insuficientes as medidas do pacote; e os inquilinos aceitam-no, mas com a reserva de não prever a revogação da chamada Lei Cristas, ou seja, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que aprova medidas para dinamizar o mercado de arrendamento urbano, nomeadamente, alterando o regime substantivo da locação, designadamente conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento, alterando o regime transitório dos contratos celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (que aprovou o NRAU – novo regime de arrendamento urbano), reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo, e criando um procedimento especial de despejo do local arrendado que permita a célere recolocação daquele no mercado de arrendamento.   

A somar a estas críticas, junta-se a tomada de posição pública de Cavaco Silva a reforçar a ideia da lei Power/Point, importada de outros setores criticantes, mas atribuindo a sua elaboração a “ignorantes marxistas”. E, quase logo a seguir, o Presidente da República, que tinha chamado “melão” ao pacote, matou-o politicamente, ao denominá-lo de lei-cartaz, destinado a ficar no papel, pois é um pacote inoperacional.

Resta, pois, saber o que fazer do pacote “Mais Habitação” e dos dois mil e setecentos contributos que a consulta pública lhe ofereceu.

Entretanto, os investidores privados fizeram da casa a mercadoria de luxo, inacessível ao comum dos cidadãos, quer pelos altos preços de compra, quer pelo alto preço de renda mensal. E as autarquias parecem ter acordado, agora, para a sua responsabilidade no fomento da habitação a preços mais acessíveis.

Neste contexto de especulação e de exploração, os centros das grandes cidades ficam inabitáveis pela população da classe média. E os observadores opinam que não é justo facultar a famílias de carteira meio recheada que, à custa dos impostos deles, vivam nos centros de cidade, como se essas famílias também não pagassem impostos e o seu trabalho não constituísse uma significativa mais-valia para a sociedade.  

Assim, a par dos altos preços de compra e venda de casa, as rendas inflacionadas e os despejos fazem aumentar os pedidos de casas às autarquias da área metropolitana de Lisboa (AML) e da área metropolitana do Porto (AMP), mas só há vagas para 2,5% dos candidatos, quando há mais de 26 mil famílias à espera de habitação social.

Pedir casa à câmara é o último recurso. Feitas as contas, somadas as despesas, subtraídas ao rendimento disponível, o resultado não dá para pagar habitação no mercado de arrendamento comercial. Mais de 26 mil famílias a residir na AML e na AMP não veem forma de encaixe nesta contabilidade a renda inflacionada de um imóvel e de manutenção do orçamento familiar acima do negativo. E quando têm casa, basta uma pequena subida na renda ou na prestação (no crédito à compra de casa), uma cessação de contrato de trabalho, um despedimento, uma doença, um filho não programado, a conta do supermercado anediada pela guerra, para tudo se desequilibrar, pois não há aonde ir buscar um suplemento. Resta a candidatura, no concelho de residência, habitação municipal, de renda ajustada ao rendimento. Mas podem ser anos e anos de espera.

A crise da habitação juntou-se à crise económica e criou condições para abalar a estrutura das famílias mais carenciadas, as primeiras a chegar à lista de espera e as que ocupam os lugares cimeiros. Em 28 autarquias da AML e da AMP, há 26.312 agregados familiares à espera de vagas sociais, quase 19 mil, na região da capital, e cerca de 7400, na área da Cidade Invicta. A maioria dos pedidos (15.884, o equivalente a 60%) deu entrada ou foi renovada em 2022, segundo o Expresso.

 

Era preciso aumentar, ali, em mais de um terço, o número de imóveis municipais. Porém, a capacidade de resposta está muito a leste da realidade. Para entrega imediata, havia, no final de 2022, só 658 casas: 471, na AML, e 187, na AMP. Na área da AML, 13 dos 18 concelhos não tinham, então, qualquer vaga disponível, o mesmo sucedendo com quatro concelhos, na AMP.

Estão identificadas mais 2509 habitações municipais desocupadas, mas precisam de obras. Em 2022, só 913 famílias (3,4% das candidaturas) receberam uma chave da câmara. A este ritmo, seriam precisos 29 anos para acabar com a espera e só se se travassem novas inscrições.

Na generalidade dos concelhos, a atribuição dos imóveis sociais faz-se com base na classificação por pontos, que soma critérios de risco, carência ou exclusão (número de filhos, desemprego, rendimento, deficiências, problemas de saúde, casa degradada, ordem de despejo, etc.), só havendo resposta para os casos mais graves dos mais graves.

A maioria destes sem-casa não é sem-abrigo. São famílias monoparentais ou alargadas que suportam a espera em quartos, em casa de parentes, em imóveis insalubres ou ocupados, num T0 para cinco, num anexo abarracado, numa garagem.

O problema é maior na área metropolitana da capital, que concentra 71% dos agregados em espera por uma habitação. Porém, a pressão não se fica pelos concelhos mais povoados. Com a fuga de população para as localidades limítrofes da AML, atrás de rendas comportáveis, a especulação imobiliária seguiu-a, aproveitando a procura. E municípios com pouca habitação social, porque nunca tiveram pedidos que motivassem a sua construção ou aquisição, veem-se a braços com listas de espera, algumas até superiores ao património edificado e totalmente lotado.

Entre as razões apresentadas para o pedido de casa às câmaras, contam-se: o aumento das rendas e os despejos; as “dificuldades económicas para fazer face ao pagamento mensal da renda e às despesas fixas”; a “especulação dos preços da habitação”; e a “escassez de casas para arrendar”. Rendas é a palavra mais repetida, despejos e penhoras não ficam atrás.

A solução para a falta de habitação social passa pelos milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que financiará a construção de novas habitações municipais – bairros e prédios dispersos –, a aquisição para reabilitação e a reabilitação de imóveis públicos. A meta é a criação de 26 mil fogos para famílias em situação carenciada e sem acesso a habitação condigna e o reforço da habitação acessível a jovens e a famílias da classe média.

O Programa de Arrendamento Apoiado, dirigido aos agregados em maior privação, tem uma lista de espera de 7093 candidaturas (a maior da AML e da AMP), subtraídos os pedidos inválidos, mas as casas vagas no imediato passam pouco das 400. E os pedidos não param de aumentar. A estes números somam-se as famílias que se inscrevem no Programa de Renda Acessível, com a média de 3485 em cada concurso, e as 800 candidaturas ao Subsídio Municipal de Arrendamento Acessível, que estiveram abertas até 28 de fevereiro. E, por exemplo, em Lisboa, a Carta Municipal de Habitação, entre outras medidas, prevê a requalificação de bairros sociais esquecidos, onde foram identificadas 13.150 situações de habitação indigna; a construção de mais 9624 fogos de habitação municipal, sendo que atualmente 930 estão em obra, 1721 em projeto e 5967 em estudo; o regresso das cooperativas; e a compra de imóveis devolutos.

A conclusão da revitalização do parque habitacional, para a maioria dos empreendimentos municipais, é o fim de 2025, quando têm de estar executados os fundos do PRR. Para a maio­ria das famílias em lista de espera, a casa está a quase três anos de distância.

Enfim, como diz o primeiro-ministro, “parodiando” o “Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, “em país onde não há habitação todos falam e têm alguma razão”. Por isso, governo e autarquias têm um largo e longo caminho a percorrer, na certeza de que, para lá das divergências ideológicas e outras, “Salus Reipublicae lex suprema esto” (A salvação da comunidade seja a suprema lei). E todas as autarquias devem assumir o problema e a solução.

2023.03.28 – Louro de Carvalho

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