sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Façam justiça, mas poupem-nos à humilhação da justiça-espetáculo

 

Para haver justiça, os seus operadores e, sobretudo, os decisores têm de procurar a verdade por todos os meios possíveis e nunca desvalorizar qualquer elemento que possa fazer luz em relação à verdade. Ao mesmo tempo, é mister que saibam agir e decidir ponderosamente na busca da equidade segundo a justa medida e a proporção, usando de comedimento e de clareza na redação de despachos, sentenças e acórdãos, bem como na comunicação com o público.

A justiça tem como inimigos, em termos da ineficácia e da equidade: a parcialidade, a diferença de tratamento de réus e de arguidos, a morosidade, a complexificação artificial, a proclamação fastidiosa do número de crimes (na ordem das centenas, por vezes) ao arguido, a fuga do segredo de justiça, quando a ele há lugar, o megaprocesso, a sede de protagonismo e o espetáculo humilhante e desnecessário. Por outro lado, o público não precisa de saber mais nada além do necessário sobre os erros ou sobre as mazelas do arguido (o que interessa para que se faça justiça).

Estes considerandos vêm a propósito do que se passou nos últimos dias com Duarte Lima.    

Não há muito tempo, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), antes de concluído o acórdão que resultaria na libertação efémera do recluso, perguntou ao Tribunal de Sintra se interessava a sua prisão preventiva ou a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE), caso viesse a ser libertado no âmbito do processo de que estava a cumprir pena. A resposta foi a de que, “nos presentes autos aguarda-se o julgamento do arguido”, e “por ora não se encontra em execução qualquer medida de coação”.

Nestes termos, a 29 de setembro, o desembargador Calheiros da Gama mandou libertar o recluso, visto que já lhe tinha dado razão no recurso que apresentou depois de o Tribunal de Execução de Penas (TEP) lhe ter recusado a liberdade condicional a dois meses do cumprimento total dos seis anos de prisão a que fora condenado por burla ao Banco Português de Negócios (BPN).

Porém, mal saiu da cadeia, sozinho, foi abordado por agentes da polícia – uns à civil e outros devidamente uniformizados – na posse de mandado de detenção do Ministério Público (MP) para ser presente a um juiz que determinaria, no dia 30, as medidas de coação a que ficaria sujeito até ao início do julgamento do homicídio de Rosalina Ribeiro, marcado para 23 de novembro.

Esta intervenção policial, que britou a liberdade de pouco mais de um minuto, foi profusa e ostensivamente transmitida em direto por um dos canais de televisão.

O advogado do arguido, “absolutamente indignado”, fala de “humilhação pública” e diz que “a justiça sai muito mal disto”, referindo, sem apontar a culpa a alguém, que sabe não ter havido “vontade em evitar isto”.

O referido desembargador do TRL deu provimento ao recurso de Duarte Lima por este haver demonstrado “relevante e demonstrada capacidade objetiva de readaptação”, de modo que “as expectativas de reinserção são manifestamente superiores aos riscos” para a comunidade pela “antecipação da sua restituição à liberdade”. Ou seja, há séria probabilidade de o recluso, uma vez em liberdade, adotar “um comportamento socialmente responsável, do ponto de vista criminal”. Por outro lado, o recluso assumiu a prática dos factos que levaram à sua condenação e manifestou vontade em pagar a indemnização a que foi condenado – 18 milhões de euros que o Estado ainda não executou, nem justificou porque não o fez.

E, para o desembargador, o facto de ter pendente uma acusação de homicídio qualificado não era suficiente “critério para não beneficiar da liberdade condicional suficiente”.

Paralelamente ao recurso para o TRL, o advogado de Duarte Lima tentou que o TEP o libertasse por razões de saúde, aduzindo o impedimento de virar páginas de livros e a necessidade de tomar medicação para as dores que o deixam prostrado.

Entretanto, na audição ante um juiz de instrução criminal, o MP queria que o arguido aguardasse o início do julgamento do homicídio em prisão preventiva ou domiciliária (OPHVE). Mas o debilitado estado de saúde do ex-líder parlamentar do PSD – 80% de incapacidade – levou a juíza a optar por libertá-lo com a obrigação de se apresentar uma vez por semana numa esquadra e de entregar o passaporte. Assim, após liberdade efémera, quebrada pela detenção espetacularmente visionada no país, Duarte Lima é um homem livre com algumas restrições a aguardar o início do julgamento do homicídio longe da prisão da Carregueira onde passou os últimos três anos, cumprindo uma pena de seis a que foi condenado pela burla de 18 milhões de euros ao BPN.

Apesar de a procuradora ter solicitado uma medida de coação privativa de liberdade – prisão preventiva ou domiciliária (OPHVE) –, alegando perturbação da ordem pública e perigo de fuga, a juíza optou pela libertação, mesmo admitindo tais perigos. Na decisão, pesou o estado de saúde do arguido que, aos 66 anos, sofre de diversas maleitas. E a comunicação social enumera tanto as antecedentes como as atuais – algo a que, em meu entender, o arguido não tem de prestar contas ao público (por isso, abstenho-me de as transcrever), porque em nada contribui para o apuramento da verdade e pode deixar passar a ideia de que o arguido merece a compaixão pública e a prerrogativa de não sujeição a julgamento.

Nem oito nem oitenta. Faça-se justiça, prescinda-se do espetáculo e não se crie compaixão, que é tão maléfica como a vergasta ou como a autovitimização.    

Segundo a juíza, mesmo havendo perigo de fuga, não é obrigatória a aplicação de uma medida restritiva de liberdade, mas uma “necessária” para o evitar. E, tendo em conta o estado de saúde do arguido, são suficientes as apresentações semanais.

Para alguns, importante é prender; investigar e julgar virão depois. Perturbação da ordem pública neste arguido não se vê agora como. Teoricamente, perigo de fuga haverá sempre, mesmo com passaporte entregue e apesar de doente (há quem ande lá por fora com alzheimer), pois a imaginação não tem limites. Alarme social houve aquando da notícia de suspeita de homicídio, mas agora não.

***

Justiça-espetáculo não é justiça. Pode ser agenda política ou furo mediático. Um processo judicial, que é de natureza pública, a menos que o tribunal entenda que o decoro fica prejudicado, não se presta necessariamente ao espetáculo. Antes, faculta ao público, diretamente e/ou através dos jornalistas, toda a informação (e só essa) que seja suficiente para mostrar como é feita justiça, aqui e agora, como se respeitam os princípios, normas e valores do direito, como se chega às decisões, como estas são fundamentadas e como se defende o interesse público – respeitando sempre as pessoas, sejam elas as vítimas, sejam elas os arguidos. São sempre as pessoas que estão em jogo, independentemente da sua condição económica, social ou política.

Desgraçadamente, o caso de Duarte Lima não é o único a lamentar pela excessiva exposição aos holofotes e à pantalha de alguma comunicação social, ávida de audiências.

Só a título de exemplo, recordo a espetacular entrada do juiz Rui Teixeira na Parlamento, rodeado de câmaras de TV, a solicitar o levantamento da imunidade do então deputado Paulo Pedroso para ser constituído arguido no processo da Casa Pia (facto desproporcionado, pois não foi apanhado em flagrante), que esteve em prisão preventiva, mas que não chegou a ser pronunciado, pelo que foi posto em liberdade. A isso o seu grupo parlamentar respondeu com apoteótica receção no Parlamento, aquando da sua libertação. Porém, da condenação pública não se libertou.

A “Operação Marquês” teve o seu primeiro momento espetacular com a detenção de José Sócrates na manga do aeroporto de Lisboa sob a mira das câmaras de televisão, logo seguido das diligências de busca na casa ou nas casas do mesmo. A entrada do estabelecimento prisional de Évora tornou-se especial palco de espetáculo nacional nos vários meses em que lá esteve o detido n.º 44 e a saga continuou nas páginas dos jornais e nos vídeos divulgados.

A televisão não adivinha estes momentos, mas há alguém que a avisa. Quem será?

Lembro, ainda, pela inanidade de eficácia e pela sede de espetacularidade, a apresentação, sob as câmaras da televisão e negociada pela respetiva advogada, do arguido Pedro Dias, apos ter andado a monte na sequência dos incidentes criminais de Aguiar da Beira.   

É certo que, nos casos apontados, não se trata de ação judicial por parte de tribunal que emita decisões condenatórias ou absolutórias. Porém, são operadores de justiça – polícias, procuradores, advogados e juízes de instrução – que fazem as diligências necessárias para se ter a probabilidade sustentável de levar (ou não) alguém a julgamento a fim de pagar pelos atos praticados.

Mesmo nos casos em que se fez justiça, não foi o espetáculo que a fez ou a favoreceu; apenas deu visibilidade a quem dela tinha necessidade ou ambição. Nos outros casos, só levou a que a opinião pública fizesse a inapelável condenação das figuras-alvo (contrariando a presunção de inocência), podendo, além da sede de protagonismo, ter indiciado algum resquício de ressabiamento por medidas tomadas ou negadas e ter prejudicado o andamento dos respetivos processos.

É, pois, imperioso que se faça justiça, mas que, sem negar ou diminuir a informação ao público, se renuncie ao espetáculo vazio de conteúdo e pleno de sensacionalismo. Punam-se os erros, respeitem-se as pessoas!

  2022.09.30 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Apontados abusos sexuais de ex-administrador apostólico de Díli

 

A ser verdade, é de lembrar que “em bom pano cai a nódoa”, como reza o provérbio, ou “nem sempre as pessoas são o que delas se pensa. Recordo-me de um cónego da Sé de Lamego, muito conhecido ao tempo, a quem alguém dizia que “Vossa Reverendíssima é um santo, por isso, já tem o céu garantido para quando morrer”. Porém, ele retorquia: “Isso é o que dizeis agora, mas, quando todos nos encontrarmos no fim do mundo, ides apontar: ‘Olha o malandro’!”  

O jornal holandês De Groene Amsterdammer publicou, a 28 de setembro, testemunhos de alegadas vítimas de abusos sexuais, quando eram menores, sobre crimes que terão sido cometidos, durante vários anos, por D. Carlos Filipe Ximenes Belo, ex-administrador apostólico de Díli e Nobel da Paz, em parceria com José Manuel Ramos-Horta

Na edição online, o jornal revela ter ouvido várias vítimas e vinte pessoas com conhecimento do caso, inclusive “individualidades, membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil e elementos da Igreja”. Pelos vistos, mais de metade das pessoas ouvidas conhecem pessoalmente uma vítima dos abusos e outros têm conhecimento do caso. Porém, a jornalista Tjirske Lingsma refere que outras vítimas recusaram contar a sua história nos media.

O jornal holandês em causa refere que os alegados abusos terão começado ainda antes de Ximenes Belo ser nomeado bispo, quando era superior nos Salesianos de Dom Bosco, em Díli, na década de 1980, em cujo colégio de Fatumaca era professor e diretor. Porém, os timorenses ouvidos dizem que os abusos são da década de 1990. Uma das vítimas, hoje com 42 anos (em 2002, tinha 22), alega que, ainda menor, foi alvo de abuso sexual na casa de Ximenes Belo, a troco de dinheiro.

Algumas primeiras denúncias dos alegados abusos foram dadas a conhecer a jornalistas no início deste século. Formalmente, porém, não há detalhes públicos sobre se as denúncias chegaram a ser formalizadas quer junto das autoridades policiais quer junto do Vaticano.

As primeiras investigações ao alegado abuso remontam a 2002, quando um timorense denunciou que o irmão era vítima de abuso. E, em novembro desse ano, Ximenes Belo anunciou a resignação do cargo, que exercia desde 1983, alegando problemas de saúde e a necessidade de um longo período de recuperação. “Estou a sofrer de fadiga mental e física, o que requer um longo período de recuperação” – dizia em comunicado, informando ter solicitado à Santa Sé a renúncia.

O antigo prelado, hoje com 74 anos, informou, entretanto, que o seu pedido, formulado ao abrigo do cânone 401 § 2 do Código de Direito Canónico, fora aceite pelo Papa São João Paulo II.

Na verdade, o Vaticano confirmou, a 26 de novembro de 2002, através da Sala de Imprensa da Santa Sé, e a 27, através do L’Osservatore Romano, que “o Santo Padre aceitou a renúncia ao cargo de Administrador Apostólico ‘Sede vacante et ad nutum Sanctae Sedis’ de Díli (Timor-Leste), apresentada por Sua Excelência Dom Carlos Filipe Ximenes Belo, bispo titular de Lorium, em conformidade com o cânone 401 § 2 do Código de Direito Canónico”. Ao mesmo tempo nomeou Dom Basílio do Nascimento administrador apostólico de Díli.

A saída de Ximenes Belo de Timor-Leste causou grande surpresa na sociedade timorense, porque, até então, o bispo nunca havia dado a entender essa vontade. Mas, em entrevista à agência de notícias católica UCA News (Union of Catholic Asian News), em 2004, explicava que saíra do cargo em Díli para ser sacerdote assistente em Moçambique, estando então a residir em Portugal.

Com a saúde restabelecida, em meados de 2004, D. Ximenes Belo aceitou a ordem da Santa Sé para fazer trabalho missionário na Arquidiocese de Maputo, como membro da congregação dos salesianos (congregação de que era originário) em Moçambique, entre 2004 e 2005. Depois regressou a Portugal, aos Salesianos na cidade do Porto, onde reside atualmente.

Ainda assim, os contornos da saída de Ximenes Belo de Timor-Leste, em novembro de 2002, nunca foram totalmente clarificados pelo Vaticano, com o assunto a tornar-se tabu no país.

Fontes da Igreja em Timor-Leste, segundo a Lusa, explicaram que “nenhuma vítima” denunciou alegados abusos, de forma presencial tanto na Nunciatura como na Igreja timorense, não havendo informações de qualquer denúncia junto das autoridades civis. Contudo, apontam a realização de uma investigação, cujos contornos não são conhecidos.

Em 2020, em declarações à Lusa, um elemento superior da Igreja Católica em Díli, a coberto do anonimato, escusou-se a revelar se houve demissão formal de Ximenes Belo por João Paulo II. Porém, falou de instruções para “ter um perfil baixo, não viajar, não mostrar insígnias episcopais, ter uma atitude modesta”.

Parte do silêncio sobre o Nobel da Paz dever-se-á ao facto da postura do Vaticano relativamente a abusos sexuais na Igreja ter mudado com os dois últimos papas (Bento XVI e Francisco), com a adoção de uma política de “tolerância zero”, que vale em todos os casos, e também em Timor. Houve, de facto, uma consciencialização progressiva da Igreja e da sociedade sobre a gravidade do assunto e sobre a atitude a assumir perante ele: a Igreja deve expulsar (Não crê na recuperação das pessoas?!) e corrigir ao máximo possível este crime dentro da Igreja, sobretudo no clero.

Nestes crimes, independente do teor da legislação criminal dos países, para a Igreja “não há prescrição” e, mesmo anos depois de investigados, recebem a sanção jurídica e penal da Santa Sé.

O caso está com os órgãos competentes da Santa Sé, disse à Lusa Marco Sprizzi, representante do Vaticano em Timor-Leste, sem confirmar se o prelado foi investigado. “Estão a examinar este artigo e o seu conduto e de outros que estão a ser publicados neste momento. E, a partir disto, qualquer resposta virá diretamente da Santa Sé.” O assunto está com o Vaticano e com a Santa Sé, não tendo já competência direta a Igreja local nem a Nunciatura.

Marco Sprizzi disse à Lusa que o jornal holandês foi “correto” e colocou várias perguntas à Nunciatura em Díli que foram “transmitidas aos competentes Dicastérios da Santa Sé”. Todavia, recusou-se a confirmar se foram impostas restrições ao bispo, como o impedimento de visitas a Timor-Leste, confirmando só que “não foi laicizado” (retirado das funções eclesiásticas). E, questionado sobre a saída de D. Ximenes Belo em novembro de 2002 – o que, na altura, causou bastante surpresa – Sprizzi recordou que a “renúncia voluntária de Ximenes Belo se baseou numa razão de saúde” e que a resposta oficial “não pode mudar, tendo sido dada com base no direito canónico”. Porém, se algo tiver de ser acrescentado, sê-lo-á pelos órgãos competentes.

Por seu turno, a 29 de setembro, em comunicado, Matteo Bruni, porta-voz do Vaticano, diz que o gabinete que lida com casos de abuso sexual recebeu alegações “sobre o comportamento do bispo” em 2019 e que, no prazo de um ano, tinha imposto sanções. Tais sanções incluem limites aos movimentos do bispo e ao exercício do seu ministério, bem como a proibição de manter contactos voluntários com menores ou com Timor-Leste.

O mesmo comunicado esclarece que estas medidas foram “modificadas e reforçadas” em novembro de 2021 e que, em ambas as ocasiões, o bispo aceitou formalmente o castigo.

Olav Njølstad, diretor do Instituto Nobel da Noruega veio a terreiro dizer que está “fora do âmbito de competências do Comité” retirar o Nobel da Paz a Ximenes Belo, escusando-se a comentar o caso. “O Comité muito raramente comenta o que um laureado com o Prémio da Paz pode fazer ou dizer nos anos após receber o prémio ou sobre o que um laureado pode ter feito no passado sem relação com o seu esforço premiado.” E, porque os estatutos excluem esta opção, está fora do âmbito de competências do Comité “retirar um prémio uma vez atribuído”.

José Ramos-Horta, Presidente da República de Timor-Leste, que foi galardoado com o Nobel da Paz, em 1996, ao mesmo tempo que Ximenes Belo, não comentou as suspeitas dos alegados abusos sexuais do ex-administrador apostólico de Díli, aguardando por mais informações da Santa Sé. Viu as declarações da Santa Sé, através da Nunciatura, à Lusa, e disse, para já, esperar pelos próximos passos, pelos próximos desenvolvimentos, por parte da entidade legitima, com credibilidade, que, “depois nos pode orientar sobre como gerir esta situação”.

***

Insisto: condenar e punir o crime é urgente, mas não é lícito jogar ao lixo a pessoa, nem mesmo avaliá-la por uma vertente da sua personalidade, por mais premente que seja. Em tudo deve apostar-se na justa medida, assente na razoabilidade e na proporção. Concordo que o bispo seja impedido de exercer a missão episcopal, mas não proibido de adequada e talvez discreta missão sacerdotal. É preciso continuar a olhar o bispo como pessoa. Se queremos seres sem pecado, sem erro… E pensar retirar-lhe o Nobel seria medida desajustada e inadequada à punição pelo crime de abuso sexual de menor (pode nem ter sido pedofilia).

Não deixa de ser verdade o que fez pela paz. Em fevereiro de 1989, escreveu ao presidente de Portugal, Mário Soares (com quem chegou a reunir), ao Papa São João Paulo II e ao secretário-geral das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuellar, reclamando o referendo sobre a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o futuro de Timor-Leste e a ajuda ao povo timorense que estava “a morrer como povo e como nação”. E, quando a carta dirigida à ONU se tornou pública em abril, tornou-se persona non grata para as autoridades indonésias. Esta situação veio a piorar ainda mais quando deu abrigo na sua casa a jovens que tinham escapado ao massacre de Santa Cruz, em 1991, e denunciou os números das vítimas mortais. Enfim, modus in rebus!

2022.09.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A premência ou a vacuidade da polémica em torno do IRC

 

Quando não há nada de importante para discutir ou não se querem discutir os problemas mais candentes, os decisores perdem-se em questões menores ou na afirmação das suas agendas pessoais e/ou políticas. Efetivamente, um membro do governo deve sintonizar com o coletivo que integra e, se não está disponível para tal, deve demitir-se. Contudo, não é censurável que ministro ou secretário de Estado tenha opinião prévia sobre determinado tema a discutir nos órgãos da governação, desde que não a dê como definitiva, imperativa ou “irrevogável”. Já vimos disso!

A 18 de setembro, António Costa Silva, ministro da Economia e do Mar, afirmou que uma redução do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) transversal a todas as empresas seria “um sinal extremamente importante para toda a indústria” e “extremamente benéfico” face à atual crise, devendo ver-se, a partir daí, “qual é o impacto que pode ter no futuro”.

Foram declarações prestadas aos jornalistas à margem da sua visita às empresas portuguesas que participaram na feira de calçado MICAM, em Milão, Itália. Porém, disse esperar que, “na negociação do acordo de rendimentos e de competitividade e, depois, no Orçamento do Estado, possamos ter esse desígnio da redução do IRC”. Enfim, tudo dependeria das negociações em sede de concertação social no âmbito do acordo de rendimentos.

A taxa de IRC é de 21% sobre o lucro das empresas até 1,5 milhões de euros. A esta taxa acresce uma derrama estadual para as empresas com maior lucro e, ainda, uma derrama municipal.

Há, de facto, aqui uma pressão sobre a dinâmica da negociação em sede de concertação social e desejavelmente sobre o próximo Orçamento do Estado (OE). Não mais do que isso.

Também revelou que não mudara de ideias, pois o programa de Governo fora largamente discutido, mas o que ficou inscrito foi “a figura da redução seletiva do IRC, dirigida a empresas que reinvestem parte dos seus lucros na atividade económica, apostam na inovação tecnológica ou contratam jovens qualificados”. Não obstante, garante que sempre teve “muito claro que o país, algures, tinha que fazer essa redução transversal do IRC”. Agora, disse pensar que “vamos a caminho de uma redução transversal, que vai ser um sinal extremamente importante para toda a indústria”, pois, se tivermos as empresas associadas a isso [e] também os sindicatos, no âmbito da concertação social, podemos ter a capacidade da ação coletiva para superar todas estas crises”.

Porém, relativamente à discussão do acordo de rendimentos, nada avançou, antes disse: “Eu não queria antecipar o que é que se vai passar. Mas nós vamos levar propostas que eu penso que são muito interessantes também para as empresas.”

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As reações não se fizeram esperar. Desde logo, António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), a 20 de setembro, na conferência “Fiscalidade no OE2022” promovida pelo Global Media Group, em Lisboa, disse acreditar que haverá uma agradável surpresa de descida nominal transversal da taxa do IRC dos atuais 21% para 19%. Com efeito, num painel que tem como tema geral “O choque fiscal é fundamental. Como pode a abordagem aos impostos no OE 2023 ajudar famílias e empresas”, Saraiva acentuou que, no IRC, Portugal “compara mal” com outros países pelo que “mais importante do que a taxa é o sinal que é dado”, porque há “um efeito reputacional” com a descida da taxa nominal do IRC.

O presidente da CIP referiu que a confederação discute, em sede de concertação social, o acordo de competitividade e rendimentos, insistindo na necessidade de estabilidade e de descida “gradual e fatiada” da carga fiscal, mas afirmou que não fará depender o acordo da descida daquela taxa.

Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças disse que até concorda com o ministro, mas que tal comunicação cabe ao primeiro-ministro ou ao ministro das Finanças. E Siza Vieira, ministro da do XXII Governo, diz que, embora a medida conste do programa do Governo, surge enquadrada como uma forma “de “apoio ao investimento empresarial” e “no contexto do famoso acordo de rendimentos e produtividade”. Afinal, não disse nada que o ministro da Economia não tenha dito.

Fernando Medina, ministro das Finanças avisou que a decisão sobre a matéria é da competência do coletivo, cuja voz é o primeiro-ministro. Nisto, foi acompanhado pelo secretário de Estado da Economia, João Neves, e pela secretária de Estado do Turismo, Comércio e Serviços, Margarida Marques – o que levou alguma opinião pública a dizer que o ministro da Economia está isolado no governo e no próprio ministério da Economia. João Neves sustenta que não é a redução do IRC (só teria um efeito marginal) que salva as empresas nem as leva ao investimento, pois são os mercados que ditam as regras. E Rita Marques lembrou que o primeiro-ministro tem “a primeira e a última” palavra no que diz respeito à redução do IRC transversal a todas as empresas.

Convenhamos que ninguém quis tirar a palavra ao primeiro-ministro. Porém, diga-se que, em matéria de impostos, a última palavra cabe à Assembleia da República, salvo autorização ao governo, nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

A partir de Nova Iorque, onde estava para a Assembleia Geral das Nações Unidas, António Costa, questionado sobre a intenção do ministro da Economia de reduzir o IRC de forma transversal para as empresas, referiu que o tema “não esteve no discurso do engenheiro António Guterres”.

Não foi a primeira vez que o primeiro-ministro desautorizou o ministro da Economia. Já quando este, no debate do programa de Governo, na Assembleia da República, defendeu a possibilidade de o Governo avançar com um imposto sobre os “lucros caídos do céu”, António Costa e Fernando Medina viraram o discurso para a “avaliação” dessa possibilidade – o que agora já admitem em consonância com a Comissão Europeia. E, agora, o ministro da Economia já diz que é preciso olhar para o sistema fiscal português. Assim, para já e à medida que os alarmes vão soando entre os socialistas, que querem uma maior valorização salarial e pulso mais firme contra os lucros excessivos das empresas, o governo não se compromete com este tipo de redução do IRC.

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a 20 de setembro, rejeitou que a redução de impostos (o choque fiscal) seja a “panaceia” para todos os problemas. Sem antecipar que medidas constarão no OE 23 (a apresentar a 10 de outubro), na já referida conferência sobre fiscalidade organizada pelo grupo Global Media, António Mendonça Mendes insistiu que o país não está em condições de fazer choques fiscais, devendo continuar a desagravar impostos às famílias e às empresas, de forma seletiva e à medida que as necessidades forem identificadas. “Não são os impostos que vão resolver o problema dos elevados custos da energia, isso faz-se acelerando a transição energética” – disse ainda, num claro volte-face em relação ao que tinha dito antes o ministro da Economia.

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O ministro da economia diz que não está “nem sozinho, nem acompanhado” no executivo e que, muitas vezes na vida, teve muitas batalhas difíceis em que esteve sozinho e que está habituado “a ter razão antes do tempo, que é uma coisa que às vezes é muito difícil de sustentar”.

Na audição, de 28 de setembro, na Comissão de Economia, Obras Públicas, Planeamento e Habitação da Assembleia da República, Costa Silva confessou não ter “medo nenhum, nem de pensar, nem de exprimir os meus pensamentos nas alturas em que acho que devo exprimir”, prometendo aguardar para ver quais vão ser os desenvolvimentos. E vincou: “Luto com as armas que tenho, de acordo com as ideias que tenho, em consonância com o programa do Governo e em articulação com o senhor primeiro-ministro. É isso que me move (…); o governo e o primeiro-ministro estão alinhados com isso e estão a buscar as várias soluções.”

Porém, aos deputados diz pensar a longo prazo: “Independentemente dos partidos e dos governos que se alternam, a questão do país é a questão vital (…) aquilo que não fizermos nos próximos anos vai ser pago e pago de uma forma muito difícil”. Com efeito, custa-lhe ver empresas que podem claudicar se não se fizer “tudo que está ao nosso alcance, agora, para auxiliar aquilo que pode acontecer e evitar uma tempestade maior no futuro”.

O governo propôs, a 28 de setembro, aos parceiros sociais redução seletiva do IRC às empresas que promovam o aumento de salários e invistam em investigação e em desenvolvimento. Isto é: as empresas têm de enveredar pela contratação coletiva dinâmica, valorizar progressivamente os salários de modo que, em quatro anos, aumentem 20% e diminuir a amplitude salarial; e devem investir em investigação e desenvolvimento (I&D), reforçando o governo as condições do Sistema de incentivos fiscais à investigação e desenvolvimento empresarial (SIFIDE II) na componente do investimento direto, avançando para a criação do incentivo à capitalização de empresas (ICE), pela dedução de lucros retidos e reinvestidos (DLRR) e pela remuneração convencional do capital social (RCSS), e simplificando os incentivos fiscais à capitalização e ao investimento, pela eliminação de redundâncias e limitações inerentes aos instrumentos atualmente existentes e pela melhoraria do regime fiscal de apoio ao investimento (RFAI).

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Afinal, esclarecimentos palavrosos para nada: empresas que pretendam singrar farão o que se estipular. Mais de 36% delas não pagam IRC. As pequenas empresas não têm lucros, não pagam IRC e sobrevivem ou, cedo ou tarde, caem. Dada a volta, Costa e Silva acaba por ter razão. Só não trava os altos custos de produção. De resto, apenas incidentes de discussão e pruridos inúteis!

2022.09.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Região chinesa de Xinjiang sob fogo cruzado da crítica internacional

 

O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a região chinesa de Xinjiang, publicado a 31 de agosto, indicia possíveis “crimes contra a humanidade” e menciona “provas críveis” de tortura e de violência sexual contra a minoria uigur e contra outros grupos predominantemente muçulmanos, pedindo a intervenção da comunidade internacional.

Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, manteve a promessa de publicar o relatório antes de deixar o cargo a 1 de setembro, após quatro anos à frente daquele organismo da ONU.

O documento, que não contém revelações importantes em relação ao que se sabia da situação em Xinjiang, traz o selo da ONU às acusações feitas há muito tempo contra as autoridades chinesas. A sua publicação foi alvo de intensa pressão particularmente dos Estados Unidos da América (EUA) e das principais organizações não-governamentais (ONG) de direitos humanos, e Pequim, inversamente,  não queria a divulgação, por considerar o relatório uma “farsa” orquestrada pelo Ocidente e liderada por Washington.

O texto da ONU não traz a palavra “genocídio”, mas essa foi a acusação do governo norte-americano contra Pequim. E também a Assembleia Nacional Francesa, seguindo os passos da representação do Reino Unido, Holanda e do Canadá, qualificou, em janeiro, como “genocídio” o tratamento dos uigures pela China. Com efeito, Xinjiang e outras províncias da China foram atingidas por várias décadas, em particular de 2009 a 2014, por ataques atribuídos pelo governo chinês a islâmicos ou separatistas uigures.

O mandato de Michelle Bachelet foi marcado pelas críticas à sua resposta ao tratamento da China aos uigures e a outras minorias muçulmanas. No início de junho, 230 organizações de direitos humanos, inclusive portuguesas, exigiram a sua demissão, acusando-a de branqueamento de atrocidades numa visita ao território chinês. Porém, Bachelet defendeu-se de ser branda com Pequim quanto aos direitos humanos, acreditando que diálogo “não significa fechar os olhos”.

Efetivamente, durante uma rara visita à China em maio passado, a primeira de um Alto-comissário da ONU em 17 anos, Michelle Bachelet, denunciando “atos violentos de extremismo” na região, pediu a Pequim que evitasse medidas “arbitrárias” em Xinjiang.  

Xinjiang, vasto território semidesértico no noroeste da China, tem sido palco de violentos ataques, que Pequim atribui a separatistas e islamitas. Os uigures, maioritariamente muçulmanos, representam um pouco menos de metade dos 25 milhões de pessoas que vivem na região, falam, na sua grande maioria, uma língua relacionada com o Turco e são um dos 56 grupos étnicos que existem no território chinês. A China é acusada de concentrar minorias étnicas chinesas de origem muçulmana em campos de doutrinação e de reeducação política no extremo noroeste do território chinês. As denúncias apontam para pelo menos um milhão de muçulmanos retidos nestes campos. Todavia, Pequim rejeita sempre esse plano de “genocídio cultural” de minorias muçulmanas na China, aduzindo que aquelas instalações são centros de formação profissional para ajudar a encontrar trabalho e afastar do extremismo e do terrorismo a população.

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Já a 10 de junho, a Amnistia Internacional (AI), num documento de 160 páginas com mais de 50 novos testemunhos angustiantes sobre o que entende ser crime contra a Humanidade, denunciava a perseguição, a detenção e a tortura de centenas de milhares de uigures, cazaques e outros grupos étnicos predominantemente muçulmanos em Xinjiang, no noroeste da China. Ao mesmo tempo, condena “as medidas extremas” tomadas “sob o disfarce do combate ao terrorismo”, para forçar estas pessoas “a abandonar as suas tradições religiosas, práticas culturais e línguas locais”.

Em comunicado, a organização acusava o regime de Xi Jinping de ter construído, na região autónoma uigur de Xinjiang, “um dos sistemas de vigilância mais avançados do mundo” e uma vasta rede de centros de “transformação-através-da-educação”, que mais não são do que campos de detenção, tortura e outros maus-tratos sistemáticos, para inculcar à força uma nação chinesa homogénea e secular e os ideais do partido comunista chinês (PCC). E refere que os enviados para tais campos não são julgados, não têm acesso a advogados, não podem contestar a decisão, são alvo de práticas de tortura e tratamento degradante, podem lá ficar por tempo indefinido, já que são as autoridades que decidem quando estão prontos para sair, e são obrigados a renegar as suas convicções religiosas e cultura e a tornarem-se em seguidores do governo e do PCC.

Face à situação, Agnès Callamard, secretária-geral da AI, exorta o governo chinês a acabar com os campos de detenção e a cessar a perseguição da população muçulmana e desafia a comunidade internacional a erguer a voz “para pôr fim a esta abominação”, devendo a ONU abrir uma investigação independente para responsabilizar os suspeitos de terem cometido tais crimes.

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Entretanto, a branquear a situação, o presidente chinês visitou, na segunda semana de julho, a região de Xinjiang, pois designou-a como “área-chave” no projeto internacional de infraestruturas ‘Uma Faixa, Uma Rota’, prevendo a construção de portos, linhas ferroviárias, autoestradas e centrais elétricas, e abrindo novas rotas comerciais entre Ásia, Europa e África. Nessa visita, Xi Jinping reuniu-se com líderes do Corpo de Produção e Construção de Xinjiang (XPCC, na sigla inglesa), órgão supragovernamental que tem tribunais, escolas e sistema de saúde próprios, sob o sistema militar imposto na região, após a ascensão do PCC ao poder, em 1949.

O líder chinês diz ter aprendido a história do XPCC no cultivo e na guarda das áreas fronteiriças. Com efeito, Xinjiang confina com a Rússia, Afeganistão e outros países da Ásia Central, que a China quis atrair para a sua órbita, com incentivos económicos e com pactos de segurança.

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Recentemente, também a branquear a situação, o regime chinês levou jornalistas de Macau a Xinjiang (só faltou o Tribuna de Macau, alegadamente por falta de pessoal), visita que foi acompanhada pelo governo de Macau, representado pelo Gabinete de Comunicação Social. A maioria dos convidados não fala sobre a viagem e quase nenhum escreveu sobre ela nos seus órgãos de comunicação, mas todos participaram em vídeos de propaganda do regime comunista, onde só têm elogios ao que se passa em Xinjiang, nomeadamente em termos de desenvolvimento. E, sobre os uigures, nem uma palavra dizem. Todavia, o presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) desvaloriza o caso.

Os jornalistas não fizeram perguntas sobre as acusações à China. Sobre a liberdade para decidir onde ir e com quem falar, um deles referiu que “é do tamanho da Europa Ocidental”: para ir de uma cidade a outra, tarda-se quatro a cinco horas e um distrito é do tamanho de Portugal. Além disso, eram convidados. E não se diz a quem nos convida aonde se quer ir.

Ainda sobre a liberdade, neste caso, de expressão, alguns garantem que, em 40 anos na Ásia, nunca foram pressionados sobre o que podiam publicar acerca de visitas. E acusam os “brancos” (os ocidentais) de pensarem que dominam o mundo, quando, como vincam: “Há valores asiáticos. Há valores africanos. Há diversos valores no mundo.” Porém, outros jornalistas, que também não se sentem sem liberdade de expressão, asseguram que tudo o que lhes mostraram é com o objetivo de provar que está tudo bem. Referem como exemplo a exposição sobre terrorismo e extremismo que viu em Urumqi, capital de Xinjiang: “Havia fotos sensacionalistas e sangrentas, todas de meios chineses. O intuito de Pequim é justificar os métodos. Não é apenas a China que tem tomado medidas para agir contra o terrorismo e extremismo. Os Estados Unidos fazem o mesmo.”

Um jornalista diz ter feito perguntas, mas que procurou perceber os critérios: são as autoridades que decidem quem é enviado para os campos de educação.

A ONU estima que mais de um milhão de pessoas tenha sido levada para “centros de reeducação”. Os campos e o fabrico de algodão serão um dos palcos do trabalho forçado. Porém o referido grupo de jornalistas levado a Xinjiang intervém num dos vídeos publicados nas páginas oficiais do governo chinês, em imagens captadas entre Urumqi e Karamay, ressalvando que ali não há propriamente pessoas, pois lhes explicaram que é tudo feito pelas máquinas. Além disso, porfiam que aquilo que ali se vê é um reforço da identidade, consubstanciada em diversas culturas, sendo nisso que se consubstancia o futuro do mundo, cada vez com mais partilha, sem prejuízo de se perder cada cultura. Enfim, é o multiculturalismo. Por outro lado, veem que há apoio do governo a todas as identidades locais e estimam que todas as nacionalidades recebem “apoio maior do que se não houvesse um governo central”.

Por seu turno, o presidente da AIPIM, frisando que as visitas a convite das autoridades ao país remontam aos tempos em que Macau era administrada por Portugal, realça que a prática não é exclusiva da China e considera esta mais uma visita, apesar do destino e das paragens. Como diz, é normal que os Estados convidem jornalistas para visitarem províncias ou para acompanharem governantes ao estrangeiro. E os jornalistas têm de “ser profissionais e saber filtrar os factos”.

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É pena que jornalistas, detentores do quarto poder, não denunciem as atrocidades cometidas por um Estado e cooperem no seu branqueamento. A China é um gigante político e territorial, mas não é infalível, nem impoluta. Se não acolhe a crítica, torna-se perigosa na sua autossuficiência.

2022.09.27 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A via tortuosa da Educação ou a realidade que não se conhece

 

A área da Educação é apontada como a que padece de crise mais que supina. E, se até há pouco tempo, se olhava para alguns países europeus, com ênfase para a Finlândia, hoje consensualiza-se a asserção de que a crise educativa é do tamanho da Europa. Provavelmente não se entende a crise como extensiva ao mundo inteiro, porque, a fazer fé em dados dos programas internacionais, como o PISA (Programme for International Student Assessment), de avaliação de competências na leitura, na matemática e nas ciências, por parte dos alunos de 15 anos, há países, nomeadamente da Ásia, que surpreendem pela positiva. Por outro lado, há lugares onde nem é conveniente falar em crise, pois o acesso à educação elementar é muito precário. E, nos Estados de regime de informação blindado, não há problemas em qualquer setor de atividade.    

Da Itália à Suécia, da França à Alemanha, de Portugal à Finlândia, é flagelo a falta de professores. Vários países enfrentam grandes dificuldades em recrutar docentes para substituir os milhares que se reformam (aposentam), abandonam a profissão ou entram de baixa médica (alguns por burnout laboral). O envelhecimento da classe na Europa – mercê da política de retardamento da reforma ou aposentação e da crescente diminuição do cálculo da pensão – acelera a erosão desta profissão de desgaste rápido, assoberbada por inútil trabalho de fichas, de grelhas e de relatórios (muita burocracia). E alguns fatores como a desvalorização política e social da profissão, a exiguidade salarial, a falta de perspetivas de carreira, a pressão dos pais (as aulas à distância mostraram-no nas respetivas fases de teletrabalho na pandemia) e de alguns grupos sociais, as turmas difíceis, sobretudo na escola pública (graças à falta de valores, ao facilitismo e à deseducação na família) e a prepotência de alguns dirigentes, geram a crise da vocação docente, difícil de ultrapassar.

Todos estes fatores tornam a profissão mais complexa e stressante e, por isso menos, atrativa para os jovens, sobretudo se as condições de trabalho e os níveis de autonomia profissional não acompanham o grau de profissionalização exigido para corresponder às expectativas das nossas sociedades. É o que pensa Karine Tremblay, analista da divisão de políticas da OCDE e que foi responsável pelo maior estudo internacional sobre professores (TALIS).

Países que recrutaram professores em larga escala nos anos 80 assistem a aposentações em massa, tendo de encontrar substitutos. Em Portugal, país territorial e socialmente muito assimétrico, assiste-se a situações que, à primeira vista, não se entendem: engrossa o número de docentes dos quadros que ficam sem componente letiva, mercê da redução drástica e crescente do número de alunos em algumas escolas, sobretudo no interior, em que se acentua mais o crescente inverno demográfico nacional; e muitos alunos ficam sem professor porque os que ocupam lugares dos quadros se aposentam, entram de baixa médica ou se deslocam por motivo de doença do próprio ou de familiares (às vezes, inexistente), ficando sem componente letiva em muitos casos. E isto não se resolve com soluções provisórias, mas com medidas estruturantes. Para já, remenda-se!

E mal se fala da ação educativa diária em contextos difíceis e de tantas outras atividades na escola.        

Para atenuar os problemas, vários países improvisam soluções como o recurso a profissionais sem formação pedagógica, o aumento do número de alunos por turma e medidas mais radicais, como a adotada na cidade alemã de Gelsenkirchen, que reduziu o horário dos alunos do 1.º ciclo em uma hora por falta de docentes, conta o “Financial Times”. Na Alemanha faltam cerca de 40 mil. Em Itália, o envelhecimento do corpo docente leva professores sem vínculo a ocupar 150 mil lugares. Em França, no início do ano letivo, ficaram por preencher 4 mil vagas. Para tornar a profissão mais atrativa, o Presidente Mácron quer aumentar os salários dos docentes em 10%, garantindo um mínimo de €2000 líquidos à entrada da carreira. E também os países nórdicos são afetados pelo problema. Na Suécia, é preciso formar 153 mil professores até 2035. E a Finlândia, historicamente apontada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) como um dos melhores sistemas educativos do mundo, é afetada pela falta de docentes, que os sindicatos atribuem às condições de trabalho e aos baixos salários.

Há perda de tempo letivo no caso de professores de baixa que não são logo substituídos (agora a substituição faz-se em 12 dias, contra os anteriores 30) e recurso a profissionais sem formação completa, havendo o risco de este constrangimento redundar em pior qualidade do ensino e em deterioração da satisfação dos próprios professores, com subsequente abandono da profissão.

Em Portugal, o ano letivo começou com cerca de 60 mil alunos sem aulas a, pelo menos, uma disciplina. Devido ao crescente volume de aposentações, é preciso recrutar 34.500 professores até 2030. Mas os níveis de formação são insuficientes e a procura por cursos de ensino caiu na última década. Além dos salários baixos em comparação com outras carreiras (um professor ganha, à entrada, à volta de €1100 líquidos e cerca de €2000 no topo), há entraves à progressão (em duas mudanças de escalão, a progressão está sujeita a vagas definidas arbitrariamente) e esperam-se anos para entrar nos quadros – fatores que desmotivam eventuais candidatos.

Carlinda Leite, coordenadora do grupo de trabalho para agilizar o recrutamento de docentes, frisa que “é preciso tornar a profissão mais atrativa”, sendo uma prioridade reformular a formação de professores de modo a facilitar o acesso à profissão. Assim, o acesso aos mestrados que habilitam a lecionar no 1.º e no 2.º ciclos, exclusivos para licenciados em Educação, será alargado a diplomados de outras áreas. A ideia é captar para a docência pessoas que hoje não podem entrar.

Investir em campanhas para atrair jovens para cursos de ensino, apostar em trazer de volta antigos professores que deixaram a profissão, recuperar estudantes que abandonaram cursos nas áreas onde faltam mais docentes, como Matemática e Biologia, e tornar a vinculação aos quadros mais rápida são outras medidas propostas. E penso que se deve abrir a docência a licenciado em área do saber que não está voltada para a docência, profissionalizá-lo (tipo profissionalização em serviço) e equipará-lo a mestre. Afunilar a formação inicial de professores em cursos superiores voltados só para o ensino, sem o bastante aprofundamento científico, coarta a atividade do profissional, que tem de saber fazer mais alguma coisa.    

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Também a escola privada tem dificuldade de contratação e vê docentes a fugir para a pública.

Quando tem de contratar, são cada vez menos os candidatos a aparecer, obrigando a aumentar a dimensão das turmas e a pagar horas extraordinárias aos docentes da casa para impedir que alunos fiquem sem aulas. Mas, em muitos casos, os horários estão no limite. O problema vem a agravar-se com a fuga crescente de professores para o ensino público, onde a carreira, apesar de tudo, é mais atrativa. Alguns acolhem-se aos colégios porque ou não têm a profissionalização (vai-lhe valendo a Universidade Aberta) ou não querem ir para longe de casa. “Em termos salariais, é mais aliciante lecionar no público”, admite Rodrigo Queiroz e Melo, diretor-executivo da Associa­ção de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP). Tem remédio: pagar melhor (Não se diz que os privados gerem melhor que o público?) e anular a precariedade da carreira.

Até há pouco tempo, muitos preferiam lecionar em colégios, pois, no ensino público, tinham de esperar vários anos até entrar nos quadros e até conseguir um lugar perto de casa. Mas a escassez de docentes é tal, sobretudo na região de Lisboa e no Algarve, que a vinculação se tornou mais rápida. Há, pois, o risco de êxodo de professores do ensino privado para a escola pública. Dantes, quando se punha um anúncio, apareciam-me vários currículos; agora são poucos e as candidaturas espontâneas, que eram às dezenas, praticamente desapareceram, sobretudo nas Línguas, na Matemática e no Português, como contam alguns diretores de escolas privadas. A concorrência do ensino público é maior agora. É raro um docente passar do público para o privado, mas o inverso é comum. Ciente da gravidade do problema, o diretor-executivo da AEEP assume que “os colégios vão ter de pagar melhor aos professores para conseguir recrutá-los e mantê-los”.

Alguns dirigentes tiveram de fazer um grande investimento para melhorar a grelha salarial, de modo a torná-la mais atrativa e evitar saídas. Para já, o investimento ainda não se refletiu no valor das propinas. Mas a maioria dos externatos terá de as aumentar para conseguirem subir os salários. Por isso, as famílias terão de fazer um esforço maior para conseguir manter os filhos no privado e, para algumas, isso poderá deixar de ser opção.

Diz o responsável da AEEP que aumentar o número de alunos por professor e o tempo de trabalho autónomo dos estudantes é outra inevitabilidade e que o ensino apoiado na tecnologia pode levar a aumentar o rácio de alunos por professor. Em vez de um docente explicar um teorema a 25 alunos, pode ter um vídeo bem feito com a explicação, que é visto ao mesmo tempo por 200. Ora, isso é caminho para desvalorizar o professor, massificar a aula e anular a relação pedagógica. Não é de longe que se chamam ou picam os bois – diz o povo.

Ante a falta de professores, que motivou uma reunião pede ao Governo que alargue o leque de cursos que dão habilitação para a docência e dê autonomia aos colégios para contratar candidatos sem formação pedagógica – o que é absurdo, se for tornado prática corrente.

O Despacho n.º 10914-A/2022, de 8 de setembro, diz preencherem os requisitos de formação para as áreas disciplinares dos diferentes grupos de recrutamento os titulares (a contratar pela escola): de licenciatura em Educação Básica, para os respetivos grupos de recrutamento; de qualificação de nível VI, ou equivalente, que constitua requisito de acesso ao 2.º ciclo de estudos, e tenham obtido, no quadro dessa qualificação ou em outros ciclos de estudos do ensino superior, os requisitos de formação fixados para os respetivos grupos de recrutamento.

E, se nenhum candidato reunir tais requisitos, a escola pode contratar titulares de licenciatura que disponham de 120 créditos obtidos na área científica correspondente à disciplina a lecionar.

Em nota final, julgo indecente falsear os números do vencimento bruto anual do docente em início de carreira e no topo, que são, respetivamente, 21 516,60€ e 47 671,26€, muito aquém dos valores indicados pelo Expresso, de 16 de setembro. E dizer que o aluno no ensino público, como referia o anterior ministro da Educação, fica mais caro que no ensino privado pode ser estatisticamente correto, mas injusto. Com efeito, os dinheiros públicos têm de custear o ensino de todos os alunos, transportes escolares, refeições, auxílios económicos, necessidades educativas especiais, organização de exames, os salários mesmo em baixa médica, etc. Dividir o somatório pelo número de alunos pode dar mais que no privado, que só custeia ensino (mais barato) e refeição.  

2022.09.26 – Louro de Carvalho

domingo, 25 de setembro de 2022

Não esperar avisos de um morto, mas escutar Moisés e os Profetas

 

 

É a palavra de ordem da liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano C, a propósito da nossa relação abusiva com os bens deste mundo, que Deus colocou nas nossas mãos, para que os administremos e partilhemos, com gratuitidade, amor e partilha.

Desde logo, na primeira leitura (Am 6,1a.4-7), recordamos que as conquistas de Jeroboão II geraram bem-estar, riqueza e prosperidade – atributos de desafogo que não beneficiaram toda a nação, mas apenas o grupo de privilegiados (nobres, cortesãos, militares, grandes latifundiários e comerciantes sem escrúpulos). Forma-se uma classe dirigente poderosa, cada vez mais rica e instalada no luxo, que os juízes corruptos apoiam e que explora os pobres de forma ilegal e prepotente. Em contraponto, sobrevivem os pobres, vítimas inocentes e silenciosas de um sistema que gera injustiça, miséria, sofrimento, opressão, a quem os ricos acusam de inércia, negligência, falta de orientação na vida, má governança.

O trecho de Amós em referência nesta liturgia insere-se no género literário das invetivas ou lamentações, ou seja, é servido de frases exclamativas precedidas de “ai”. Começa pela interjeição “hwy”, usual em lamentações fúnebres e correspondente ao grito das carpideiras em cortejos fúnebres. É o terceiro “ai” de Amós: os outros dois aparecem em Am 5,7 (a propósito da justiça e dos tribunais” e em Am 5,18 (a propósito do culto). Nas profecias, esta interjeição introduz um oráculo que anuncia a ameaça e o castigo, indicando que certas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte por causa dos seus erros.

No caso vertente, o destinatário do oráculo é a classe dirigente, rica e indolente, que vive comodamente nos palácios da capital, esbanjando em luxos e vivendo em perpétuo festim, sem qualquer preocupação com a miséria e o sofrimento que aflige os seus irmãos. São nababos parasitas que se deitam “em leitos de marfim”, comem alimentos selecionados, bebem em excesso vinhos raros, usam caros perfumes importados e se divertem ouvindo música e compondo canções. Tudo isto é luxo que advém da repressão do povo, da exploração dos pobres e das rapinas e prepotências cometidas contra os fracos. Os pobres trabalham no duro, cheios de dores, trabalhos e misérias, para sustentarem a indolência e o luxo dos grandes.

É claro que Deus não pode aceitar que a situação se prolongue indefinidamente e não está disposto a pactuar com ela. Quando a classe dominante infringe gravemente os mandamentos da Aliança, Deus não é cúmplice dos que mantêm um excessivamente elevado nível de vida à custa do sangue e das lágrimas dos pobres: castigará com o exílio em terra estrangeira (a Samaria é tomada por Salamanasar V, em 721 a.C., e a classe dirigente parte para o cativeiro na Assíria).

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Por sua vez, o trecho evangélico proclamado nesta dominga (Lc 16,19-31) apresenta mais uma etapa do “caminho de Jerusalém”. A história do rico e do pobre Lázaro é exclusiva de Lucas e é uma catequese desenvolvida ao longo de todo o capítulo 16 abordando a relação entre o homem e os bens deste mundo. Jesus dirige-Se aos fariseus (cf Lc 16,14), quais representantes de quantos amam o dinheiro e vivem em função dele. E o móbil da história/parábola é o contraste entre duas personagens, segundo um cliché literário comum na literatura bíblica: o rico que vive uma vida luxuosa e celebra grandes festas; e o pobre, com fome, a viver miserável e está doente (chagado). É uma situação que muda radicalmente com a morte dos dois.

Do rico, cujo nome não é referido, apenas se diz que se vestia de púrpura e de linho fino e dava festas esplêndidas. Não se diz se era mau ou bom, se frequentava o templo ou não, se explorava os pobres, mas lê-se, nas entrelinhas, que era insensível ao sofrimento. Porém, quando morreu, foi para um lugar de tormentos. E, se é possível, no mundo, quebrar ou diminuir o fosso entre os muito ricos e os muito pobres, no Além, o abismo entre justos e injustos é inultrapassável.    

Do pobre, cujo nome é Lázaro – do nome grego Eleázaros, é o mesmo que Eleazar, originado no hebraico Elazar, pela união dos elementos El que significa “Deus, Senhor” e ézer, que quer dizer “socorro” e significa “Deus socorreu, Deus ajudou” – diz-se que jazia ao portão do rico, coberto de chagas, desejando saciar-se das migalhas que caíam da mesa do rico. Enquanto isso acontecia, os cães vinham lamber-lhe as chagas. Quando morreu, Lázaro foi “levado pelos anjos ao seio de Abraão”, ou seja, ao lugar de honra no festim presidido por Abraão. É o banquete do Reino, onde os eleitos se juntarão – segundo o imaginário judaico – com os patriarcas e os profetas. No entanto, não se diz se Lázaro levou vida exemplar na terra ou se fez más ações, se foi um modelo de virtudes ou um homem carregado de defeitos, se trabalhava no duro ou se foi o parasita que não quis fazer nada para mudar a sua triste situação.

Aqui, não parecem ser as ações cometidas neste mundo pelas personagens a decidir a sorte delas no outro mundo. O que determina a diferença de destinos é a riqueza e a pobreza. O rico afunda-se no mar dos tormentos, porque é rico; o pobre é recebido no banquete do Reino, porque é pobre. Levanta-se, por isso, a questão de a riqueza ser sempre pecaminosa e se os que acumularam riquezas sem defraudar ninguém serão culpados das situações de injustiça e de iniquidade.  

Na ótica lucana, a riqueza – legítima ou ilegítima – é sempre culpada, pois os bens não pertencem a ninguém em particular, nem mesmo aos que trabalharam duramente para se apoderarem de uma gorda fatia dos bens que Deus colocou no mundo. Ao invés, são dons de Deus, postos à disposição de todos os seus filhos, para serem partilhados e para assegurarem uma vida digna a todos. Nestes termos, quem se apodera – mesmo legitimamente – desses bens em benefício próprio, sem os partilhar, defrauda o desígnio de Deus. Quem os usa para ter uma vida luxuosa e sem cuidados, esquecendo-se das necessidades dos outros, defrauda os irmãos que vivem na miséria. Com efeito, não somos donos dos bens que Deus nos entregou, ainda que os tenhamos legitimamente adquirido: somos apenas administradores, encarregados de partilhar com os irmãos o que pertence a todos. Esquecê-lo é viver de forma egoísta e estar destinado aos tormentos.

A seguir, esclarece-se que a Escritura – em que os fariseus são peritos – apresenta a via segura para aprender e assumir a atitude certa em relação aos bens. O facto de o rico ficar surdo às interpelações da Palavra de Deus (“Moisés e os Profetas”) decidiu a sua sorte final: como não escutou as interpelações da Palavra e não se deixou transformar por ela, foi para o lugar dos tormentos. E o versículo final do trecho em causa exprime cabalmente a mensagem: até os milagres mais espetaculares são inúteis, quando o homem não acolhe a Palavra de Deus no coração. Só a Palavra de Deus faz com que o homem corrija as opções erradas, saia do egoísmo e aprenda a amar e a partilhar. Por outro lado, essa Palavra é comunicada e explicada por quem está neste mundo. De nada adiantaria vir um morto fazer-nos advertências, como parece exigir o rico. A reação dos ouvintes seria de espanto, de transtorno e de fuga.

A história do rico e de Lázaro ilustra as bem-aventuranças e os “ais” de Lc 6,20-26. Anuncia-se, deste modo, que o desígnio de Deus é estabelecer o Reino de fraternidade, de amor e de partilha. Quem o recusa e opta por viver encerrado na autossuficiência e na luta desenfreada por ter mais não pode fazer parte desse mundo novo de fraternidade, que é oferta de Deus.

Talvez a catequese deste Evangelho pareça demasiado radical. Parece consensual o direito de ser rico, gozando dos bens honestamente conquistados. Porém, dificilmente um homem que não tenha mentalidade de pobre acumula riqueza de forma inteiramente honesta. Tal como “abismo atrai abismo”, dinheiro puxa dinheiro e o dinheiro torna as pessoas soberbas, avaras e tendentes a esconder a sua riqueza. Assim, temos consciência de que um quarto da humanidade detém cerca de 80% dos recursos disponíveis do planeta e de que três quartos da humanidade têm de contentar-se com os outros 20% dos recursos. Várias dezenas de milhares de crianças morrem diariamente por causa da fome e de problemas de subnutrição, enquanto o primeiro mundo destrói as colheitas para que o excesso de produção não obrigue a baixa de preços. Gastam-se em festas sociais quantias que davam para construir uma dúzia de escolas ou meia dúzia de hospitais num país do quarto mundo. E quanto dinheiro se não gasta em armas e equipamentos militares, que, em nome dos grandes interesses, destroem, matam e provocam, por vários lugares, inúmeras centenas de milhares de refugiados, espoliados de seus haveres, separados de suas famílias!

Perante o princípio basilar do destino universal dos bens e face à situação mundial da desigualdade entre ricos e pobres, é aberrante o princípio da Constituição de 1822, liberal e católica (ver artigo 126.º), de que a “propriedade é um direito sagrado e inviolável” (ver artigo 6.º). Há que ter em conta o seu papel social. Neste sentido, é clarividente o texto do Concílio Vaticano II: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos (…). Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis circunstâncias, deve sempre atender-se a este destino universal dos bens. Por esta razão, quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si, mas também aos outros. De resto, todos têm o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e para as suas famílias.” (Gaudium et Spes, 69).

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O texto paulino (1Tm 6,11-16), tomado como segunda leitura desta dominga, situa-se no contexto das “cartas pastorais”, possivelmente nos inícios do século II d.C., quando as heresias, sobretudo de tipo gnóstico – começam a incomodar os cristãos. É um tempo em que a comunidade cristã já sofre a influência de falsos mestres (focados no lucro, orgulhosos, ignorantes, a discutir questões de lana caprina, a fomentar inveja, discórdia, insultos, suspeitas injustas e ciúmes), que difundem doutrinas estranhas. Neste contexto, impõe-se relevar as caraterísticas do verdadeiro discípulo, através de quem a verdadeira fé é transmitida.

Assim, o destinatário deste escrito de Paulo é um cristão de Listra, filho de pai grego e de mãe judeo-cristã que acompanhou algumas viagens do apóstolo, que lhe confiou a coordenação pastoral das igrejas da Ásia, tendo sido, de acordo com a tradição, o primeiro bispo da Igreja de Éfeso. O autor, que se apresenta como Paulo (embora seja problemática a atribuição da carta ao apóstolo) traça, para edificação de Timóteo, o retrato do “homem de Deus”.

O genuíno “homem de Deus”, que Timóteo deve encarnar e representar, distingue-se pela vida santa, radicada na fé e no amor aos irmãos. Em concreto, deve cultivar a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança, a doçura; tem de ser paciente e manso, ante as dificuldades que o serviço apostólico levanta; e deve observar o mandamento do Senhor, ou seja, a verdade da fé que lhe foi transmitida pela tradição apostólica. No atinente ao perfil do “homem de Deus”, convoca-se o amor para com os irmãos, no entusiasmo pelo ministério e na capacidade de transmitir a doutrina herdada dos apóstolos. Não é, pois, acertado, dizer-se que o texto da segunda leitura não tem a ver com a temática espelhada dos dois textos acima comentados: o de Amós e o de Lucas. Na verdade, a fé tem consequências psicossociais, sendo uma delas o desapego dos bens terrenos e a capacidade de partilha geradora e representativa da profunda fraternidade humana.

O texto termina com um hino litúrgico, uma solene doxologia – provinda do repertório das orações nas sinagogas judaicas do mundo grego – que tem Deus como o Senhor dos senhores, o único soberano, Aquele que possui a imortalidade, a glória e o poder universal, em contraste com os falsos deuses e com os títulos humanos atribuídos a imperadores e a reis.

Como nota final, é de esclarecer que “Lázaro” é um nome bíblico atribuído a duas personagens no Novo Testamento: o irmão de Maria e Marta, ressuscitado por Jesus Cristo, e o pobre chagado mencionado na parábola lucana acima referenciada. Em razão do leproso, o nome próprio Lázaro foi associado à lepra, tornando-se raro na Idade Média. Passou a ser utilizado pelos falantes da Inglês no século XVII, o mesmo que foi encontrado em Portugal, tendo-se tornado popular entre os judeus. Deste derivou o nome comum lazareto, estabelecimento para quarentena junto dos portos e estabelecimento ou hospital isolado onde se poem pessoas vindas de locais onde grassa epidemia de doença contagiosa, bem como lazeira, a significar: desgraça, miséria, fome, infelicidade, lepra, doença contagiosa que provoca graves lesões cutâneas.

2022.09.25 – Louro de Carvalho