terça-feira, 20 de setembro de 2022

Líderes mundiais à despedida de Isabel II deixaram sinais políticos

 

Era óbvio que a última despedida de Chefe de Estado tão longeva (ultrapassada apenas por Luís XIV em França) azaria convites e encontros de centenas de representantes das nações que dariam sinais políticos ou marcariam pontos na agenda política. E o Rei Carlos III fez questão de promover a receção de todos no Palácio de Buckingham, residência oficial do soberano,

Mais de 70 chefes de Estado e 400 dignitários estrangeiros entraram em Westminster Hall, assinaram o livro de condolências e foram recebidos pelo rei na residência oficial. Alguns, como Biden, Trudeau ou Macron – que até visitou a fila do povo para o velório – despertaram especial atenção mediática nos funerais régios, de transmissão quase ininterrupta. A par do que se vê, há a vertente penumbrosa conexa com a geopolítica mundial e cuja mensagem a Casa Real quer passar, secundando ou britando as posições políticas de um rei que se quer neutro, mas que parece tomar partido em algumas questões mundiais. Desde logo, sobressai o rol dos não convidados.

A Rússia, a Bielorrússia, a Birmânia, o Irão, o Afeganistão, a Síria, a Venezuela e a Nicarágua não integraram a lista dos desejados. O então príncipe Carlos condenou publicamente a invasão da Ucrânia pela Rússia; agora, Olena Zelenska, a mulher do presidente Zelensky, encabeçou a delegação do seu país, como sinal da gratidão pelo apoio do Reino Unido desde o início da guerra, tendo sido recebida, no Palácio de Buckingham pela princesa de Gales, Kate Middleton. A China, formalmente convidada, enviou o vice-presidente Wang Qishan como representante especial, mas um grupo de nove deputados conservadores, vetados por Pequim por condenarem a repressão contra a minoria Uigur, protestou. Por isso, a representação chinesa não terá podido entrar na câmara ardente de Westminster. Ao invés, o embaixador de Taiwan em Londres, Kelly Hsieh, foi convidado a assinar o livro de condolências de Lancaster House. E o convite ao príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, ligado ao assassinato de Jamal Khashoggi em 2018, não caiu bem nos meios diplomáticos. Mas, como solução de recurso, compareceu o príncipe Turki al-Faisal, alto membro da realeza saudita.

No domingo, dia 18 de setembro, Carlos III recebeu todos os líderes mundiais em Buckingham, mas, na véspera, recebeu em privado e individualmente, os representantes da Commonwealth, para dar um elã à organização. Começou pelos primeiros-ministros da Austrália, do Canadá e da Nova Zelândia. E Jacinda Arden, primeira-ministra deste país afirmou não ter, de momento, intenção de romper os laços com a monarquia britânica.

O presidente português esteve em Westminster Hall, assinou o livro de condolências de Lancaster House e participou na receção oficial no palácio de Buckingham, tudo sem entrave ou hesitação diplomática ou pessoal. O encontro com o rei, como explicou Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas portugueses, foi como “um fórum mundial” em que se abordam “todos os problemas do mundo”. Ali se encontravam o imperador do Japão, a primeira-dama da Ucrânia, os presidentes europeus na generalidade, alguns primeiros-ministros e todas as famílias reais europeias.” Destacou a presença de países candidatos à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) (na semana anterior, o Parlamento português aprovou a adesão da Suécia e da Finlândia), do primeiro-ministro da Irlanda – o Reino Unido tem divergências com ele pelos efeitos da saída da União Europeia (EU) para a Irlanda do Norte – e a preponderância dos altos representantes da Commonwealth, nomeadamente do primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau e, em representação de Moçambique, do antigo Presidente Joaquim Chissano.

Não se imagina o número de questões que se abordam em duas horas e meia!” – frisou. Entre os assuntos abordados esteve, como revelou, “a situação económica, financeira e social do mundo”. Não estavam apenas europeus, mas também governantes africanos e asiáticos. E enfatizou: “Nem nas Nações Unidas é assim”. Com efeito, lá “os governantes chegam, falam e partem, fazem reuniões bilaterais, mas não ficam dois dias seguidos, todos ao mesmo tempo no mesmo local”, nem andam de autocarro juntos, como fizeram, por exemplo, Marcelo, os reis de Espanha, os imperadores do Japão e grande parte da realeza europeia. Na verdade, por exigência do protocolo, prescindiram das viaturas oficiais e deslocaram-se em ‘buses’, que partiram, com pontualidade britânica, do Hospital Real de Chelsea até à abadia de Westminster. Não obstante, pelo menos cinco delegações do G-7 pediram regime de exceção, por segurança ou por idade avançada dos dignitários. Assim, Joe Biden viajou num carro blindado, conhecido como The Beast (A Besta).

Depois de prestar homenagem a Isabel II, Biden comparou-a à sua mãe pela disponibilidade e ajuda, transmitindo sobretudo “uma noção de serviço”. Por outro lado, adiou para os próximos dias, já em Nova Iorque, onde vai decorrer a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), um encontro que marcara com a primeira-ministra britânica, Liz Truss. Porém, Truss fez diplomacia. Recebeu o chefe do Governo da República da Irlanda, Micheal Martin, o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, e o presidente polaco, Andrzej Duda. Foram conversas informais e não encontros bilaterais, mas o encontro com Micheal Martin tem importância política, dada a tensão entre os dois países pela situação em que o Brexit deixou a Irlanda do Norte.

Já o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, não teve pudor em usar Londres para política eleitoral: num comício junto à embaixada, discursou para cerca de 200 apoiantes, a quem garantiu que que vai ganhar as eleições: “Não existe tal coisa como não ganhar na primeira volta”, afirmou, citado pela agência Efe, o que induziu Lula da Silva, que está à frente nas sondagens, a considerar “louvável” que Bolsonaro tenha assistido ao funeral da rainha, mas a condenar o aproveitamento da viagem para “fazer discursos” e “criticar a esquerda”. Segundo a Associated Press, esta viagem é vista pelos apoiantes de Bolsonaro como uma oportunidade para influenciar alguns eleitores e contrariar a imagem de que o líder brasileiro está isolado em relação a outros líderes mundiais.

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O presidente português, falando aos jornalistas após a receção no palácio de Buckingham, que viu como “um fórum mundial” onde se tratou de muitos problemas, como foi referido, assegurou não ter pena de não ter imitado o homólogo francês, pois não pensou visitar a fila dos que esperavam para entrar no velório real e elogiou a preparação de Carlos III para o trono: “Tem uma longa experiência em questões ambientais, de paz, de diálogo com culturas diversas e até consciência da situação social, através de [várias] ONG.”

Marcelo Rebelo de Sousa observou que, nestas ocasiões deixa de parte o seu “lado lúdico”, pois “há limites para a heterodoxia”, não sendo, portanto, para funerais as fugas ao protocolo.

Referiu que, em Isabel II, quis celebrar a história comum dos dois países, a velha aliança e o contributo, “primeiro da Inglaterra, depois do Reino Unido”, para a independência de Portugal em várias ocasiões (o Papado esteve na sua origem – digo eu), embora o Ultimato de 1890 tenha sido “um momento infeliz”. Mas lembrou que Portugal também reconheceu a independência dos Estados Unidos da América (EUA), no século XVIII, contra a vontade do aliado. Regozijou-se pela reação “muito expressiva” do rei à evocação por si do 650.º aniversário do Tratado Anglo-Português de 1373, a assinalar no próximo ano. E, contando que o rei o interpelou: “Mas não estamos a celebrar isso este ano? Lembro-me de ter dado o meu patrocínio!”, admitiu que que o monarca se referisse ao Tratado de Tagilde, de 1372, que fez a mesma idade em 2022 e que foi precursor do Tratado Anglo-Português e do mais robusto Tratado de Windsor, de 1386.

Da falecida real Marcelo elogiou a coragem, o sentido de Estado, o conhecimento das pessoas, a sabedoria e a afabilidade. Recordando que a rainha viveu “alguns dos períodos mais difíceis da história do mundo”, disse “estar perante 100 anos de história”, pois a soberana “era como se já fosse história quando ainda fazia história”. E sentiu-se “a representar Portugal” e a admiração de muitos concidadãos pela rainha, que “a tiveram como referência”. É exagero, não?!

Não lhe parece excessivo o luto nacional de três dias decretado pelo Executivo português, que justificou pelas tradições diplomáticas, evocando o caso do imperador japonês Hirohito, que mereceu igual período de pesar em 1989. “Não é só uma homenagem a Isabel II, mas ao papel histórico do Reino Unido em momentos especiais” – vincou. Será recíproco o trato britânico?

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Em suma, os sinais políticos que vieram à tona são vários: o rei e a primeira-ministra quiseram marcar posição ante a postura de alguns países face às guerras e a temas candentes a nível mundial, bem como à posição de Taiwan frente à China; tentaram criar empatia com a Commonwealth; Carlos III quis assumir-se como um soberano capaz; Liz Truss quis minorar as consequências do Brexit junto da Irlanda; a NATO aproveitou o ensejo para mostrar a sua força; Biden remeteu as grandes discussões para a Assembleia Geral da ONU; Marcelo Rebelo de Sousa quis colar Portugal à história do Reino Unido e ao prestígio de Isabel II; Bolsonaro fez política eleitoral e quis vincar que não é um líder isolado; e os outros países foram diplomaticamente corteses.       

Resta saber o que será do Reino Unido pós-isabelino. Em 1962, o secretário de Estado americano, Dean Acheson, afirmou que o país tinha “perdido um império sem ainda ter encontrado o seu papel”. Em 2002, na altura do Jubileu de Ouro da Rainha, acreditava-se que o Reino Unido tivesse, encontrado tal papel, já que a soberana teria contaminado o Reino pela sua independência, magia e atenção solícita. O Reino Unido estaria firmemente ancorado na Europa e na anglofonia. Teria relação especial com os EUA, mas também com países como França, Alemanha e Polónia.

Todavia, fora do Reino Unido, poucos pensam que este tenha uma posição estratégica clara e forte. Desde o referendo do ‘Brexit’, decaiu da primeira-ministra conservadora infeliz, mas pragmática (Theresa May), para uma paródia de Winston Churchill (Boris Johnson) e, agora, para uma inexperiente Margaret Thatcher (Liz Truss). No entanto, se a extensa cobertura mediática britânica das cerimónias teve um elemento de fuga psicológica dos males atuais, alguma cobertura estrangeira tem exagerado a fraqueza por trás da pompa e circunstância. Porém, este é um país ainda com grandes forças. E não há razão para pensar que o rei não venha a ser um chefe de Estado digno e contido. E, se os governos estragarem tudo, as eleições os substituirão.

Adivinham-se tempos difíceis para o Reino Unido pós-isabelino, não tais que a nação não seja capaz de ultrapassar, a menos que a Escócia e a Irlanda do Norte entrem em secessão.

2022.09.20 – Louro de Carvalho

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