sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Façam justiça, mas poupem-nos à humilhação da justiça-espetáculo

 

Para haver justiça, os seus operadores e, sobretudo, os decisores têm de procurar a verdade por todos os meios possíveis e nunca desvalorizar qualquer elemento que possa fazer luz em relação à verdade. Ao mesmo tempo, é mister que saibam agir e decidir ponderosamente na busca da equidade segundo a justa medida e a proporção, usando de comedimento e de clareza na redação de despachos, sentenças e acórdãos, bem como na comunicação com o público.

A justiça tem como inimigos, em termos da ineficácia e da equidade: a parcialidade, a diferença de tratamento de réus e de arguidos, a morosidade, a complexificação artificial, a proclamação fastidiosa do número de crimes (na ordem das centenas, por vezes) ao arguido, a fuga do segredo de justiça, quando a ele há lugar, o megaprocesso, a sede de protagonismo e o espetáculo humilhante e desnecessário. Por outro lado, o público não precisa de saber mais nada além do necessário sobre os erros ou sobre as mazelas do arguido (o que interessa para que se faça justiça).

Estes considerandos vêm a propósito do que se passou nos últimos dias com Duarte Lima.    

Não há muito tempo, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), antes de concluído o acórdão que resultaria na libertação efémera do recluso, perguntou ao Tribunal de Sintra se interessava a sua prisão preventiva ou a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE), caso viesse a ser libertado no âmbito do processo de que estava a cumprir pena. A resposta foi a de que, “nos presentes autos aguarda-se o julgamento do arguido”, e “por ora não se encontra em execução qualquer medida de coação”.

Nestes termos, a 29 de setembro, o desembargador Calheiros da Gama mandou libertar o recluso, visto que já lhe tinha dado razão no recurso que apresentou depois de o Tribunal de Execução de Penas (TEP) lhe ter recusado a liberdade condicional a dois meses do cumprimento total dos seis anos de prisão a que fora condenado por burla ao Banco Português de Negócios (BPN).

Porém, mal saiu da cadeia, sozinho, foi abordado por agentes da polícia – uns à civil e outros devidamente uniformizados – na posse de mandado de detenção do Ministério Público (MP) para ser presente a um juiz que determinaria, no dia 30, as medidas de coação a que ficaria sujeito até ao início do julgamento do homicídio de Rosalina Ribeiro, marcado para 23 de novembro.

Esta intervenção policial, que britou a liberdade de pouco mais de um minuto, foi profusa e ostensivamente transmitida em direto por um dos canais de televisão.

O advogado do arguido, “absolutamente indignado”, fala de “humilhação pública” e diz que “a justiça sai muito mal disto”, referindo, sem apontar a culpa a alguém, que sabe não ter havido “vontade em evitar isto”.

O referido desembargador do TRL deu provimento ao recurso de Duarte Lima por este haver demonstrado “relevante e demonstrada capacidade objetiva de readaptação”, de modo que “as expectativas de reinserção são manifestamente superiores aos riscos” para a comunidade pela “antecipação da sua restituição à liberdade”. Ou seja, há séria probabilidade de o recluso, uma vez em liberdade, adotar “um comportamento socialmente responsável, do ponto de vista criminal”. Por outro lado, o recluso assumiu a prática dos factos que levaram à sua condenação e manifestou vontade em pagar a indemnização a que foi condenado – 18 milhões de euros que o Estado ainda não executou, nem justificou porque não o fez.

E, para o desembargador, o facto de ter pendente uma acusação de homicídio qualificado não era suficiente “critério para não beneficiar da liberdade condicional suficiente”.

Paralelamente ao recurso para o TRL, o advogado de Duarte Lima tentou que o TEP o libertasse por razões de saúde, aduzindo o impedimento de virar páginas de livros e a necessidade de tomar medicação para as dores que o deixam prostrado.

Entretanto, na audição ante um juiz de instrução criminal, o MP queria que o arguido aguardasse o início do julgamento do homicídio em prisão preventiva ou domiciliária (OPHVE). Mas o debilitado estado de saúde do ex-líder parlamentar do PSD – 80% de incapacidade – levou a juíza a optar por libertá-lo com a obrigação de se apresentar uma vez por semana numa esquadra e de entregar o passaporte. Assim, após liberdade efémera, quebrada pela detenção espetacularmente visionada no país, Duarte Lima é um homem livre com algumas restrições a aguardar o início do julgamento do homicídio longe da prisão da Carregueira onde passou os últimos três anos, cumprindo uma pena de seis a que foi condenado pela burla de 18 milhões de euros ao BPN.

Apesar de a procuradora ter solicitado uma medida de coação privativa de liberdade – prisão preventiva ou domiciliária (OPHVE) –, alegando perturbação da ordem pública e perigo de fuga, a juíza optou pela libertação, mesmo admitindo tais perigos. Na decisão, pesou o estado de saúde do arguido que, aos 66 anos, sofre de diversas maleitas. E a comunicação social enumera tanto as antecedentes como as atuais – algo a que, em meu entender, o arguido não tem de prestar contas ao público (por isso, abstenho-me de as transcrever), porque em nada contribui para o apuramento da verdade e pode deixar passar a ideia de que o arguido merece a compaixão pública e a prerrogativa de não sujeição a julgamento.

Nem oito nem oitenta. Faça-se justiça, prescinda-se do espetáculo e não se crie compaixão, que é tão maléfica como a vergasta ou como a autovitimização.    

Segundo a juíza, mesmo havendo perigo de fuga, não é obrigatória a aplicação de uma medida restritiva de liberdade, mas uma “necessária” para o evitar. E, tendo em conta o estado de saúde do arguido, são suficientes as apresentações semanais.

Para alguns, importante é prender; investigar e julgar virão depois. Perturbação da ordem pública neste arguido não se vê agora como. Teoricamente, perigo de fuga haverá sempre, mesmo com passaporte entregue e apesar de doente (há quem ande lá por fora com alzheimer), pois a imaginação não tem limites. Alarme social houve aquando da notícia de suspeita de homicídio, mas agora não.

***

Justiça-espetáculo não é justiça. Pode ser agenda política ou furo mediático. Um processo judicial, que é de natureza pública, a menos que o tribunal entenda que o decoro fica prejudicado, não se presta necessariamente ao espetáculo. Antes, faculta ao público, diretamente e/ou através dos jornalistas, toda a informação (e só essa) que seja suficiente para mostrar como é feita justiça, aqui e agora, como se respeitam os princípios, normas e valores do direito, como se chega às decisões, como estas são fundamentadas e como se defende o interesse público – respeitando sempre as pessoas, sejam elas as vítimas, sejam elas os arguidos. São sempre as pessoas que estão em jogo, independentemente da sua condição económica, social ou política.

Desgraçadamente, o caso de Duarte Lima não é o único a lamentar pela excessiva exposição aos holofotes e à pantalha de alguma comunicação social, ávida de audiências.

Só a título de exemplo, recordo a espetacular entrada do juiz Rui Teixeira na Parlamento, rodeado de câmaras de TV, a solicitar o levantamento da imunidade do então deputado Paulo Pedroso para ser constituído arguido no processo da Casa Pia (facto desproporcionado, pois não foi apanhado em flagrante), que esteve em prisão preventiva, mas que não chegou a ser pronunciado, pelo que foi posto em liberdade. A isso o seu grupo parlamentar respondeu com apoteótica receção no Parlamento, aquando da sua libertação. Porém, da condenação pública não se libertou.

A “Operação Marquês” teve o seu primeiro momento espetacular com a detenção de José Sócrates na manga do aeroporto de Lisboa sob a mira das câmaras de televisão, logo seguido das diligências de busca na casa ou nas casas do mesmo. A entrada do estabelecimento prisional de Évora tornou-se especial palco de espetáculo nacional nos vários meses em que lá esteve o detido n.º 44 e a saga continuou nas páginas dos jornais e nos vídeos divulgados.

A televisão não adivinha estes momentos, mas há alguém que a avisa. Quem será?

Lembro, ainda, pela inanidade de eficácia e pela sede de espetacularidade, a apresentação, sob as câmaras da televisão e negociada pela respetiva advogada, do arguido Pedro Dias, apos ter andado a monte na sequência dos incidentes criminais de Aguiar da Beira.   

É certo que, nos casos apontados, não se trata de ação judicial por parte de tribunal que emita decisões condenatórias ou absolutórias. Porém, são operadores de justiça – polícias, procuradores, advogados e juízes de instrução – que fazem as diligências necessárias para se ter a probabilidade sustentável de levar (ou não) alguém a julgamento a fim de pagar pelos atos praticados.

Mesmo nos casos em que se fez justiça, não foi o espetáculo que a fez ou a favoreceu; apenas deu visibilidade a quem dela tinha necessidade ou ambição. Nos outros casos, só levou a que a opinião pública fizesse a inapelável condenação das figuras-alvo (contrariando a presunção de inocência), podendo, além da sede de protagonismo, ter indiciado algum resquício de ressabiamento por medidas tomadas ou negadas e ter prejudicado o andamento dos respetivos processos.

É, pois, imperioso que se faça justiça, mas que, sem negar ou diminuir a informação ao público, se renuncie ao espetáculo vazio de conteúdo e pleno de sensacionalismo. Punam-se os erros, respeitem-se as pessoas!

  2022.09.30 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário