segunda-feira, 12 de setembro de 2022

“Sabe melhor Deus o que faz do que tu o que dizes”

 

Contou o padre Sérgio Filipe Pinho Leal que, num dos diálogos que tivera com o Papa em Roma, num dos encontros sobre o caminho sinodal em curso, a determinado momento, se azou a conversa sobre a proveniência do “padre da sinodalidade” (a sinodalidade era tema da tese do padre Leal). E o episódico interlocutor de Francisco disse que era proveniente de uma diocese de Portugal cujo bispo só a pastoreou durante pouco mais de três anos, pois morreu precocemente.

Francisco atalhou de imediato: “És do Porto”. Lembrava-se de que um dos primeiros bispos que nomeara era português e que falecera inesperadamente: D. António Francisco dos Santos.

Por sua vez, o padre Leal atirou: “Se calhar, Deus já se terá arrependido de o ter levado tão cedo, dada a falta que faz na Igreja” (cito de cor). Porém, o Santo Padre retorquiu: “Sabe melhor Deus o que faz do que tu o que dizes.”

São, de facto, insondáveis os desígnios da Providência. Se a morte deste santo prelado tivesse ocorrido em idade mais provecta, possivelmente, dada a habituação e o foco nas tarefas pastorais, levaríamos mais tempo a apercebermo-nos da sua real oferta de vida ao Pai através dos outros, no quadro do lema episcopal que adotou: “In manus tuas” (Lc 23,46). 

De 11 de setembro de 2017 a 11 de setembro de 2022 vão cinco anos, um quinquénio, um “lustro”, como significativa marca do tempo e da ação sacrificial. Na verdade, lustro (do Latim, lustrum, relacionado com o verbo lauare, lavar), era o quinquénio, o sacrifício expiatório, o ritual de purificação realizado a cada cinco anos pelos censores, bem como o tempo do censo e o período entre dois anos bissextos (a contagem em Latim incluía o terminus a quo e o terminus ad quem). O verbo lustrare significa visitar, percorrer, andar à volta de um lugar para o purificar, passar revista a. A evolução semântica do vocábulo resulta do facto de a cerimónia da purificação ser, a princípio, acompanhada de procissão em torno do lugar que se queria purificar e, mais tarde, da revista feita às tropas. Em segunda aceção, lustrare (relacionado com lux) significa alumiar, brilhar, iluminar, esclarecer. Lustro, nome derivado, por conversão, do verbo lustrar, passou a significar brilho ou polimento de um objeto (= lustre); fama, resplendor, glória ou brilhantismo (= lustre); clarão  súbito e rápido proveniente de descarga elétrica entre nuvens ou entre nuvem e a Terra (= alustre, alustro, relâmpago). E dar lustro é fazer com que algo brilhe, geralmente friccionado (ex.: dar lustro aos sapatos = lustrar).

Razão tem, portanto, Adão Sequeira, um dos mais insignes aselistas, quando escreve, no blogue da ASEL (Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Lamego), que “a mistura do tempo, do brilho e da luz dão memória”, que é mister “avivar, ter e manter”. Ao mesmo tempo, admite que, se o tempo faz distância, quase sempre “faz caminho”.

Pode, em meu entender, aplicar-se em pleno a Dom António Francisco – acerca de quem é usual dizer “convivemos com um Santo” – o teor da perícopa da 1.ª Carta de Paulo a Timóteo assumida como 2.ª leitura da missa (1Tm 1, 12-17) do XXIV domingo do Tempo Comum no Ano C, que, neste ano, caiu no dia 11 de setembro (em 2017, era uma segunda-feira):

“Dou graças Àquele que me deu força, Jesus Cristo, Nosso Senhor, que me julgou digno de confiança e me chamou ao seu serviço. (…) A graça de Nosso Senhor superabundou em mim, com a fé e a caridade que temos em Cristo Jesus. (….) Obtive misericórdia, para que, em mim primeiro, Jesus Cristo manifestasse toda a sua magnanimidade, como exemplo para os que hão de crer n’Ele, para a vida eterna.

“Ao Rei dos séculos, Deus imortal, invisível e único, honra e glória pelos séculos dos séculos.”

Sem revelar nada que não possa, apraz-me – e devo – dizer que D. António se era totalmente apanhado por Jesus Cristo e sabia que lhe era dada a graça de estado para desempenhar com proficiência os misteres inerentes à sua missão, mesmo quando sentia alguma incapacidade. Não é por acaso que, tal como referia D. Américo Aguiar, que adotou o mesmo lema episcopal, Dom António Francisco, mesmo em qualquer escolho do caminho mais problemático, tentava ver e fazer ver algo de positivo, por mínimo que fosse, ou seja, o prelado que hoje teria 74 anos de idade tentava perscrutar os sinais dos tempos, enquanto marcas de Deus num mundo conturbado.   

Tem plena razão Adão Sequeira ao evocar “este caminho de cinco anos simbólicos”.

A sua caminhada episcopal, que nunca despiu a marca sinodal, começou aquando da nomeação para bispo titular de Meinedo e auxiliar de Braga com o lema “In manus tuas”, horizonte de que nunca se afastou, mas é a coroa de toda uma vida apostólica. E terminou, de forma solene, em Fátima, na Capela das Aparições, a 9 de setembro de 2017, com o ato de entrega e de consagração da diocese e do povo do Porto ao “regaço acolhedor da Mãe”. Foi em plena peregrinação diocesana, que já não se fazia havia muitos anos, que se celebrou, à distância, a dedicação da Sé Catedral do Porto, cuja titular é Nossa Senhora da Assunção. Porém, a sua última aparição e tributo pastoral ocorreram no dia 10, subsequente ao dia da peregrinação e véspera do dia da sua morte, numa das paróquias de Vila Nova de Gaia, com o bispo a pôr de lado os papéis onde escrevera o testo da sua homilia para falar espontaneamente sobre o significado daquela ação litúrgica dominical. E, por ter começado a parafrasear o segmento lucano “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer, pois digo-vos que não mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus”, o pároco, face à morte inesperada no dia seguinte, considerou premonitórias tais palavras que, aliás, não constavam dos textos da liturgia daquela dominga.    

Não obstante, é emblemática a referência aproximante entre duas datas separadas por 50 anos: a 13 de maio de 1967, D. António Francisco visitou a “Mãe” em Fátima pela primeira vez (era a primeira visita do Papa a Fátima: São Paulo VI); e, a 9 de setembro de 2017, aí voltou. Se não “foi lá que terminou o caminho da sua viagem”, foi-o também sob a égide da “Mãe” nas imediações da Cidade da Virgem e perto do santuário mariano da Serra do Pilar.

No Altar de Fátima e do mundo, “sem pai, sem mãe, sem irmãos, mas rodeado do seu numeroso clero”, como escreve Sequeira, “tem a glória de ter e ver a diocese em peregrinação memorável (quase 80.000 almas) a rezar em hinos e cânticos de louvor”, uma “peregrinação dinâmica da fé, da união, da Bondade, da alegria, do sorriso e da esperança”.

Agora, cremos na Comunhão dos Santos, aliás como devíamos crer em vida do ilustre prelado. Na verdade, os santos, no profundo sentido batismal são os seguidores de Jesus (a designação de cristãos só aparece a partir de Antioquia). E esta comunhão é entre vivos e entre vivos e defuntos. Abrange as graças espirituais, as orações, os méritos e deméritos de cada um (que beneficiam ou lesam os outros), mas deve levar à partilha dos bens materiais, não só dos essenciais à sobrevivência, mas também dos que a civilização considera relevantes. Do céu, em teletrabalho com a eficácia de Deus, D. António intercede por nós e obtém graças para quem necessita.     

Os amigos (E porque não devotos?) criaram o dinamismo “Caminhando com D. António”, que vive e cresce há cinco anos. Em cada dia encontram uma virtude a imitar, uma bondade a viver, no “homem de memória agradecida (...) que soube esquecer-se de si para ser próximo de todos”. E topam “um caminho de reflexão” sobre o homem, o pastor, o irmão, bem como “uma análise meditada  sobre tudo o que foi dito em momentos desinibidos em que o sentimento e a verdade vieram à tona da comunicação”. É programático o que proclamou em Fátima a 9 de setembro de 2017: “O caminho pastoral não se encerra em nenhum lugar e a nossa missão não termina aqui nem agora. Este é, apenas, o início de uma nova etapa de caminho nos desafios por Deus semeados no íntimo da vida de cada um de nós (...) que nos dizem que há por toda a diocese dinamismo e vigor, iniciativa e propostas de uma fé professada, celebrada, viva, testemunhada e anunciada com alegria (...) porque  a alegria do Evangelho é a nossa missão”.

Adão Sequeira sublinha, no quadro da “Comunhão dos Santos”, as graças “já através dele obtidas e ainda caladas”, como: a mãe que diz “a minha filha foi Ele que a salvou”; o que revela que a covid lhe passou ao lado e foi a Ele que rezou; o padre que agora não reza nem pede a outro santo, senão a Ele (talvez seja excessiva tal exclusividade); e a quase oração publicada por alguém ativo na comunidade “que a ternura do seu olhar (...) ilumine os nossos passos” (De acordo!).

E Adão Sequeira observa que o tempo de D. António culminou numa verdadeira “Oferta de Vida” com momentos de premonição que ilustra com umas frases do bispo na homilia de 19 de julho de 2014, na festa de Pai Américo, fundador da Obra da Rua, levado para o Pai quando os seus tanto dele esperavam: “Partiu cedo de mais, (...) deixando órfãos os seus filhos espirituais. São desígnios insondáveis da Providência. Pertence-nos implorar de Deus a sua beatificação e canonização para que a sua graça e a sua bênção se afirmem mais claramente em nós e na sua vida e missão encontremos o exemplo a seguir.Por isso, considera que não é ousadia repetir (e eu subscrevo) o que disse à Igreja como tal e aos leigos como irmãos, a 8 de dezembro de 2017, em Aveiro, na apresentação do livro In Manus Tuas,padre Francisco Melo: .... Convivemos com um santo.  Rezo para que as dioceses de Lamego, Aveiro e Porto iniciem, quanto antes, o processo para que tal possa ser confirmado pela Igreja Universal.

2022.09.11 – Louro de Carvalho

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