domingo, 18 de setembro de 2022

As crises eclipsam os valores, engordam os ricos e criam mais pobres

 

 

A liturgia do 25.º domingo do Tempo Comum no Ano C apresenta-nos, em 1.ª leitura, um trecho da profecia de Amós (Am 8,4-7), o “profeta da justiça social”, que profetizou no reino do Norte (Israel) em meados do século VIII a.C., no reinado de Jeroboão II.

Era época de prosperidade económica e de tranquilidade política, após as conquistas de Jeroboão II que ampliaram significativamente os limites do reino e facilitaram a entrada de tributos dos povos vencidos. Assim, o comércio e a indústria – mineira e têxtil – conheceram largo incremento e as construções burguesas nas cidades atingiram inéditos luxo e magnificência.

Com essa situação de prosperidade e de bem-estar das classes favorecidas contrastava a miséria das demais. Obviamente, os despojos da guerra das conquistas e os escravos de guerra foram postos ao serviço dos mais ricos e poderosos. Além disso, a distribuição dos bens produzidos durante as conquistas e agora (cada vez mais rarefeitos) era feita por comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o seu bem-estar económico, especulavam com os preços, num ambiente de agricultara meio abandonada por a mão-de-obra ser desviada para os grandes empreendimentos. Ora, com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e eram espoliadas das suas terras em prol dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que se fizesse justiça aos mais pobres e se defendesse os direitos dos menos poderosos.

Neste ambiente, surge o profeta Amós, natural de Técua (pequena aldeia do deserto de Judá), que não era profeta profissional. Chamado por Deus, deixou a sua terra e partiu para o reino vizinho a gritar à classe dirigente a sua denúncia. A rudeza do discurso, aliada à integridade e afoiteza da fé, trazendo algo do ambiente duro do deserto, contrastava com a indolência e o luxo da sociedade israelita da época.

O oráculo proposto nesta dominga denuncia asperamente as atividades dos que “espezinham o pobre” e querem “eliminar os humildes da terra”. Os denunciados pelo profeta são comerciantes sem escrúpulos, dominados pelo espírito do lucro, cujos olhos só veem o dinheiro, que idolatram e guardam ciosamente. Porque têm dificuldade em desapegar-se do dinheiro, compram aos agricultores os produtos da terra a preços irrisórios e, porque pretendem avidamente aumentar o seu já obsceno pecúlio, revendem-nos aos pobres a preços exorbitantes, especulando com as necessidades dos humildes. E, não contentes com isso, roubam os clientes pobres, usando pesos, medidas e balanças falsas; aldrabam a qualidade dos produtos, misturando as cascas com o trigo; e, nos dias de sábado e de lua nova (dias sagrados, por isso de suspensão das atividades lucrativas), em vez de se dedicarem ao louvor de Deus, estão ansiosos por recomeçarem os negócios de especulação e de exploração do pobre, a fim de aumentarem escandalosamente os seus lucros.

Nem reparam que tudo isso configura violação grosseira dos mandamentos da Aliança. O Senhor não aceita ser cúmplice da injustiça e da exploração do pobre. Qualquer crime cometido contra os pobres é crime contra Deus. Por isso, Amós anuncia que Deus não deixa passar em claro este comportamento, antes intervirá para acabar com a exploração e a injustiça. A fórmula solene de juramento “o Senhor jura pelo orgulho de Jacob” significa a irrevogabilidade da decisão de Deus.

O Evangelho (Lc 16,1-13) apresenta a parábola do administrador astuto, em que Jesus oferece aos discípulos o exemplo do homem – esperto – que percebeu como os bens do mundo são caducos e precários e que os usou para assegurar valores mais duradouros e consistentes. Jesus adverte os discípulos para usarem de esperteza, não de mentira e de roubo ou de indução dos outros à mentira e ao roubo, mas das habilidades honestas de que forem capazes para fazerem amigos com o vil dinheiro. A referência evangélica desta dominga configura mais um passo do “caminho para Jerusalém”. Jesus, desta feita, não Se dirige aos fariseus, mas aos discípulos de então e aos de todos os tempos. Através de uma história de contornos de caso real, Jesus instrui acerca da forma como se situar face aos bens do mundo. O teor do texto gravita em torno da sábia utilização dos bens materiais, que devem servir para garantir outros bens, mais duradouros.

Em primeiro lugar, a parábola do administrador sagaz, acusado de gerir de modo incompetente (até desonesto) os bens do amo, mostra-no-lo chamado a contas e despedido. Ante esta imprevista situação existencial, o homem preocupa-se em assegurar o futuro. Chama os devedores do patrão e faz-lhes redução considerável das quantidades em dívida, crente de que os ora beneficiados, não esquecendo a generosidade do agora benfeitor, lhe manifestarão, mais tarde, a sua expectável gratidão acolhendo-o em sua casa. É caso para nos interrogarmos se estes beneficiados não esquecerão futuramente o benefício, tal como dá para nos questionarmos se é justificável o procedimento deste administrador, que assegura o futuro, de modo fraudulento, à custa dos bens do seu amo. E é de estranhar como o amo, prejudicado nos seus interesses, não tem uma palavra de reprovação ao inteirar-se do prejuízo recebido e como pode Jesus dar como exemplo aos discípulos as diligências de ocultação da verdade e de roubo da parte deste administrador.

Segundo as leis e costumes da Palestina ao tempo, o administrador de uma propriedade agia em nome e em lugar do amo e, como não recebia remuneração, ressarcia-se dos seus gastos a expensas dos devedores. Habitualmente, o administrador apresentava ao amo um determinado número de bens de cada devedor, mas longe do que o devedor tinha em dívida, ficando a diferença por conta da “comissão” do administrador.

O certo é que o amo, tendo dado conta ou tendo sido informado da administração incompetente e desonesta do seu administrador, lhe retirou a confiança e o despediu. Assim, o que administrador perspicaz terá feito foi renunciar ao lucro imediato que lhe era devido, assegurando a gratidão dos devedores: renunciou ao lucro imediato para assegurar o futuro. E, se é chamado “desonesto”, não o é por este gesto com os devedores, mas pelos atos anteriores, que levaram o patrão a despedi-lo. É, pois, um exemplo de perspicácia e de sagacidade: sabe que o dinheiro só tem um valor relativo, pelo que o troca por valores mais significativos, como a amizade e a gratidão. Jesus conclui a história convidando os discípulos a serem tão hábeis como este administrador, usando os bens deste mundo, não como um fim, mas visando algo mais importante e mais duradouro: os valores do Reino de Deus.

Num segundo momento, o evangelista apresenta uma série de sentenças de Jesus sobre o uso do dinheiro, que advertem os discípulos para o bom uso dos bens materiais: se souberem fazer uso deles, tendo em conta as exigências do Reino, receberão o verdadeiro bem, quando se encontrarem em definitivo com o Ressuscitado. O texto evangélico conclui com o aviso de Jesus sobre a deificação do dinheiro: Deus e o dinheiro são mundos contraditórios, de impossível conjugação. Por isso, os discípulos são instados a optar entre um mundo de egoísmo e de exploração e um mundo de doação, de partilha, já que é impossível servir a dois senhores: Deus e o dinheiro.

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O texto de Amós tem paralelo no Novo Testamento, por exemplo na Carta de Tiago, o Amós do Novo Testamento, devido à sua preocupação com a justiça social. Os cristãos a quem Tiago se dirige enfrentavam um ambiente de crise, com problemas pessoais (enfraquecimento da fé e risco de apostasia) e outros maiores em suas assembleias, devido à religiosidade e hipocrisia de alguns, ao servilismo de outros e à acumulação excessiva e indevida de bens por parte de uns poucos. Neste contexto, alguns cristãos despendiam absoluta atenção aos ricos (Tg 1,9-11; 2,1-13), ficando aumentado o número de pobres, enquanto outros eram roubados pelos ricos (Tg 5,1-6). Tudo isto se devia a imaturidade e pouco esclarecimento na fé.

Assim, Tiago aconselhou os cristãos que possuíam já maturidade espiritual para que auxiliassem o mais fraco na fé a voltar a prática do verdadeiro evangelho de Cristo e tal irmão receberia de Deus a devida recompensa.

É dura a invectiva de Tiago aos ricos: “E agora vós, os ricos, começai a chorar e a gritar por causa das desgraças que estão para cair sobre vós. Tendes as riquezas podres, as roupas roídas pela traça, o ouro e a prata enferrujados. E a sua ferrugem testemunhará contra vós e como fogo vos devorará a carne. Vós amontoastes tesouros para o fim dos tempos. Vede o salário dos trabalhadores que fizeram a colheita nos vossos campos, retido por vós, a clamar. Os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vós tivestes na terra uma vida de conforto e luxo. Vós estais a ficar gordos para o dia da matança. Vós condenastes e matastes o justo, e ele não conseguiu defender-se.” (Tg 5,1-6) E, a garantir que Deus prefere os pobres, Tiago questiona: “Não foi Deus quem escolheu os que são pobres aos olhos do mundo, para torná-los ricos na fé e herdeiros do Reino que ele prometeu àqueles que o amam? Porém, vós desprezastes o pobre! Ora, não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam perante os tribunais? Não são eles que difamam o nome sublime que foi invocado sobre vós?” (Tg 2,5-7)

E, no Evangelho de Lucas, Jesus invetiva os ricos: “Ai de vós, os ricos, porque já recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais saciados, porque haveis de ter fome!” (Lc 6,24-25)

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É importante vigiar em tempo de crise, seja ela económica, social, cultural, política, bélica ou religiosa. Importa que não nos deixemos arrastar para o servilismo e para a adulação, como importa que saibamos encarar a vida, trabalhando pela subsistência, pedindo ajuda quando dela necessitarmos, reivindicando a satisfação dos direitos, cumprindo os deveres, honrando os compromissos, denunciando os abusos de poder e de enriquecimento e criando ou incrementando as ondas de solidariedade necessárias. A dignidade da pessoa humana o merece, o bem da comunidade o exige, o reino de Deus o sublima.

2022.09.18 – Louro de Carvalho

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