quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Cenário previsível para 2023 na Zona Euro

 

O Banco Central Europeu (BCE) decidiu, a 8 de setembro, a maior subida da taxa diretora de juros em 75 pontos base, em vez dos 50 previstos, alegadamente para suster a inflação galopante. E, reconhecendo o seu erro de previsão, admite que pode vir aí uma recessão. Na verdade, o aperto da política monetária e as tensões geopolíticas e nos mercados energético e alimentar deixam antever dificuldades a acrescer àquilo com já se contava.

Nem o BCE, nem Christine Lagarde explicitaram que vinha aí “alguma dor para as famílias e empresas” (disse-o Jerome Powell), mas as projeções macroeconómicas dos economistas de Frankfurt tiveram efeito igual ao da franqueza do presidente do banco central norte-americano no simpósio anual, em agosto, na estância turística de Jackson Hole nos Estados Unidos (EUA).

As novas previsões do BCE desdizem a esperança no abrandamento suave em 2023 na Zona Euro, acompanhado da desaceleração acentuada da inflação, a aliviar a carteira das pessoas e junta-se-lhes antecipação da subida das taxas diretoras nas três a quatro próximas reuniões, uma escalada até final do primeiro trimestre de 2023, quando poderão ser atingidos os níveis de taxas diretoras que o BCE julga capazes de inverter o surto inflacionário.

O cenário-base previsto no BCE aponta para um crescimento económico medíocre de 0,9% no próximo ano – um ritmo similar ao abrandamento de 2002 (acentuado em 2003), na sequência do afundamento da nascente economia dot-com nos países desenvolvidos. Por conseguinte, o desemprego sobe até 7% em 2024, invertendo a trajetória de descida desde maio de 2021 que levou ao mínimo histórico, desde a criação do euro, de 6,6% em julho de 2022. A dinâmica do investimento desacelera de 3,1%, em 2022, para 1,6%, em 2023. O comércio externo cresce menos de metade do previsto para 2022. Apesar de não haver sinais de espiral de aumento dos salários, os custos unitários do trabalho sobem para as empresas de 2,8%, em 2022, para 4,1%, em 2023. E, ante a incerteza geopolítica da expansão russa e dos preços no mercado energético na Europa, o BCE admite um cenário alternativo, em que o Produto Interno Bruto (PIB) da Zona Euro pode cair 0,9% – quebra similar à de 2012, segundo ano da crise das dívidas públicas das economias periféricas (onde se incluía Portugal). Será o regresso da recessão que marcou a zona euro em 2009, de 2012 a 2013 e em 2020.

A maior sensibilidade da Zona Euro ao risco de recessão vem de uma especificidade ultrapassa o estar na frente geopolítica da agressão russa. Como adverte José Reis, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, “aos choques conhecidos e à questão energética e de abastecimentos soma-se a fragilidade produtiva a que a Europa se deixou chegar com a ilusão das cadeias produtivas globais”. A isto acresce um risco geopolítico que fragiliza a Zona Euro: “a periferização da Europa no contexto mundial”. O facto de ter diminuído a sua capacidade de estruturação leva a que não se apresente como “um espaço da economia mundial capaz de se organizar por si”. E alguns economistas portugueses também se inclinam para o pessimismo, apontando como difícil a Europa escapar a uma recessão, quiçá profunda e duradoura, em que a política monetária do BCE poder pesar.

A subida do custo de vida e a queda do rendimento poderão arrefecer o consumo privado e causar a recessão. As baixas reservas de gás natural poderão originar um inverno mais rigoroso. A alta dos juros, na tentativa do BCE de desancorar as expetativas de inflação, diminuirá o rendimento das famílias e penalizará a procura, encaminhando gradualmente a economia para a recessão. A Itália pode ter a sua situação política e orçamental deteriorada após as eleições legislativas de 25 de setembro. As economias mais dependentes do turismo podem resistir melhor. Seria o caso de Portugal, se não tivéssemos deficiente reserva de água.

Segundo as projeções de Frankfurt, pelo menos até final de 2024, a inflação vai manter-se acima de 2%. O surto vai durar mais de dois anos. A projeção avançada a 8 de setembro é para uma inflação anual de 8,1% em 2022, 5,5% em 2023 e 2,3% em 2024. No entanto, alguns economistas admitem que o surto abrande já em 2022, estando em aberto se o pico se registou em agosto (9,1%) ou não. O preço do petróleo caiu de forma acentuada e a subida recorde das taxas de juro pelo BCE contribuirá para o arrefecimento da procura e a apreciação do euro evitará mais inflação importada. Mas o surto pode ser mais doloroso do que o consenso de opiniões antecipa. No predito cenário alternativo, os economistas do BCE projetam 8,4% em 2022, 6,9% em 2023 e 2,7% em 2024. Assim, o regresso à estabilidade de preços fica mais distante.

A mexida nas duas taxas diretoras do BCE, a que estabelece o custo do recurso do setor bancário a financiamento junto dos bancos centrais (a taxa diretora principal que fixa o custo do dinheiro) e a da remuneração que o BCE paga pelos depósitos dos bancos no sistema de bancos centrais tem influência direta sobre as operações de mercado.

O encarecimento da taxa diretora principal do BCE repercute-se no custo de financiamento geral à economia e a subida das taxas de remuneração dos depósitos dos bancos torna mais atrativo o estacionamento da liquidez dos bancos no BCE do que a sua aplicação no crédito à economia.

O reflexo destas decisões é a evolução da taxa Euribor no mercado. O choque inicial para os devedores – nomeadamente para o crédito à habitação – regista-se já em 2022: a taxa Euribor a três meses saltou de terreno negativo (-0,57% no início do ano) para perto de 1% em setembro. Mas o choque prossegue em 2023. A taxa média anual em 2023 projetada pelo BCE, no cenário-base, é de 2%, estabilizando em 2,1%, no ano seguinte. Assim, ao longo de 2023, a Euribor a três meses duplicará em relação ao nível atual que já provoca “alguma dor”. Por sua vez, os bancos podem não facilitar a expansão do crédito, pois o BCE decidiu tornar mais atrativos os depósitos no seu sistema. Após oito anos com taxas de remuneração negativas, o BCE decidiu, em julho, sair do terreno de penalização dos depósitos dos bancos para remunerações positivas: 0,5% em julho e 0,75% a partir de setembro. O objetivo da política monetária era incentivar o setor bancário a reduzir o excesso de liquidez estacionado nos cofres do BCE e a expandir o crédito à economia. Segundo estudo recente do BCE, a introdução do sistema de dois escalões na aplicação da taxa negativa de -0,5% desde setembro de 2019 mitigou o efeito penalizador. Em 2021, a taxa negativa média terá sido de -0,38%.

A partir de julho passado, os bancos deixam de ser penalizados por liquidez excessiva depositada junto do BCE. O incentivo de política monetária é, agora, o inverso do anterior (de oito anos).

Não se sabe até onde irá a taxa de remuneração dos depósitos dos bancos. No último inquérito do BCE junto dos analistas, a mediana das respostas apontava para 1,5% na reunião de março de 2023, perceção que pode já estar desajustada. E alguns admitem que a desaceleração severa ou uma contração económica em 2023 pode obrigar o BCE a fazer uma pausa no ciclo de subidas.

Outro reflexo do encarecimento do custo do dinheiro é a subida dos custos de financiamento da dívida pública da Zona Euro nos mercados. Ainda a 14 de setembro, o Tesouro português foi ao mercado colocar dívida a 10 anos e pagou 2,754%, muito acima da taxa de 1,694% que pagou em abril, aquando do lançamento numa operação a vencer em julho de 2032.

Tomando como referência o mercado secundário da dívida, os juros (yields) da dívida pública dos países da Zona Euro a 10 anos subiram 40 pontos-base nos últimos quatro meses. Desde 8 de junho, na véspera da reunião que decidiu descontinuar o antigo programa de compra de ativos (de Mario Draghi em 2015), após as duas decisões, em julho e setembro, de aumento da taxa diretora de zero para 1,25%, as yields médias da dívida a 10 anos subiram de 2,1% para 2,5%. Contudo, o efeito altista nos juros das obrigações não foi idêntico em todas as dívidas dos 19 membros do euro. A “fragmentação” é evidente sobretudo nas economias periféricas.

Apesar de o BCE ter anunciado a flexibilização da gestão dos reinvestimentos das amortizações da sua carteira obrigacionista, favorecendo a estabilização da dívida dos mais frágeis, as projeções das yields são de continuação da subida, pelo menos, até março de 2023, quando o conselho dos banqueiros centrais avaliar os aumentos das taxas diretoras. Portugal poderá ter uma taxa de 4,3%, sendo o periférico com o custo de financiamento mais baixo. Um fator que poderá agravar esta subida será a descontinuação mais cedo do que o previsto do programa de reinvestimento das amortizações na carteira do BCE e da flexibilização na sua gestão. O objetivo é a redução do peso da carteira de títulos nos ativos do banco central, o que se designa por aperto quantitativo (QT, no acrónimo em inglês), por oposição ao alívio quantitativo (QE), que permitiu, através dos programas de compras e dos reinvestimentos manter uma carteira de títulos num valor recorde. Entretanto, os reinvestimentos no programa PEPP (pandemic emergency purchase programme) continuarão, pelo menos, até final de 2024 e os do programa mais antigo continuam sem data limite. Uma parte dos bancos centrais do euro pressiona para a revisão desta estratégia e para o emagrecimento da carteira de títulos do BCE, que soma mais de 4,9 biliões de euros desde maio e que atingiu, em junho, o pico de 4963 mil milhões, tendo descido para 4956 mil milhões a 2 de setembro (emagrecimento de sete mil milhões).

O BCE deverá iniciar a discussão do tema na reunião de 5 de outubro, em Chipre, que não visa a tomada de decisões de política monetária. Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, foi um dos que se levantaram contra esta pressão, tendo declarado à Bloomberg que é prematuro discutir o QT. O BCE detém mais de 91 mil milhões de dívida obrigacionista portuguesa, sendo o nosso principal credor, com mais de 30% do stock da dívida pública, incluindo outros instrumentos de dívida não transacionável ou em divisas estrangeiras e os empréstimos da troika e mais recentes da União Europeia (UE) – do SURE (instrumento de apoio temporário para mitigar os riscos de desemprego em emergência) e do PRR (plano de recuperação e resiliência).

***

As medidas de apoio às famílias anunciadas pelo Governo português são insuficientes, as de apoio às empresas são incipientes e tímidas e as atinentes à poupança de energia, água e gás ficam-se pelas recomendações. Os recursos alternativos de independência na produção e distribuição mal saíram do papel. E a UE, que ditou, na crise de 2008, uma estratégia e a sua contrária, desta vez, terá postura audaz, consensual e eficaz, como a Comissão deixou antever? São precisas as contas certas para travar o défice e a dívida, mas os cidadãos não podem definhar e morrer por falta de apoio. Não basta que não nos tratem mal como na troika, mas urge que nos tratem condignamente.

2022.09.14 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário