quinta-feira, 30 de abril de 2020

É de aliar combate à pandemia e minimização da crise económica


Não se pode morrer da doença por efeito do contágio e suas consequências, mas também não se pode morrer da cura, seja pelo excesso de confinamento pelo cansaço e doenças físicas e mentais que gere, seja pela míngua de recursos por falta de emprego e por falta de produção.
A pandemia parece estar para durar e alguns vaticinam uma ou mais tranches eventualmente mais gravosas que a atual, enquanto alguns advertem que em Portugal ainda estamos no princípio do que por aí virá. Por outro lado, alguns governantes, que temem pela recessão que pode estar a avizinhar-se, entendem que a Europa ainda não tem uma resposta conjunta e eficaz para obviar à Covid-19 nem para obviar à crise socioeconómica e que o nosso SNS só por si não tem capacidade para responder a um novo surto mais gravoso.
Também é certo que muitas doenças e cuidados (nomeadamente a vacinação) têm ficado para trás mercê da priorização do combate ao novo coronavírus, sendo que o número de óbitos por outras causas terá aumentado nestes meses. E, embora o número de infetados e falecidos em Portugal seja baixo em termos absolutos, estamos longe de cantar loas ao milagres português se nos compararmos com países com número de habitantes similar do nosso.
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Neste quadro, é oportuna a advertência do BCE (Banco Central Europeu), que, tendo mantido as taxas de juro principais inalteradas, mas feito pequenas alterações nas operações de refinanciamento à banca, pede aos países europeus mais medidas “conjuntas” e alerta para a queda do PIB entre 5% e 12%, este ano.
A este respeito, Christine Lagarde, que sucedeu a Mario Draghi como presidente desta autoridade financeira europeia, pediu hoje, dia 30 de abril, que os países europeus avancem com medidas “ambiciosas” para combater uma crise cuja “magnitude não tem precedentes em tempos de paz” – medidas que devem ser “conjuntas e coordenadas para proteger a economia dos riscos negativos e para impulsionar a recuperação”. E, apesar de ter dado as boas-vindas às medidas aprovadas pelo Eurogrupo e Conselho Europeu, pediu mais.
Na usual conferência de imprensa após a reunião de política monetária, Lagarde adiantou também que o PIB (Produto Interno Bruto) da zona euro poderá cair entre 5% e 12% este ano, dependendo da duração das medidas de confinamento e do sucesso da recuperação que vier nos próximos meses. E apontou a “grande incerteza” em relação àquele que será o impacto desta crise – e em relação à “rapidez e a escala” da retoma.
A presidente do BCE diz que, tendo esta crise económica começado por ser restrita a certos setores, como o turismo, os transportes e o entretenimento, se generalizou com as medidas de contenção. Assim, o cenário mais negativo para o 2.º trimestre aponta para quebra de 15%, em base trimestral. Porém, é difícil a qualquer pessoa ou entidade fazer, neste momento, previsões macroeconómicas.
Após a leitura do comunicado, Christine Lagarde referiu-se de forma emotiva às mortes por Covid-19 – “cada morte é uma tragédia”, disse – e agradeceu aos profissionais de saúde que estão a trabalhar para conter a pandemia.
Também o BCE manteve as taxas de juro principais inalteradas, mas fez pequenas alterações nas operações de refinanciamento à banca em curso, empréstimos criados com o objetivo de conter os impactos da crise. Optou, assim, por não dar passos significativos depois do programa de compra de dívida anunciado há poucas semanas, mas deixou clara a disposição que há de reforçar as principais medidas de combate à crise, garantindo que fará “tudo o que for necessário, dentro do mandato” para apoiar os cidadãos, as empresas e os países da zona euro. Foram reduzidos os custos associados às operações de financiamento específicas que são conhecidas por TLTRO II, injeções de liquidez na banca com prazos longos e juros fixos. Os juros passam, até junho de 2021, a ser 50 pontos-base abaixo das taxas de juro médias no eurossistema a cada momento, ou seja, potencialmente até -1%. Por outro lado, o BCE decidiu lançar mais um conjunto de operações de refinanciamento de emergência (menos localizadas do que as TLTRO) – batizadas de PELTROs – que serão 7 operações a um preço fixo de 25 pontos-base abaixo da taxa de juro do BCE. Duas decisões relevantes, mas a autoridade monetária “manteve as munições no bolso enquanto analisa o impacto das medidas já lançadas”, dizem os economistas do ING Group. O BCE não mexeu no ritmo mensal de compras de dívida ao abrigo do programa normal de quantitative easing e do programa de emergência de compras pandémicas (o programa PEPP), de 750 mil milhões de euros.
É de recordar que, a 18 de março, sem esperar pela sua habitual reunião de política monetária, o BCE anunciou um “programa de compra de ativos de emergência devido à pandemia” (PEPP), prevendo a compra de 750 mil milhões de euros de dívida pública e privada, valor que os analistas pensam que aumentará, mas que o BCE decidiu não fazer para já. E Lagarde admitiu, neste dia 30, que esse programa poderá ser prolongado para além de 2020.
A decisão de manter os principais instrumentos inalterados mostra que o BCE quer primeiro avaliar o impacto das medidas recentes. Além disso, como refere o ING Group, quererá manter algumas munições no bolso, até porque essas serão necessárias, com os números do PIB que saíram hoje a dar-nos uma primeira ideia de quão grave a crise na zona euro é.
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Para não agravar os termos da crise económica que já se iniciou e de que se avizinha um recrudescimento, alguns países estão prestes a iniciar o desconfinamento e a proceder à retoma da atividade económica.
Portugal alivia medidas em três momentos diferentes: 4 de maio, 18 de maio e 1 de junho.
O Estado de Emergência III, em vigor até 2 de maio, será, ao que tudo indica, o último declarado pelo Presidente da República na sequência da pandemia. Significa isto que o país se prepara agora para uma reabertura faseada da economia, que terá três fases (4 de maio, 18 de maio e 1 de junho), como se espera que o Primeiro-Ministro venha a anunciar, neste dia 30 de abril,  após a reunião do Conselho de Ministros – à semelhança de outros países para o pós-Covid-19.
Segundo a SIC, António Costa, após reunião com os especialistas a 28 de abril, reuniu a 29 com os partidos para discutir a reabertura da economia, estando em cima da mesa três fases – 4 de maio, 18 de maio e 1 de junho –, sendo que será cada fase precedida de reunião com partidos e parceiros para avaliar as medidas em curso e outras a implementar, tudo dependendo da evolução dos acontecimentos e da robustez do SNS. Assim, em cada fase será preciso decidir se as medidas implementadas continuam, se devem ser adaptadas ou se é preciso voltar atrás.
O Governo, para o anúncio de hoje, ouviu especialistas, partidos e parceiros sociais para decidir de que forma se fará o regresso faseado das atividades económicas.
Assim, nesta 1.ª fase, de 4 de maio, abrirão os espaços com dimensão até 200 m2: pequeno comércio (preferencialmente com porta virada para a rua); cabeleireiros, barbeiros, stands de automóveis, conservatórias, serviços de atendimento ao público não concentrados; livrarias, bibliotecas e arquivos; autocarros com cabine no motorista de forma a isolá-los; reforço de autocarros na linha de Sintra; e atividades desportivas individuais, como, por exemplo, o ténis e o golfe.
Na 2.ª fase, de 18 de maio, abrirão os espaços com dimensão até 400 m2: restaurantes, museus, cafés, esplanadas e similares; palácios; creches (numa 1.ª fase, os pais podem optar por continuar de apoio à família); e escolas (aulas presenciais para 11.º e 12.º anos).
As autarquias podem decidir pontualmente pela abertura de outros estabelecimentos, por exemplo, se um espaço tiver mais de 400 m2, mas não concentrar muita gente.
E, na 3.ª fase, 1 de junho, abrirão os espaços com dimensão superior a 400 m2: creches, educação pré-escolar e ATL; lojas; lojas do Cidadão; centros comerciais; cinemas e teatros com lotação restringida; reinício das provas desportivas em recinto aberto, mas sem público; e desportos coletivos.
Quanto a outros países, mesmo os mais afetados pela pandemia, como Espanha, Itália e França, definiram planos para reabrir faseadamente “as portas”.
Assim, a Espanha fará a reabertura a 2 de maio. O país desenvolveu um plano para a transição para a nova normalidade, que arranca a 2 de maio, que se desenrola em várias fases, de entre 6 a 8 semanas e que se prolongará até junho. Uma pessoa poderá sair à rua para fazer desporto, sozinha ou com as pessoas com quem vive, o que até agora não era possível devido às apertadas medidas de restrição, mas continuam interditas as deslocações entre províncias ou ilhas.
A França fará a reabertura a 11 de maio. Poderão abrir o comércio, bibliotecas e pequenos museus, mas não bares ou restaurantes, nem cinemas, teatros e salas de concertos. Os transportes públicos regressarão gradualmente ao normal funcionamento, sendo obrigatório usar máscara. As crianças da educação pré-escolar e do ensino básico podem regressar à escola, voluntariamente, sendo que as aulas são restringidas a 15 alunos. Estão proibidos todos os eventos culturais e desportivos que juntem mais de 5.000 pessoas até setembro e não haverá cerimónias religiosas antes de 2 de junho. Os convívios estão restringidos a dez pessoas e as praias e alguns parques vão continuar fechados pelo menos até 1 de junho.
A Itália mantém restrições à circulação até setembro. O Governo delineou um plano de 4 etapas para aliviar as medidas de restrição, mas os movimentos das pessoas continuam a ter restrições e as escolas manter-se-ão fechadas até setembro. As fábricas voltadas para exportações e projetos de construção pública podem retomar as atividades a partir da próxima semana enquanto a maioria da indústria italiana será reiniciada a partir de 4 de maio – um dia após o fim do bloqueio. A 11 de maio, poderão abrir alguns estabelecimentos comerciais, como lojas de roupa e sapatos, e, na semana seguinte, restaurantes, bares e cabeleireiros.
Na Alemanha, as escolas reabrem a 4 de maio. O país começou a reduzir as medidas na semana passada, sendo que as lojas mais pequenas reabriram, mas um aumento da atividade social preocupou as autoridades de saúde do país. As máscaras serão obrigatórias nas lojas e nos transportes públicos. Os restaurantes continuarão fechados, podendo fazer take-away e entregas. Bares, discotecas, teatros e salas de concertos ainda não poderão abrir portas. 
Na Bélgica, os restaurantes reabrem a 8 de junho. O alívio das medidas arranca a 4 de maio, quando empresas com operações ‘business-to-business’ e atividades industriais reabrem. Uma semana depois, reabrem as retalhistas, exceto as que não podem evitar o contacto físico, como cabeleireiros. As escolas abrirão progressivamente para estudantes de 6 a 18 anos a partir de 18 de maio, divididas por faixas etárias. As máscaras serão obrigatórias a partir dos 12 anos e nos transportes públicos; os bares e restaurantes permanecerão fechados até pelo menos 8 de junho.
Na Grécia, o confinamento começa a “aliviar” a partir de 4 de maio, num plano que se estende até meados de junho. Serão levantadas as restrições às deslocações dos cidadãos dentro do concelho de residência e reabertas algumas lojas, nomeadamente livrarias, cabeleireiros, lojas de eletrónica. As restantes lojas podem abrir portas a 11 de maio e os centros comerciais, restaurantes e hotéis devem retomar a 1 de junho. O uso de máscaras será obrigatório nos transportes públicos, hospitais e cabeleireiros.
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Se os cuidados são similares em todos os países mencionados, o levantamento das medidas, embora faseado, não é igual. Espera-se o regresso às atividades, pela vertente da saúde mental, pela volta à produtividade e pela sobrevivência das empresas e os postos de trabalho, mas temos de esconjurar a continuação da crise pandémica e sobretudo o seu recrudescimento.
2020.04.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de abril de 2020

É oportuno agora falar em reforço da educação e formação de adultos


A pandemia que assola o país e quase todo o mundo traz consequências para a economia, a vivência em sociedade e o mundo do trabalho. Há serviços e negócios que deixarão de existir, pelo menos com a relevância que lhes tem sido dada, e serviços e negócios novos que postulam uma nova literacia com reforço no uso diversificado e intenso das novas tecnologias.   
É certo que Portugal realizou, nas últimas décadas, grande esforço de qualificação dos jovens e dos adultos para recuperar do atraso que a História testemunha neste âmbito. Não obstante, a realidade nacional e o ritmo de evolução em matéria de qualificações continuam muito aquém dos ritmos dos países mais desenvolvidos, não assegurando as condições de desenvolvimento do país no contexto duma economia global cada vez mais baseada no conhecimento. Tal situação obrigou a encontrar soluções inovadoras em objetivos, modos de organização e meios utilizados, com vista à superação das dificuldades e ao aumento rápido e sustentável das competências e níveis de qualificação dos portugueses. Assim, o SNQ (Sistema Nacional de Qualificações) assumiu o ónus da generalização do nível secundário como qualificação mínima e dos instrumentos adequados à sua efetiva execução, em articulação com os instrumentos financeiros propiciados, sobretudo pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional 2014-2020. Nestes termos, a elevação da formação de base da população ativa gerará as competências necessárias ao desenvolvimento pessoal e à modernização das empresas e da economia e possibilitará a progressão escolar e profissional das pessoas.
Trata-se de objetivos aplicáveis a jovens e a adultos com vista a promover, por razões de justiça social e imperativo de desenvolvimento, novas oportunidades de qualificação das pessoas inseridas no mercado de trabalho que sofreram os efeitos do abandono e a saída escolar precoce.
Por isso, o SNQ adota os princípios consagrados no acordo com os parceiros e reestrutura a formação profissional inserida no sistema educativo e a inserida no mercado de trabalho, com objetivos e instrumentos comuns sob um enquadramento institucional renovado.
Já a Iniciativa Novas Oportunidades, apresentada no final de 2005, estabelecera como objetivo a superação do défice estrutural de qualificações através da escolarização geral da população. Para tanto, havia que “estabelecer o nível do ensino secundário como o patamar mínimo para a participação na economia do conhecimento e na sociedade da informação e como condição determinante para o crescimento e a competitividade da economia, para a melhoria e o crescimento do emprego, para a cidadania e a coesão social, com implicações em todos os domínios do desenvolvimento das pessoas e da sociedade”, como refere um documento da rede Eurídice de 16 de janeiro de 2019.
Tal estratégia assentava em 4 domínios: 1) aumento das vagas em cursos de dupla certificação cada vez mais diversificados, o reforço da legibilidade da oferta de qualificação, o alargamento da rede e perfil dos promotores, a afinação dos procedimentos de certificação, incluindo os resultantes da validação e certificação de competências, a revisão dos critérios de financiamento e a articulação dos sistemas de educação e formação; 2) estímulo à procura e mobilização dos portugueses, motivando-os para a qualificação, desenhando sistemas de incentivos adequados, facilitando a participação em ofertas de educação-formação diversificadas, mobilizando os agentes públicos e privados relevantes e melhorando a articulação entre a oferta e a procura de qualificações; 3) aceleração do ritmo de progressão dos níveis de escolarização para encurtar a distância em relação aos padrões da Europa; 4) atuação num eixo dirigido a jovens e num eixo dirigido a adultos, pois as exigências da competitividade e participação numa economia e numa sociedade globalizadas implicam a recuperação do atraso dos adultos ativos, promovendo o “regresso dos adultos à qualificação de base” para criar os fundamentos do seu envolvimento nas atividades de aprendizagem ao longo da vida exigidas pela economia duma sociedade em acelerada e constante mutação.
Assim, no eixo Adultos valorizou-se o RVCC (reconhecimento, validação e certificação de competências) a partir das aprendizagens feitas em vários contextos (formais, não formais e informais) e a oferta de formação profissionalizante, criando-se condições de acesso e frequência. Procurou-se, diversificar e expandir as ofertas para abranger a população com habilitação inferior ao ensino secundário, visando “desenvolver a capacidade de construir trajetórias de aprendizagem individuais, que valorizem as aquisições de cada pessoa, de promover modelos flexíveis de organização da formação e de dar maior expressão à formação em contexto de trabalho…”.
Este desenvolvimento envolveu o incremento de CEFA (Cursos de Educação e Formação de Adultos), o alargamento da rede de Centros de RVCC, mais tarde designados por CNO (Centros de Novas Oportunidades), a conceção dum referencial de competências-chave para o nível secundário e a promoção da gestão integrada das ofertas e da rede de promotores.
Com a publicação da Portaria n.º 135-A/2013, de 28 de março, que criou os CQEP (Centros para a Qualificação e o Ensino Profissional) e extinguiu os CNO, iniciou-se o procedimento para a criação das estruturas responsáveis pelo sistema de RVCC. Foram assim criados 242 CQEP distribuídos pelo território nacional, mantendo-se a diversidade das entidades promotoras já existente nos CNO. Estes Centros reforçaram a componente de orientação ao longo da vida e integraram a orientação para jovens para além das intervenções junto dos adultos.
O programa Qualifica, apresentado em 2016, é vocacionado para melhorar os níveis de qualificação dos adultos, visando contribuir de forma significativa para a melhoria dos níveis de qualificação da população e para a melhoria da empregabilidade dos indivíduos. Assenta numa estratégia de qualificação que integra respostas educativas e formativas e instrumentos diversos que promovem a qualificação de adultos e que envolve alargada rede de operadores. Pretende responder à necessidade de qualificação da população portuguesa que continua a apresentar um expressivo défice de qualificação que condiciona o desenvolvimento do país (segundo os dados do Eurostat, 2017, tem um nível de qualificação inferior ao ensino secundário 52% da população entre os 25 e os 64 anos). E visa reaproximar Portugal das metas de convergência em matéria de aprendizagem ao longo da vida com a média dos países da UE, dando novo impulso à mobilização da população adulta na procura de qualificações.
Neste quadro, o Governo priorizou politicamente, a nível nacional, a revitalização da educação e formação de adultos como pilar central do sistema de qualificações, assegurando a continuidade das políticas de aprendizagem ao longo da vida e a melhoria da qualidade dos processos e resultados de aprendizagem. E, com o escopo de relançar esta prioridade, o programa Qualifica constitui-se como estratégia integrada de formação e qualificação de adultos.
Este programa procura concretizar os seguintes objetivos: 1) aumentar os níveis de qualificação e melhorar a empregabilidade dos ativos, dotando-os de competências ajustadas às necessidades do mercado de trabalho; 2) reduzir significativamente as taxas de analfabetismo, literal e funcional, combatendo igualmente o semianalfabetismo e iletrismo; 3) valorizar o sistema, promovendo um maior investimento dos jovens e adultos em percursos de educação e formação; 4) corrigir o atraso estrutural do país em matéria de escolarização para uma maior convergência com a realidade europeia; 5) adequar a oferta e a rede formativa às necessidades do mercado de trabalho e aos modelos de desenvolvimento nacionais e regionais.
E, até 2020, pretendia o cumprimento das seguintes metas: 1) garantir que 50% da população ativa conclui o ensino secundário; 2) alcançar uma taxa de participação de adultos em atividades de aprendizagem ao longo da vida de 15%, alargada para 25% em 2025; 3) contribuir para que tenhamos 40% de diplomados do ensino superior, na faixa etária dos 30- 34 anos; e 4) alargar a rede de centros Qualifica (300 centros Qualifica em 2017).
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Como escreveu Andreia Lobo hoje, dia 29 de abril, para o “educare.pt”, a educação e formação de adultos é fundamental para o sucesso económico. E, depois da pandemia, assumirá um papel ainda mais preponderante. Assim, quem se estiver a lamentar de não ter mais formação pode começar por consultar o portal Qualifica, onde disporá de toda a informação governamental sobre as diversas modalidades de ensino para jovens e adultos. E talvez se justifique uma visita presencial, quando a COVID-19 permitir. O portal ajuda a localizar os centros Qualifica mais próximos. Porém, o mais difícil não será procurar e obter informação, mas conciliar formação, família e emprego, como testemunham os adultos em frequentes artigos que os questionam sobre a experiência de voltar “à escola”.
Em 2019, um dos mais importantes relatórios sobre os sistemas educativos da Europa, o Monitor da Educação e da Formação 2019, exortava Portugal a aumentar as competências digitais da população adulta, pois, “não obstante os esforços ao abrigo do programa INCoDE 2030, o défice das competências TIC continua a crescer significativamente”. Por isso, o país era aconselhado a “melhorar o nível de competências da população”, em especial, a literacia digital, para tornar mais adequada às necessidades do mercado de trabalho a educação dos adultos. Merecia elogios da UE o reforço da educação de adultos com implementação do programa Qualifica em 2017 e a contratação e formação de pessoal para os 294 centros. No entanto, os analistas faziam depender a eficácia destas medidas duma outra: “fazer da carreira de educador de adultos uma opção reconhecida, atrativa e duradoura, apoiada por cursos especializados e graus académicos na vertente da educação e formação de educadores de adultos”.
No pós-pandemia, fará ainda mais sentido o foco na educação e formação de adultos como instrumento de requalificação e reconversão profissional em resposta às mudanças económicas, pois, como terminam antigos negócios e surgem novos, serão necessárias novas competências.
Na análise do Monitor da Educação e da Formação 2019 há boas e más notícias para Portugal. A participação dos adultos na aprendizagem ao longo da vida, embora tenha crescido, continua baixa. Em 2018, apenas 10,3% da população entre os 25 e os 64 anos participava em educação e formação (valores próximos da média de 11,1% da UE, mas inferior à meta de 15% para 2020).  
Nos sumários executivos de cada sistema educativo europeu, a Comissão Europeia fez o ponto de situação. Na Áustria, a prioridade é aumentar as competências digitais da população; na Bulgária, a grande necessidade de atualizar e requalificar competências dos adultos coexiste com a baixa participação; o Chipre debate-se com uma pouco atrativa aprendizagem ao longo da vida; a Irlanda planeia requalificar e aumentar a participação na aprendizagem ao longo da vida, mas é elevada a percentagem de adultos com poucas qualificações; na Lituânia faltam medidas a obviar à baixa participação de adultos na aprendizagem ao longo da vida; na Polónia, continua baixo o envolvimento dos adultos; na Roménia, os adultos fazem pouca formação e precisam de atualizar competências; e, em Portugal, coexiste com a baixa participação em educação e formação a percentagem significativa de adultos pouco qualificados.   
Em 2016, ano da criação dos centros Qualifica, havia 261 Centros passando para 303 em 2017. Quanto ao número de inscrições em Centros, em 2017, havia cerca de 126 mil inscritos, num esforço de mobilização de adultos para a rede, esforço que veio a corresponder ao aumento, nos últimos anos, do número de certificações (parciais ou totais) efetuadas pelos Centros.
Entretanto, há progressos nalguns países: na Dinamarca, ressaltam os esforços para promover a educação de adultos em cursos universitários flexíveis e amigos do mercado de trabalho; a Estónia atinge elevado recorde de participação dos adultos na aprendizagem, mas persiste a necessidade de aumentar competências e requalificar a população; a Finlândia tem em curso reformas nesta área; a Hungria moderniza a educação de adultos; a Alemanha anuncia investimento significativo no desenvolvimento de competências digitais e reforço do sistema de educação e formação de adultos; a Letónia ultrapassa as metas europeias para 2020; a Eslováquia define a abordagem estratégica para a aprendizagem ao longo da vida, atualizando competências e requalificando; em Espanha, a participação em ações de educação e formação aumenta pouco; e, na Suécia, as competências digitais da população são das melhores da UE.
Cláudia Sarrico, analista de políticas educativas da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), analisando dados do Skills Strategy Implementation Guidance for Portugal, de 2018, em conferência pública organizada pela Fundação Belmiro de Azevedo, a 30 de janeiro de 2019, concluía que “a procura de formação por parte dos adultos, sobretudo entre os menos qualificados, é muito baixa”. E defendia a necessidade dum esforço para levar as pessoas a compreender os benefícios da educação, motivando-as a prosseguir a oferta educativa dirigida a adultos disponível. Porém, as salas de aula das nossas escolas ainda não refletem tal esforço, pois, em média, os alunos portugueses do ensino secundário e do superior são mais jovens que no resto da OCDE, por contraste com a Dinamarca, “onde pessoas mais velhas voltam à escola para frequentarem cursos de ensino secundário ou pós-secundário, muitos deles com uma grande componente de aprendizagem em contexto de trabalho”. Por cá, o sistema educativo tem outros públicos em mente: estamos sempre a pensar no aluno jovem do ensino regular, quando a escola e a educação podem ser mais do que isso. Mais de metade dos nossos adultos, com idades entre os 25 e os 64, não concluíram o ensino secundário (taxa superior à dos outros países da OCDE, com exceção da Turquia e do México), motivo por que o país é avisado para reforçar mais o sistema de educação de adultos, tendo Andreas Schleicher, diretor de educação e competências da OCDE afirmado que “o aumento das competências é fundamental para o sucesso económico e o bem-estar social de Portugal no longo prazo”. Os analistas da OCDE veem “uma grande promessa” nas nossas políticas de educação de adultos, mas aduzem a necessidade duma série de ações coordenadas para melhorar a acessibilidade a flexibilidade, a qualidade e sustentabilidade do sistema, bem como a necessidade de medidas para “encorajar a participação de mais pessoas, em especial das que dispõem de baixas competências e que apresentam, atualmente, uma menor probabilidade de participar na educação de adultos”.
E, em 2019, estávamos longe do contexto que a pandemia e a pós-pandemia nos oferecem!...
2020.04.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de abril de 2020

Não são os lauréis académicos credencial do decisor político


Em tempos e reiteradas vezes, manifestei a minha discordância do facto de o Presidente da República se escorar no estatuto académico de professor de direito público para opinar a tempo e a destempo sobre qualquer diploma legal ainda na forja ou depois, podendo a priori condicionar, ou a posteriori julgar, a atividade do Parlamento e do Governo, ou até substituir-se ao veredicto do Tribunal Constitucional sobre o juízo da constitucionalidade ou não dos decretos do Parlamento e/ou do Governo que lhe são remetidos para promulgação. Agora, cabe-me criticar o Primeiro-Ministro por ter feito reparo público aos constitucionalistas que veem inconstitucionalidades na futura decisão do Governo de manter, por força da declaração de calamidade, as restrições vigentes durante o estado de emergência após o termo deste, prometendo a supressão gradual dessas medidas restritivas e avisando de que se voltará atrás se as condições da pandemia o justificarem – avaliação a fazer de 15 em 15 dias.
Diz Costa que também é jurista e sabe que os juristas são hábeis em ver problemas em tudo, mas que a vida não é assim e as medidas restritivas têm de ser aplicadas sempre que for preciso.
Sem contestar as suas razões, devo dizer que o decisor político, para decidir com segurança e utilidade pública – ou seja, ao serviço o bem comum –, deve ouvir com atenção, sem se fiar na sua capacidade académica pessoal e profissional, todos os especialistas (também os juristas) que possam contribuir para que a decisão a tomar seja o mais justa e adequada possível.
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Raquel Brízida Castro, questionando a utilidade do estado de emergência se o Governo pudesse fazer o mesmo ao abrigo da LBPC (Lei de Bases da Proteção Civil), entende que o Governo, por não pode exemplo, limitar a liberdade de circulação nos termos do estado de exceção e, fazendo-o, estaríamos face a verdadeira fraude à Constituição. Também diz que o estado de calamidade é o grau mais elevado decretado ao abrigo da lei da LBPC (mas ainda em plena normalidade constitucional), aplicando-se a determinado evento, com circunscrição geográfica e temporal muito limitada, como uma catástrofe natural ou um incêndio, que tenha tido determinados efeitos, como elevados prejuízos naturais e vítimas. Mas não faz sentido neste contexto de pandemia, a não ser que sejam vários os estados de calamidade declarados.
Tendo em conta que o estado de calamidade permite limites à circulação, mas a lógica da sua aplicação é a delimitação geográfica, não lhe parece que o Governo possa, ao abrigo desta lei, limitar o número de pessoas presentes num restaurante, cinema ou espaço público. E, para haver uma cerca sanitária, por exemplo, tem de haver uma grave ameaça à saúde pública, mas até o  próprio conceito de cerca sanitária é incerto porque não existe uma lei de Saúde Pública.
Só esquece que está em vigor a Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, que “institui um sistema de vigilância em saúde pública, que identifica situações de risco, recolhe, atualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças transmissíveis e outros riscos em saúde pública, bem como prepara planos de contingência face a situações de emergência ou tão graves como de calamidade pública”. O que acontece é que houve uma proposta de lei do Governo entrada no Parlamento cujo processo legislativo não foi concluído na XIII legislatura, pelo que caducou.
No caso das praias, como ressalva, a aplicação de restrições dependerá de vários fatores, como o “tipo de restrições, a localização, se é uma zona de maior ameaça, ou se há mais ou menos infetados”. Depois, há linhas vermelhas que não cruzáveis. Assim, como opina, “em estado de calamidade o Governo não pode impedir o funcionamento de lojas ou de restaurantes, nem fechar aeroportos, nem fazer controlo de fronteiras; e a circulação entre concelhos também só pode ser impedida se for decretada uma cerca sanitária em determinado concelho”. Por outro lado, segundo a constitucionalista, não pode ocorrer rastreamento de cidadãos, internamento compulsivo de suspeitos e acesso a metadados em normalidade nem em estado de exceção.
Jorge Miranda, referindo que, nos termos da LBPC, a situação de calamidade prevê a tomada de algumas medidas por parte do Governo, a nível local, regional ou nacional, frisa que, ao invés do estado de emergência, que permite a suspensão excecional e temporária de alguns direitos e garantias essenciais, “não prevê qualquer corte de liberdades”. Depois, considerando que é de prever que a situação sanitária continue e se se entender que já não se justifica adotar determinadas medidas rigorosas de delimitação das liberdades (de locomoção, abertura de unidades comerciais, teatros, universidades, etc.), estaremos em calamidade, não em emergência. A explicar que emergência e calamidade “são duas realidades diferentes”, adverte que “o estado de emergência é uma figura jurídica e a calamidade uma situação de facto”, ou seja, o “estado de calamidade é uma situação menos grave do que o estado de emergência”. E acrescenta:
A situação de calamidade pode justificar determinadas medidas de resposta por parte do Governo em relação a certas situações, e que podem até passar por limitações à circulação de pessoas, mas não ao ponto de haver limitação das liberdades como acontece com o estado de emergência”.
Paulo Otero observa que a situação de calamidade não fora pensada para o tipo de problemas que o surto de coronavírus levanta, mas para situações como tremores de terra, incêndios e epidemia localizada; e não para “difusão ampla geral e generalizada, com riscos especiais para determinadas faixas etárias ou sociais”. Esclarecendo que “os poderes de intervenção são muito mais reduzidos, sobretudo na área dos direitos fundamentais, especificamente no confinamento de pessoas”, antevê que o isolamento profilático de idosos, contra a sua vontade, passe a ser um problema. Com efeito, há possibilidade de limitar a circulação e a permanência de pessoas, mas num espaço diferente, que tem a ver com a circulação numa área geográfica, não se tratando de “coarctar, restringir, limitar ou impor a solução do confinamento nas suas casas”. E adianta:
A declaração de calamidade pode recomendar que as pessoas permaneçam em casa, mas não tem força suficiente para impor. E, por isso mesmo, em caso de desobediência, ninguém pode ser sancionado por isso. Ninguém pode ser sancionado por não seguir uma recomendação, mas uma pessoa pode ser sancionada por violar uma proibição.”.
E, ressalvando que no âmbito da LBPC estão previstos crimes de desobediência, mas não a “possibilidade de impor a obediência ao confinamento”, especifica:
Os limites à circulação, nos moldes em que aconteceu nos incêndios de 2017, são possíveis: não se pode circular na estrada x ou na y; ou não se pode entrar na povoação y. (…) Também podem ser aplicadas cercas de segurança e não se poder entrar numa praia ou num município. Agora tenho algumas dúvidas sobre se as cercas de segurança se podem aplicar a todo o território ou ao nível das fronteiras, por exemplo. Até admito a hipótese de uma cerca de segurança sanitária, no limite, em todo o território nacional, mas a circulação de pessoas entre fronteiras não pode ser impedida.”.
No atinente às praias, pergunta se se pode proibir a entrada nalgumas ou limitar o número de pessoas ou guardar as distâncias e diz que “uma coisa é interditar ou condicionar o acesso, circulação ou permanência de pessoas num cenário circunscrito (…), outra é fazer o mesmo num cenário de ampla difusão generalizada de uma situação de contágio”.
Vital Moreira julga inegável que “as pessoas mais velhas são muito mais vulneráveis à pandemia”, pelo que devem tomar muitos cuidados extra para não serem infetadas, mas que “isso não exige medidas extremas de isolamento social”. Logo, não vê motivo para os idosos não ativos não se poderem deslocar ao café do bairro ou à farmácia, observadas as regras de proteção estabelecidas, nem para os idosos ativos não se deslocarem, observados os mesmos cuidados, ao seu local de trabalho, como não faz sentido “que uns e outros não possam ir ao parque mais próximo em exercício físico”. Depois, sentencia que “não se podem condenar os idosos a ‘morrerem da cura’ por prolongado definhamento em casa, tanto mais que a pandemia não tem data de extinção. Para dizer tudo isto, ancora-se no “princípio essencial do Estado de direito constitucional” da “proibição de excessos restritivos dos direitos pessoais, indo além do necessário”, “mesmo em casos de restrição de direitos em situações de emergência”. E infere:
A liberdade de movimento, ou seja, de não estar confinado a um lugar, mesmo em casa, constitui um direito essencial numa sociedade livre. Havendo que defender o direito à saúde, próprio e alheio, justifica-se a restrição da liberdade de circulação, mas não o seu aniquilamento, que a Constituição, aliás, proíbe.”.
Por isso, alvitra, “nada pode justificar a condenação dos idosos a uma espécie de ‘prisão domiciliária’ por via legislativa ou administrativa, pois “ainda não e proibido ser velho”. 
Para o estado de calamidade, cuja decisão cabe ao Governo, apresenta as seguintes coordenadas jurídicas: “só pode ser instituído em situações suscetíveis de mobilizar a proteção civil” (restando saber se a pandemia é dessas situações); “não pode permitir fazer aquilo que só o estado de emergência consente” (caso da proibição de internamento compulsivo, salvo por anomalia psíquica, da inviolabilidade da habitação, da liberdade de culto ou do direito à greve).
Refere que, mesmo no tocante a direitos fundamentais restringíveis em situação de normalidade constitucional, como a liberdade de circulação, o estado de calamidade não pode restringi-los senão nos termos do art.º 18.º da CRP, designadamente com estrito respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade e da “intocabilidade do ‘núcleo essencial’ de cada direito, o que não sucede com a medida de confinamento doméstico obrigatório”.
Distinguindo entre restrição do exercício e suspensão do exercício, adverte que “o estado de calamidade administrativo não pode fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial, pode fazer, ou seja, suspender direitos”.
Sobre a declaração de Costa de que tem de ser assegurado o “afastamento entre as pessoas por causa da pandemia, diga o disser a Constituição”, o constitucionalista diz não conhecer “nenhuma opinião fundamentada segundo a qual a norma de distanciamento social poderia ser contrária à Constituição”, mas avisa que, “num Estado de direito constitucional, o que a Constituição diz importa – e muito”. Ora, havendo quem sustente que “o internamento compulsivo de infetados, mesmo fora do estado de emergência, tem cobertura constitucional no direito à proteção da saúde garantido no art.º 64.º da Constituição”, Vital Moreira, aduz que, visto que a referida norma não faz qualquer referência a medidas de tal gravidade, o art.º 27.º, sobre o direito à liberdade, “enuncia expressamente os casos em que é permitida a privação da liberdade pessoal, incluindo o internamento por causa de anomalia psíquica” (apesar de deste também se poder ‘deduzir’ do direito à segurança). Se fomos a entender o art.º 64.º até ao limite, poder-se-iam justificar todas as restrições sem necessidade de nenhum estado de emergência.
Entretanto, alguns constitucionalistas, como Reis Novais, afiançam não haver qualquer inconstitucionalidade no que o Governo diz vir a estabelecer ou que se mantêm as mesmas dúvidas de constitucionalidade inerentes às medidas decretadas no estado de emergência.
***
A LBPC prevê que a situação de calamidade seja declarada pelo Governo (art.º 9.º), através de resolução do Conselho de Ministros (não pelo Presidente da República, como no estado de emergência) em caso de existência ou iminência de “acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente” ou de acidente grave ou série de acidentes graves suscetíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e até vítimas, afetando intensamente as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do território nacional” (cf art.º 3.º e art.º 21.º).
A situação de calamidade não tem prazo máximo de duração (ao invés do que acontece com o estado de emergência, de revisão obrigatória a cada 15 dias) e prevê a “mobilização civil de pessoas, por períodos de tempo determinados”, a “fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos”, como prevê “fixação de cercas sanitárias e de segurança” e “racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade” (cf art.º 21.º).
Por mim, não vejo que, pela leitura da LBPC, uma resolução do Conselho de Ministros se fique pelas recomendações, dado que a lei lhe dá força preceptiva. Aliás, quando as resoluções têm em vista “recomendar”, referem-no expressamente. E o art.º 6.º, ao equacionar o dever de cooperação dos cidadãos, estipula que “a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo” (n.º 4).     
Por sua vez, o art.º 15.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, estabelece o plano de ação nacional de contingência das epidemias que, em especial, contempla, os seguintes procedimentos: prevenção e controlo a aplicar em todo o território nacional; comunicação entre profissionais de saúde e populações; redução de riscos ambientais potenciadores da disseminação; condições de exceção quanto à necessidade de abate de animais e arranque de espécies vegetais; condições de segurança para o armazenamento, o transporte e a distribuição de produtos biológicos e medicamentos de acordo com as normas nacionais e internacionais aplicáveis.
Não se vê razão, face à LBPC, para fraude à Constituição ou para inimputação do crime de desobediência (até há a responsabilidade disciplinar de funcionários e gestores). Os constitucionalistas perdem-se em distinções e esquecem que a CRP, não prevendo tudo, pressupõe a equidade ou “ipieíkeia” na aplicação às circunstâncias e que “para grandes males grandes remédios”. E Vital Moreira, apesar de garantista, até deduz do art.º 64.º da CRP a lógica da segurança.  
Todavia, considerada a gravidade da situação pandémica, seria melhor observar o estipulado no art.º 18.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto:
Nos casos em que a gravidade o justifique e tendo em conta os mecanismos preventivos e de reação previstos na Lei de Bases de Proteção Civil, o Governo apresenta, após proposta do CNSP (Conselho Nacional de Saúde Pública), baseada em relatório da CCE (Comissão Coordenadora de Emergência), ao Presidente da República, documento com vista à declaração do estado de emergência, por calamidade pública, nos termos da Constituição”.
Apesar de não ver inconveniente na ação do Governo em matéria de calamidade, a solução dissiparia as dúvidas, o Governo teria autoridade reforçada e exigir-se-ia maior fiscalização da parte do Parlamento e podia abrir-se com segurança e cautela, em prol das garantias pessoais, o levantamento de restrições. Com efeito, o confinamento de idosos não infetados foi excessivo e talvez até nocivo. Porque não quer o Presidente nova edição do estado de emergência? Para não se confrontar outra vez com os deputados e com os agentes económicos. Será isso o melhor?
Costa deve ouvir os especialistas, inclusive os juristas, e ponderar. Não diga que é jurista, pois não está provado que um governo de jurista seja melhor ou pior que os outros!   
2020.04.28 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Na vida estamos sempre em caminho


Disse-o o Papa Francisco antes da oração mariana do Regina Caeli no dia 26 de abril, a partir da Biblioteca do Palácio Apostólico, comentando o Evangelho do 3.º domingo de Páscoa no Ano A (Lc 24,13-35), que nos relata a aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos que iam a caminho de Emaús, deixando Jerusalém e percorrendo cerca de 11 quilómetros, desiludidos do seguimento que tinham feito do seu Mestre e dispostos a refazer a vida de outro modo.
Vinca o Santo Padre que se trata de “uma história que começa e acaba a caminho. É a história de duas caminhadas em sentido inverso. É a história de “uma viagem feita de dia”, embora ao entardecer, “com grande parte do percurso em declive”, e a da “viagem de regresso, (…) mas percorrida ao cair da noite, com parte do caminho em subida, após o cansaço da viagem de ida e o dia inteiro”. A primeira fica para sempre conotada com a tristeza por terem os caminheiros de se remeter aos seus critérios de humanos; a segunda fica marcada pela alegria e pelo afã de comunicarem a boa nova aos seus companheiros do seguimento do Messias. Na primeira, o Senhor caminha ao lado deles, mas não O reconhecem, ofuscados que estão pelo desânimo e desalento; na segunda, não O veem, mas sentem-No próximo e correm a levar aos outros a boa notícia do encontro com Jesus Ressuscitado.
Os dois caminhos daqueles discípulos dizem-nos a  nós, discípulos de Jesus hoje, que a vida nos oferece dois rumos opostos, na esteira do Salmo 1: o caminho de quem “se deixa paralisar pelas desilusões da vida e vai em frente com tristeza”; e o “de quem não se coloca em primeiro lugar a si próprio e aos seus problemas, mas Jesus, que nos visita, e os irmãos, que esperam a sua visita”, os irmãos que esperam o nosso cuidado deles. E é claro: torna-se decisivo deixar de orbitar em torno de si próprio e das desilusões do passado – a que somos tantas vezes tentados; e olhar “para a maior e mais verdadeira realidade da vida: Jesus está vivo, Jesus ama-me.
A esta reviravolta chama o Pontífice decisiva “inversão de marcha”: “passar dos pensamentos sobre o meu eu para a realidade do meu Deus”; ou passar do ‘se’ para o ‘sim’. E explica:
Se Ele nos tivesse libertado, se Deus me tivesse ouvido, se a vida tivesse corrido como eu queria, se eu tivesse isto e aquilo... (…) Este ‘se’ não ajuda, não é fecundo, não ajuda nem a nós nem aos outros. Eis os nossos ‘se’, semelhantes aos dos dois discípulos. Mas eles passam para o sim: ‘Sim, o Senhor está vivo, Ele caminha connosco. Sim, agora, não amanhã, voltamos a percorrer o caminho para o anunciar’. ‘Sim, posso fazer isto para que as pessoas sejam mais felizes, para que as pessoas sejam melhores, para ajudar muitas pessoas. Sim, sim, eu posso’.”.
Com efeito, quando nos queixamos, a alegria está ausente e domina-nos a melancolia, o que “não ajuda, e nem sequer nos faz crescer bem”. Há que partir do ‘se’ para o ‘sim’, “da lamentação para a  alegria do serviço”.
O que levou a esta conversão dos discípulos de Emaús? Três passos levam a esta mudança radical a partir do encontro com Jesus, embora sem O reconhecerem: a abertura que lhe fazem do íntimo, do coração; a escuta da explicação das Escrituras; e o convite, resultante da hospitalidade, a que fique em casa deles. E é isso que hoje nos leva ao encontro de conversão com Jesus: abrir-lhe o coração, “confiando-lhe os pesos, os cansaços, as desilusões da vida, confiando-lhe os se”; ouvir Jesus, pegando no Evangelho e lendo ou ouvindo ler e acatar as explicações que nos são dadas; e “rezar a Jesus com as mesmas palavras daqueles discípulos: Senhor, fica connosco”, comigo, connosco, pois, “sem ti, não há noite”.
O Papa assegura que “na vida estamos sempre a caminho” e que nos tornamos “aquilo rumo ao que caminhamos”, pelo que exorta a que “escolhamos a vereda de Deus, não a do eu, o caminho do sim, não o do se” e garante que “descobriremos que não há imprevisto, não há subida, não há noite que não se possa enfrentar com Jesus”.
E, por fim, suplica a “Nossa Senhora, Mãe do Caminho que, acolhendo a Palavra, fez de toda a sua vida um ‘sim’ a Deus”, que “nos indique a senda” para colocarmos em primeiro lugar Jesus e os irmãos, passarmos da lamentação à alegria e à paz e termos a coragem de estar sempre em caminho, o caminho de Deus para o qual Ele nos veio recrutar ao nosso caminho.
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A temática do caminho é inspiradora no pontificado de Francisco. Logo na homilia da Missa que celebrou com os cardeais, a 14 de março de 2013, o dia seguinte ao da eleição para o sumo pontificado, apontou as três vertentes caraterizadoras do movimento da vida do crente e, por consequência, da vida da Igreja; caminhar, edificar e confessar.
Se Isaías convida a Casa de Jacob a caminhar à luz do Senhor (cf Is 2,5), também a primeira coisa que Deus disse a Abraão foi: “Caminha na minha presença e sê irrepreensível”. Por isso, o então novel Pontífice dizia que “a nossa vida é um caminho e, quando nos detemos, está errado”. Na verdade, é imperativo “caminhar sempre, na presença do Senhor, à luz do Senhor, procurando viver com aquela irrepreensibilidade que Deus pedia a Abraão, na sua promessa”. Depois, é preciso edificar a Igreja com aquelas pedras que “têm consistência”, as “pedras vivas, pedras ungidas pelo Espírito Santo. Edificar a Igreja, a Esposa de Cristo, sobre aquela pedra angular que é o próprio Senhor”, de modo que a Igreja possa caminhar, uma vez que não pode parar, mas se realiza em caminhada: é sinodal. Por fim, os caminhantes têm uma razão para a caminhada: Jesus Cristo. “Podemos caminhar o que quisermos, podemos edificar um monte de coisas, mas, se não confessarmos Jesus Cristo, está errado”. “Tornar-nos-emos uma ONG sócio-caritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor.” – dizia o Papa. Por isso, é preciso confessar a fé em Jesus. O nosso grito de marcha é: “Jesus de Nazaré, que passou pelo mundo fazendo o bem, a quem os homens deram a morte, crucificando-O, ressuscitou e está vivo no meio de nós”!
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O tom da caminhada da Igreja está presente na Lumen Gentium do Concílio Vaticano II. Assim, por exemplo, no n.º 8 afirma-se que “a Igreja ‘prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus’, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha” (cf 1 Cor 11,26). O n.º 12 refere: 
O mesmo Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas ‘distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz’ (1 Cor 12,11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja, segundo aquelas palavras: ‘a cada qual se concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum’ (1 Cor 12,7).”.
O n.º 49, sob a epígrafe “União da Igreja celeste com a Igreja peregrina(capítulo VIIíndole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste), ensina:  
Enquanto o Senhor não vier na Sua majestade (…) e (…) tudo Lhe for submetido, dos Seus discípulos uns peregrinam sobre a terra, outros, passada esta vida, são purificados, outros são glorificados e contemplam ‘claramente Deus trino e uno, como Ele é’; todos, porém, comungamos (…) no mesmo amor de Deus e do próximo, e todos entoamos ao nosso Deus o mesmo hino de louvor. (…) E não se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo, mas, segundo a constante fé da Igreja, é reforçada pela comunicação dos bens espirituais.”. 
E, finalmente, o n.º 68 estabelece a conexão entre Maria e a Igreja peregrina na esperança:
A Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há de consumar no século futuro, também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor (cf 2 Pe 3,10).”.
2020.04.27 – Louro de Carvalho

domingo, 26 de abril de 2020

O Ressuscitado aparece-nos no nosso caminho e caminha connosco


Os comentários homiléticos do II domingo da Páscoa acentuavam o facto de o Ressuscitado ter aparecido na comunidade dos discípulos confinados pelo medo, tendo sido nesse lugar comunitário que os surpreendeu colocando-Se no meio deles, apesar das portas fechadas, lhes deu a paz, o Espírito Santo e a incumbência de servir o perdão dos pecados. Também era dito que, não estando Tomé presente e propondo-se desafiar o Mestre para que lhe mostrasse as chagas, o Senhor decidiu esperar por Tomé, pois não queria que ninguém ficasse para trás, e ganhou a melhor e mais sintética confissão de fé orante que alguma vez tinha sido feita. E acentuava-se que o encontro de Tomé com Cristo ocorrera na comunidade e não em sítio isolado, porque a comunidade é o locus privilegiado da presença de Cristo (vd Jo 20,19-31).
Neste III domingo da Páscoa, desiludidos com o caminho de Jesus – de ensino, prática do bem, prodígios, mas entrega voluntária nas mãos dos inimigos (cf At 2,14.22-23) – dois discípulos resolvem pôr-se a caminho da sua aldeia e refazer a vida segundo as previsões, projetos e interesses próprios (vd Lc 24,13-35) – opção legítima e natural –, esquecendo de vez a esperança que depositaram em Jesus de Nazaré, o dito messias poderoso que derrotaria os opressores, restauraria o reino grandioso de David e distribuiria cargos e honrarias pelos cooperadores (“nós esperávamos…”). Tudo isso foi um profundo fracasso. Em vez de triunfar, deixou-se crucificar. Já era o 3.º dia, o que significava que a morte era irreversível.   
Assim, Cléofas e o companheiro (cujo anonimato pode ser preenchido por cada um dos crentes) desertam da comunidade por doravante não fazer sentido a comunidade continuar. De facto, uma comunidade cristã que não viva da ressurreição não tem razão de ser, pelo que é inútil.
A discussão entre eles sobre “o que tinha acontecido” constitui a partilha solidária dos sonhos desfeitos que dilui um pouco a desilusão. É neste contexto que surge neste caminho de desilusão partilhada um desconhecido cuja entrada no grupo de caminhantes é aceite com naturalidade e se torna o confidente da sua frustração. Os dois contam a história verdadeira do mestre que os encantou e os mobilizou, mas, para eles, a verdade não passa do sepulcro. Falta a atitude do discípulo amado que viu e começou a acreditar, porque foi no encalço da novidade trazida pelas miróforas de que o túmulo estava vazio e Ele lhes aparecera.
Porém, essa verdade incompleta (umas mulheres disseram que Ele estava vivo, mas ninguém o viu) deu azo a que o novo companheiro de viagem respondesse às inquietações dos dois e lhes mostrasse toda a verdade do projeto messiânico: não passava por quadros de triunfo humano, mas pelo dom da vida e pelo amor afetivo e efetivo até às últimas consequências. E, “começando por Moisés e passando pelos profetas, explicou-lhes em toda a Escritura o que a Ele se referia”.
É óbvio que este novo companheiro que apareceu no caminho deles é Jesus, o Ressuscitado, que deseja que ninguém fique para trás e quer que eles voltem à comunidade para retomarem os trilhos do verdadeiro caminho. 
Os três chegam, finalmente, a Emaús. Os dois discípulos continuam a não reconhecer Jesus, não obstante convidam-no a ficar com eles, pois sentiam-se confortados pela sua companhia e palavra. Ele aceita e sentam-se à mesa. Enquanto comiam, Jesus “tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho”. São gestos que evocam a instituição da Eucaristia na Última Ceia e marcam a celebração eucarística da Igreja primitiva. E foi por estes gestos que O reconheceram. Mas Ele desapareceu.
Ora, é na partilha dos problemas e na escuta e partilha da Palavra que o plano salvador de Deus ganha sentido. É por este meio que o crente perceberá que o amor e o dom da vida não são um fracasso, mas geram a vida nova. Os discípulos percebem que “o Messias tinha de sofrer tudo isso para entrar na glória”. Com efeito, a vida plena não está – de acordo com os esquemas de Deus – nos êxitos e poderes humanos, mas está no serviço simples e humilde aos irmãos, no dom da vida por amor, na partilha total do que somos e que temos.
Lucas recorda aos membros da sua comunidade que Jesus vivo e ressuscitado vem ao nosso caminho para o transformar no seu caminho. Este Jesus que por amor enfrentou a cruz continua a fazer-Se companheiro de jornada dos homens nos caminhos da história, na celebração eucarística e sempre que os irmãos se reúnem em nome de Jesus para rezar e para “partir o pão” que repartem entre si, comprometendo-se com a partilha. Aí está vivo e atuante. E é no gesto de bênção e fração do pão que se reconhece o Ressuscitado e o valor da comunidade. É aí que se reconhece a validade da ardência do coração enquanto se ouvem e meditam as Escrituras.
A última cena do episódio de Emaús põe os discípulos a retomar o caminho de Jerusalém a anunciar aos irmãos que Jesus está vivo, o que é confirmado pela e na comunidade.
Quando Lucas escreve o seu Evangelho, a comunidade defrontava-se com algumas dificuldades. Tinham decorrido cerca de 50 anos depois da morte de Jesus. As catequeses asseguravam que Ele estava vivo, mas o quotidiano da vida monótona, cansativa e dificultosa tornava difícil fazer essa experiência. As testemunhas oculares de Jesus tinham desaparecido e os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição pareciam demasiado distantes e ilógicos, faltando as teofanias.
É a isto que a catequese lucana procura responder dirigindo a sua mensagem a crentes que se sentem a caminhar pela vida desanimados e sem rumo, cujos sonhos parecem desfazer-se no embate com a realidade monótona e difícil do quotidiano em que nada parece acontecer, a não ser perseguições. Não haverá nenhuma intervenção espetacular de Deus. No entanto, Jesus ressuscitou e está vivo. Caminha ao nosso lado nos caminhos do mundo, mesmo que não consigamos reconhecê-Lo, por os nossos corações estarem cheios de perspetivas erradas acerca do que Ele é, dos seus métodos e do que Ele pretende. Ele faz-Se nosso companheiro de viagem e quer entrar nas nossas angústias e dissipá-las; alimenta a nossa jornada com a esperança e a certeza que brotam da Palavra, faz-Se encontrar na partilha comunitária do pão e do vinho.
Na catequese lucana é eminente a certeza de que na celebração comunitária da Eucaristia os crentes, instruídos pela Palavra, experienciam o encontro com Jesus vivo. Na verdade, a narração de Emaús apresenta o esquema litúrgico da celebração eucarística: a liturgia da Palavra (“explicação das Escrituras” – para os discípulos entenderem o plano de Deus) e o “partir do pão”, para que os discípulos entrem em comunhão com Jesus, recebam d’Ele vida e O reconheçam nos gestos que são o memorial do dom da vida e da entrega aos homens.
Jesus tanto surge na comunidade confinada na casa comum como no confinamento do caminho humano para que, retomando o verdadeiro caminho os discípulos que se isolaram e a comunidade pusilânime, retumbem, revigorados pela força do Alto, nos caminhos da missão apostólica por todo o mundo e até ao fim dos tempos. Cada crente é convidado a retomar a verdadeira estrada, viver a comunidade orante e ativa e estar disponível para a missão.
Ele surge na comunidade e no caminho, atento a quem tende a ficar para trás ou sair do redil.
2020,04.26 – Louro de Carvalho

sábado, 25 de abril de 2020

O 46.º aniversário do 25 de Abril foi celebrado no Palácio de São Bento


Confesso que me escandalizou a polémica gerada à volta desta comemoração. Alegava-se que os deputados deviam dar o exemplo confinando-se como os demais cidadãos, que não celebraram a Páscoa como era habitual nem puderam visitar as famílias.
Ora, não se trata de dar o exemplo nesta matéria, mas de Presidente da República, deputados, Governo e senadores da República deverem fazer o que os cidadãos comuns não podem fazer. O exemplo? Deem-no no comedimento, dedicação, verdade, assiduidade, contenção de gastos e perceção razoável de rendimentos pessoais.
Não gostaria de ver a celebração duma data fundante da democracia adiada para outra data menos consensual, como 28 de setembro, 11 de março ou 25 de novembro. O exemplo do adiamento das procissões da Semana Santa para 14 e 15 de setembro não colhe porque são efemérides que não mudam a natureza intrínseca das celebrações. Não gostaria de ver o 25 de Abril com meia dúzia de intervenientes a modo do que se faz em celebrações litúrgicas a que as pessoas se podem associar pela TV ou pela internet. Os deputados devem ser sapientemente prudentes para guardarem as distâncias recomendadas e audazes para correrem riscos se for preciso. Não gostava de ver a celebração feita a partir de Cova da Moura, Pontinha ou Quartel do Carmo – simbólicos, mas circunstanciais – ou da residência particular de Ferro Rodrigues, como não gostei de ver a quarentena presidencial a partir da sua residência em Cascais, que bem podia ter sido exercida a partir do Palácio de Belém.
As vozes que se levantaram contra este modelo de celebração na Casa da Democracia, que foi o objetivo político da revolução, ou não querem a celebração desta data e aproveitaram o ensejo para contestarem o modelo ou não acreditavam que o Parlamento seguiria as indicações da Direcção-Geral da Saúde. Esquecem que o Parlamento não foi dissolvido nem suspenso.
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Afinal, o Parlamento, numa versão reduzida, celebrou a efeméride num contexto de pandemia e na iminência de crise socioeconómica. Fê-lo com 46 deputados (um por cada ano decorrido). Os discursos não esqueceram a polémica suscitada em torno do modus faciendi, comentaram a resposta que está a ser dada à pandemia e abordaram o futuro e a importância da liberdade. A sessão começou com um minuto de silêncio pelas vítimas da Covid-19. E, ao invés do habitual, o Presidente do Parlamento abriu os discursos para defender a decisão de celebrar o 25 de Abril, porque “independentemente das circunstâncias, a democracia e o Parlamento dizem presente”.
O CDS não só discordou desta cerimónia como propôs uma alternativa viável e responsável para uma evocação que consideramos fundamental“, argumentou Telmo Correia, que aduziu que “esta celebração dividiu os portugueses quando o momento é de união”. E André Ventura, do Chega foi mais contundente: “Não devíamos estar aqui hoje porque os portugueses não puderam estar ao lado daqueles que perderam”.
Porém, a Iniciativa Liberal e o PAN – que se fixou nas áreas em que “falta cumprir abril” – preferiam uma celebração diferente, mas focaram-se nas suas bandeiras. Os restantes partidos (PS, PSD, PCP, PEV e BE) defenderam a cerimónia. Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, disse que não podíamos estar noutro sítio que não o Parlamento para comemorar o 25 de Abril. E foi o Presidente da República quem dedicou mais tempo à defesa desta celebração, chegando a dizer que “nunca hesitou por um segundo”: “Deixar de evocar o 25 de Abril no tempo em que ele mais está a ser posto à prova seria um absurdo cívico”. Segundo ele, “o que seria verdadeiramente incompreensível” seria a AR “demitir-se de exercer todos os seus poderes” quando “são mais necessários” do que nunca” (sobretudo os poderes de fiscalização). Não se trata, pois, de festa de políticos, alheia ao clima de privação vivido na sociedade portuguesa, mas de reconhecer o verdadeiro sentido da data fundante do regime democrático, tal como se fará para reconhecer os significados de 10 de junho, de 5 de outubro e de 1 de dezembro.
Apesar de a polémica ter estado presente nos discursos, o tema central foi a pandemia que acarreta restrições por causa do novo coronavírus e trará dificuldades económicas e sociais. E o líder do PSD aproveitou para avisar que “a economia portuguesa não resistirá a uma nova paragem como aquela que estamos a viver” e pedir um plano para o próximo inverno que evite uma nova (quase) paralisação do país enquanto não há uma vacina. Advertiu que “as falhas verificadas agora não poderão ser repetidas”. Aliás, o foco no investimento no SNS, visto como uma vitória do 25 de Abril, foi vincado pelos partidos, agora que a pandemia a expôs as fragilidades dos serviços de saúde. E Rio não exclui a 100% a necessidade de austeridade, referindo que o “otimismo” dos partidos à esquerda, incluindo o PS, de que esta não será necessária, não pode impedir de nos prepararmos para o pior cenário. E, à esquerda, foram vários os apelos para uma resposta mais forte, pois os direitos e a liberdade não estão em quarentena. Foi mesmo Ferro Rodrigues quem introduziu a questão da austeridade, ao dizer.
De uma coisa estou certo: Portugal e os portugueses estão vacinados contra a austeridade. Resta saber se a vacina tem 100% de eficácia.”.
E aproveitou o ensejo para elogiar os partidos que ajudaram o PS na devolução de rendimentos efetuada nos últimos anos.
Pelo BE, Moisés Ferreira afirmou que “da crise só saímos avançando, nunca recuando”, e Jerónimo de Sousa, pelo PCP, assinalou que “a situação que vivemos mostra a importância dos serviços públicos”, que “os que há pouco diziam que vivíamos acima das nossas possibilidades estão de volta” e que a crise não pode significar um retrocesso nos rendimentos. No PS, a mensagem foi para a Europa para que esta faça parte da solução e não do problema.
Também a celebração da Revolução dos Cravos não esqueceu a liberdade. E foi a Iniciativa Liberal que mais tempo do seu discurso dedicou ao tema, focando-se nos mais jovens. Numa carta ao filho que faz 18 anos neste dia, Cotrim Figueiredo pediu para que este nunca dê a liberdade “por garantida”. O Presidente da República sustentou que é preciso perceber a diferença entre “a liberdade que assume e a repressão que apaga e a democracia que revela e a ditadura que silencia”. O PS, pela voz de Catarina Mendes, frisou que a liberdade é “uma flor delicada” que é preciso preservar. E Moisés Ferreira afirmou que “hoje não descemos a avenida, mas nem por isso esquecemos que a liberdade é o nosso chão”.
Apesar da divisão nalguns aspetos, houve união na luta contra a pandemia, a ponto de Marcelo preconizar que “esta hora impõe unidade, que não é nem unicidade nem unanimismo” e encerrando com um apelo: “Vamos ao essencial, vamos vencer as crises que temos de vencer”.
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Com a crise sanitária a parecer quase controlada e a discussão sobre a recuperação económica no horizonte mais próximo, a cerimónia do 25 de Abril trouxe a política de volta ao Parlamento, com os partidos a pressionarem o Governo e a definirem pontos de partida para o debate que se avizinha. Rui Rio, que até agora esteve apostado numa estratégia de cooperação com o Governo e muito contido na crítica, foi quem levou mais longe esse exercício, deixando o aviso de que o período de compreensão acabou. Expôs um extenso caderno de encargos para evitar nova paragem que o país não suportaria: maior capacidade de resposta do SNS, mais equipamentos disponíveis e mais profissionais habilitados a usá-los, testes em quantidade suficiente e proteção individual adequada para todos. Se a pandemia apanhou todos de surpresa, agora a palavra-chave é “planeamento”, a começar pelos lares, onde as falhas se têm acumulado. Com efeito, há um número na cabeça de todos: 40% das vítimas mortais causadas pela pandemia eram residentes em lares. E o líder do PSD questionou o mediatismo de vários governantes, que estão nos jornais e nas televisões a publicitar, a toda a hora, o que fizeram e o que não fizeram”, exigindo ao Governo arrepio de caminho para corrigir as falhas e injustiças, para que empresas e trabalhadores possam receber os apoios em tempo útil e oportuno. E observou:
O Partido Socialista e os partidos da maioria parlamentar que apoiam o Governo têm garantido que, com eles, não haverá qualquer tipo de austeridade. É uma notícia que, seguramente, a todos agrada, mas tal otimismo não pode ser impeditivo de nos prepararmos para o pior cenário, pois, tal como o povo nos ensina, ‘mais vale prevenir do que remediar’.”.
Também Moisés Ferreira denunciou os que espreitam a “oportunidade de desenterrar a velha cartilha da austeridade”. E defendeu que a crise económica que aí vem só será respondida com investimento no SNS, aumentos salariais e atualização de carreiras, proteção do emprego e apoios sociais. Ou seja, será respondida com Abril. Do PAN, também vieram exigências de mais e melhor Estado no combate à pobreza, na resposta ao SNS, no direito à habitação, na proteção de todos, no acesso à educação, no respeito pelos animais e pelo ambiente. O deputado Iniciativa Liberal frisou que a sua geração falhou ao não ser capaz de deixar à geração seguinte um país mais próspero, com mais oportunidades, com mais escolhas e com mais liberdade, pois “não há verdadeira liberdade enquanto não houver igualdade de oportunidades e possibilidade de escolha”. Telmo Correia reforçou as críticas ao modelo escolhido pela Assembleia da República porfiando que “não aceitamos lições de democracia de ninguém”. André Ventura centrou a sua intervenção nas críticas ao regime e à III República para pedir um novo 25 de Abril (“Queremos outra democracia, queremos a IV República portuguesa”). E Jerónimo de Sousa vincou: 
Os que há pouco diziam que vivíamos acima das nossas possibilidades estão de volta empolando dificuldades reais. Regressaram a debitar as suas velhas receitas agigantando catastróficos cenários, para justificar o aprofundamento da exploração. Ei-los ensaiando o discurso da inevitabilidade do corte dos salários, das pensões e dos direitos e a pensar manter intocáveis os seus instrumentos de exploração.”.
Essa receita nunca contará com o apoio do PCP. A austeridade está aí e é preciso combatê-la desde já, insistiu Jerónimo de Sousa, que observou:
Dizem-nos que estamos todos no mesmo barco. Os mesmos que estão na origem das gritantes desigualdades existentes passaram a arvorar-se em campeões do consenso nacional. Não, os portugueses não estão todos nas mesmas condições.”.
Num discurso de homenagem aos símbolos e significados do 25 de Abril, Catarina Mendes evitou entrar na discussão que vai toldando o debate sobre o plano de recuperação económica, mas não escondeu alguma desilusão com a resposta que tem sido dada pela UE, reconhecendo que “nunca os cidadãos foram tão exigentes face ao projeto europeu” e que “as notícias que recebemos da Europa alternam entre o bom, o mau e o incerto”. E deixou juras de compromisso:
No que depender de nós, a Europa será reforçada nesta crise, fará parte da sua solução, não dos problemas gigantescos que temos pela frente. Esperemos que todos queiram partilhar este nosso sentido de reforço da Europa. Mas, reafirmamos, não seremos nós a ficar de fora da Europa nesta crise.”.
A registar há o aceno de Marcelo a Jerónimo de Sousa, como ele deputado na Assembleia Constituinte e o agradecimento a Ramalho Eanes, o único ex-Presidente da República presente.
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Enfim, uma comemoração do 25 de Abril como pôde ser, mas digna!
2020.04.25 – Louro de Carvalho