Na verdade, do alto da cruz, antes de entregar o espírito,
Jesus confiou a mãe ao discípulo amado e o discípulo amado à mãe. E o discípulo
recebeu-a em sua casa (cf Jo 19,25-27). A hermenêutica
não confina esta entrega a duas pessoas singulares: a mãe que perdera o filho;
e um homem novo que, por acaso, era discípulo do falecido.
Desde sempre se viram nestas palavras do 4.º Evangelho a
constituição testamentária de Maria como a mãe de todos os que partilham do
estatuto do discipulado, ali representados pelo apóstolo mais novo, o que não
abandonou o Mestre e o aquele que, ao ver o túmulo vazio e os despojos do que
ali fora sepultado em boa ordem, começou a acreditar, antes dos outros. Enfim,
a mãe do Messias torna-se também a mãe dos que partilham da missão
evangelizadora, santificadora e organizadora na caridade, bem como dos
destinatários e beneficiários dessa mesma missão, que têm o ensejo, o direito e
o dever de se tornarem agentes da mesma segundo a sua condição de vida. Por
isso, o discípulo recebeu a mãe do Senhor como sua mãe e a aceitou em sua casa,
o que os demais discípulos vieram a fazer como vem espelhado no livro dos Atos
dos Apóstolos (cf At 1,14), que refere que
“todos ficaram cheios do Espírito Santo” (At
2,4).
Não só a comunidade dos discípulos, que se fazem apóstolos
segundo o mandato divino, tem Maria por mãe, como, nesta comunidade, Maria se
torna a mãe dos que pregam a salvação, dos que a aceitam e se tornam seus
instrumentos.
Assim, Maria é, ao mesmo tempo, mãe da Igreja e protótipo da
Igreja-mãe. É, em última análise, pela sua vertente discreta e de omnipotência
suplicante (intercede por nós junto de Jesus e
apresenta-lhe nossos dramas e êxitos, tal como é missionaria de Jesus junto de
nós avisando e aconselhando-nos), não tanto as mãos de quem trabalha, mas sobretudo o coração
de quem pulsa no Espírito Santo e os pés de caminhante com a marcha da Igreja.
A este respeito, o n.º 63 da Lumen gentium (Constituição Dogmática
sobre a Igreja) ensina:
“Pelo dom e missão
da maternidade divina, que a une a seu Filho Redentor, e pelas suas singulares
graças e funções, está a Virgem intimamente ligada à Igreja: a Mãe de Deus é o
tipo e a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com
Cristo, como já ensinava Santo Ambrósio. Com efeito, no mistério da Igreja, que
é também com razão chamada mãe e virgem, a bem-aventurada Virgem Maria foi
adiante, como modelo eminente e único de virgem e de mãe. Porque, acreditando e
obedecendo, gerou na terra, sem ter conhecido varão, por obra e graça do
Espírito Santo, o Filho do eterno Pai; nova Eva, que acreditou sem a mais leve dúvida,
não na serpente antiga, mas no mensageiro celeste. E deu à luz um Filho, que
Deus estabeleceu primogénito de muitos irmãos (Rm 8,29), isto é, dos fiéis,
para cuja geração e educação Ela coopera com amor de mãe.”.
O Papa São Paulo VI, no dia 21 de novembro de 1964, “no discurso
conclusivo da III Sessão Conciliar”, no ato público de promulgação da
Constituição Lumen Gentium, proclamou Maria
como “Mãe da Igreja”. Fê-lo perante mais de dois mil bispos reunidos na Basílica
de São Pedro, embora com o “parecer negativo dos bispos alemães e da comissão
doutrinal”, que se preocupavam com a conveniência ecuménica da proclamação, bem
como com críticas particulares como as do seu amigo o filósofo Jean Guitton. Contudo, já o
Papa São João XXIII, em 1960, tinha atribuído a Nossa Senhora este título e São
Paulo VI tinha manifestado, no final da II Sessão Conciliar, a “esperança de
que se chegasse àquela proclamação”.
No dia 3 de março de 2018, foi publicado um Decreto da
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, pelo qual Francisco
decidiu a inscrição da Memória da “Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da Igreja”
no Calendário Romano Geral. E o Cardeal Robert Sarah, prefeito daquele
dicastério, comentando o Decreto, afirmava que a maturação da veneração litúrgica
de Maria decorre de uma melhor compreensão da sua presença no mistério de
Cristo e da Igreja.
***
E é esta a razão que está explicitamente na base do ato a que
os Bispos do Canadá e dos Estados Unidos da América vão proceder de consagração
a Maria no próximo dia 1 de maio.
Com efeito, unidos, os Bispos destes dois países vão renovar
a consagração das respetivas nações à Virgem Maria, entregando-se aos seus
cuidados no início do mês mariano.
Dom José Gomez, Arcebispo de Los Angeles e presidente da
Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, em carta enviada a 22 de abril, convidou
os Bispos do país a unirem-se, no 1.º de maio, para consagrar os Estados Unidos
à Santíssima Virgem Maria neste momento de crise causado pela pandemia, evento
que coincidirá com a consagração do Canadá à Mãe de Deus. E, explicado que a
consagração mariana será feita com o título de “Maria, Mãe da Igreja”, referiu:
“Todos os anos a
Igreja busca a intercessão especial da Mãe de Deus durante o mês de maio. Este
ano, buscamos com maior fervor a assistência de Nossa Senhora enquanto
enfrentamos juntos os efeitos da pandemia global causada pelo coronavírus.”.
Este pedido vem na sequência da decisão dos Bispos do
Canadá de consagrarem o seu país à Virgem Maria. Na verdade, como diz Dom José Gomez, no âmbito do diálogo com os líderes da Conferência dos
Bispos do Canadá, o Comité da Conferência estadunidense reuniu-se e confirmou a
data de 1 de maio de 2020 como oportunidade para que os Bispos dos Estados
Unidos voltem a consagrar a nação à Nossa Senhora e o façam com o título de “Maria,
Mãe da Igreja”, no mesmo dia que os irmãos Bispos do Canadá e com o mesmo
título.
Tendo o título de “Maria, Mãe da Igreja” sido dado à
Santíssima Virgem por São Paulo VI e acrescentado na memória do calendário litúrgico
da Igreja em 2018 por Francisco,
Dom José Gomez, celebrando
este acontecimento em 2018, disse que “quando
Jesus ressuscitou dos mortos e subiu ao Céu, Maria se converteu no coração
materno da Igreja”.
Por outro lado, o ato de consagração, como ato de
entrega e de confiança, constituirá uma boa oportunidade para rogar a intercessão de Maria durante a pandemia. Ou
seja, esta consagração “dará à Igreja a oportunidade de rezar pela proteção
contínua de Nossa Senhora aos vulneráveis, à cura dos enfermos e à sabedoria
dos que trabalham para encontrar a cura deste vírus”, como afirmou o presidente da Conferência dos
Bispos dos Estados Unidos, que
concluiu:
“No tempo de Páscoa, continuamos a jornada
com nosso Senhor ressuscitado para que, entre as graças deste tempo, possamos
ter cuidado e fortaleza, especialmente para todos os que estão sofrendo pelo
efeito da pandemia”.
***
É boa resposta aos críticos da Igreja católica que
aduzem que não se fazem preces para arredar as situações de calamidade, como
seca severa, alagamentos, terramotos e outros cataclismos, incluindo epidemias
e pandemias. Aliás, os Bispos de Portugal e Espanha, a que se juntou uma
vintena de Conferências Episcopais, consagraram os seus países ao Coração de Jesus
e ao Coração de Maria, no dia 25 de março; o Papa convocou o momento extraordinário
de oração para o dia 27 do mesmo mês, que o mundo pôde contemplar e a que pôde
unir-se; e os Bispo da Europa compuseram a “oração para pedir ajuda, conforto e salvação” em
tempo de pandemia.
Resta a atitude de cada um em aderir à oração,
replicá-la e torná-la compromisso pessoal de vida mais solidária e justa na
comunidade.
2020.04.24 – Louro de Carvalho
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