sábado, 11 de abril de 2020

A indizível força da Cruz


É usual referirmos a herança de Quinta-feira Santa na tríplice vertente: eucarística, sacerdotal e do amor fraterno expresso na interiorização e na assunção do serviço como dimensão fundamental do ser e agir cristão. O Senhor, na noite eucarística, fez-Se corpo entregue e sangue derramado no banquete misterioso do pão e do vinho por nós homens e por nossa salvação; mandou que o fizéssemos em sua memória, para o que instituiu o sacerdócio ministerial (de serviço à Eucaristia e à caridade fraterna); e, tomando a postura usual nos servos que lavavam os pés dos hóspedes empoeirados pela caminhada, prestou exemplarmente esse serviço aos discípulos e mandou que o fizessem uns aos outros como Ele fez.
E este gesto revelador de quem é Jesus, Aquele que veio para servir, e revelador de quem somos nós os discípulos, os cristãos, tem de ser replicado por nós com o mesmo sentido e intensidade com que o fez Jesus e alargado a todos, com maior ênfase aos que mais precisam. Depois, este gesto é significativo do dom de Deus, que em Cristo mostrou amar os homens até ao fim, dando a vida para que tenham vida e a tenham em abundância. Por fim, é apelo ao compromisso de fazermos do amor de uns aos outros o sinal de que somos discípulos e de que temos a missão de fazer discípulos que eucaristizam, amam verdadeiramente o próximo e exercem o sacerdócio de base batismal, e alguns exercem o sacerdócio de eminente serviço à Palavra, à Eucaristia e demais sacramentos e à caridade fraterna afetiva e efetiva, espelho do nosso amor a Deus.       
Porém, em Sexta-feira Santa, o serviço da entrega sacerdotal, eucarística e amorosa de Jesus saiu do Cenáculo para as ruas da cidade e expôs-se a todo o mundo na colina do Calvário. Só que o altar do sacerdócio divino-humano de Jesus não tem neste dia o predomínio da vertente horizontal da Ceia, mas a vertente vertical do sacerdote que penetrou os Céus para oferecer, de uma vez por todas, o sacrifício único que agrada ao Pai e que tira o pecado do mundo. 
Se na ceia estavam os apóstolos todos, alguns discípulos e as mulheres, no Calvário, dos discípulos restava apenas o discípulo amado, porque os outros tinham debandado; e as mulheres estavam a observar de longe, apenas a mãe permaneceu junto à cruz. E foi junto à Cruz, ora sacrossantificada, que o Senhor confiou o discípulo à Mãe e a Mãe ao discípulo.
Por isso, os cristãos, que herdam o mistério de Quinta-feira Santa, são profundamente herdeiros do mistério do Calvário, que é o mesmo com outros contornos. Todavia, é mais espetacular e exemplar: espetacular, porque todos o podem contemplar, incluindo os que troçavam de Jesus, mas sobretudo o ladrão arrependido e o centurião, com alguns soldados, que reconheceram no crucificado o Filho de Deus; e exemplar, pois há tantos que replicam em si os sofrimentos de Jesus, completando em sua carne o que falta à Paixão de Cristo em favor do seu corpo, que é a Igreja (Cl 1,24), como os mártires e agora com aqueles e aquelas que sofrem a doença de Covid-19 e aqueles e aquelas que têm a seu cuidado estas pessoas e com quem estamos em comunhão.
Dizia o Cardeal Patriarca, na sua inspiradora homilia da Celebração da Paixão do Senhor, que “tudo estava consumado, naquele momento final e finalizado”. E, sentindo que estávamos a ouvi-lo para também acontecer connosco, observou que a chamada “vida cristã” deve ser “vida de Cristo em nós”, de tal modo que São Paulo afirmava: “Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 3,19-20)
E dizia Dom Manuel Clemente que toda a vida terrena de Jesus se orientou para este fim: “entregar-se por nós, para nos levar aonde nunca chegaríamos sozinhos”, pois “a humanidade ferida e insarável por si só” colocou-se a mui grande distância de Deus distância e, entregue a si própria, oscila entre as boas aspirações, de que permanecem algumas, e as deceções que se amontoam. Com a sua entrega na Cruz e pela Cruz, Jesus é um de nós, mas é o sem pecado que assumiu o nosso pecado, para nos ensinar a ser totalmente de Deus, “como Ele próprio é inteiramente do Pai”. Na verdade, apesar de ser Filho de Deus, aprendeu a obediência no sofrimento e, tendo atingido a sua plenitude, tornou-se causa de salvação eterna para os que lhe obedecem (cf Heb 5,8-9)
Na sua dissertação homilética, o Patriarca, frisando que Jesus é em tudo igual a nós, menos no que nos separa de Deus, pegou na parábola do Pai misericordioso (cf Lc 15,11-32), vincando a dor do pai pela separação do filho mais novo, pondo em confronto “a prodigalidade dum filho” e “a misericórdia do pai”, sugerindo que guardemos a parábola “na memória convertida”. E disse: 
Doeu-se aquele filho, quando esbanjou tudo o que o pai lhe dera e ficou em miséria extrema. E condoeu-se sobretudo aquele pai, que sempre esperou o regresso do filho e o recebeu com espantosa alegria. Bem ao contrário do irmão mais velho da parábola, Jesus irmanou-se connosco e tornou-se ele próprio o caminho do regresso. Bem sabia ser essa a maior alegria do Céu, por um só pecador que se converta.”.
Nesta perspetiva, Jesus fez-se caminho que se consumou-se na Cruz, “porque nela nos colocamos nós e aí mesmo teve de nos recuperar a todos”. 
Disse que tinha sede. E a sua sede é a sede da nossa sede para que a possa saciar “com a água viva do seu Espírito”, pois, como prometeu à Samaritana, se bebermos da água que Ele nos der, nunca mais teremos sede. Assim, “levando-nos ao Pai pelo estreito caminho da Cruz”, consuma a sua obra e, na verdade, o seu alimento “é fazer a vontade” daquele que O enviou.
Pensa Dom Manuel Clemente que a Cruz, inevitável “porque inevitáveis somos nós, tão contraditórios e frágeis”, se alça do rochedo do Calvário a indicar o chão deste nosso mundo, pois Jesus “busca-nos no chão concreto onde vivemos realmente”. E neste chão rochoso, por vezes bem duro, se levanta a Cruz, que, de instrumento de tortura horrível, de que se foge – o crucificado estava de pulsos amarrados ou, como no caso de Jesus, pregado em dura trave – passou a ser instrumento de alçamento redentor, pois os braços deste Crucificado “alargaram-se até onde a vida humana se distende”. E, em extensão e em elevação, “tudo nela cabe: dores e esperanças, caminhos e descaminhos”.
Elevada na transcendência divina, nós a contemplamos e adoramos no sentido do olhar de Jesus, que se dirige ao Pai, passando por nós. Por isso, “entre tantos trabalhos e canseiras, entre tantos planos e percalços, a lembrança da Cruz nos reanima e alenta”. Por isso, ela se impôs, ao arrepio dos critérios mundanos, “percorrendo os séculos e esperando-nos no futuro” e tornando-se, por um lado, “o coração do mundo” e, por outro, a porta de entrada “no Coração de Deus”.
E, comentando o facto de o Senhor, inclinando a cabeça, ter expirado, o Cardeal assegurou que nos exalou o Espírito, “para que o último instante da sua vida terrena fosse o primeiro da nossa vida divina”.  E concluiu que “a verdade do que ouvimos e contemplamos requer sempre (…) a nossa presença junto da Cruz que se ergue neste mundo (…) qual presença “orante e solidária” – “orante, pois com Cristo olhamos o Pai”; e “solidária, pois com Cristo olhamos a todos”.
Por seu turno, o Arcebispo Primaz exortou a que olhemos “para a cruz do Senhor em atitude de adoração” e pedindo “pela salvação do mundo inteiro”, garantiu que, “se nos deixarmos olhar e amar por Jesus Crucificado poderemos vislumbrar um futuro de esperança”, pois, no sim de cada instante a Jesus crucificado, “recebemos o dom do Espírito Santo, que nos dá a capacidade de, também nós, tal como Ele, amarmos até ao fim”, e assegurou que “o mistério da Cruz pode ser olhado sob dois pontos de vista: a partir do homem e a partir de Deus. E discorreu:
Do ponto de vista humano, a cruz é um concentrado de dor, horror, mentira, injustiça, violência e sangue. (…) É a contradição de todos os sonhos e ideais da Humanidade, da prosperidade da sociedade e da bondade desejada por cada ser humano. (…) É obra do diabo, o divisor, aquele que fragmenta a unidade ética, social e espiritual que carateriza o ser humano. Do ponto de vista de Deus, a cruz é um mistério de amor, de compaixão, de misericórdia e de redenção. (…) Na cruz, Jesus diz tudo o que é. (…) Do ódio fez a paz, da condenação fez o perdão.”.
O verdadeiro cristão tem, pois, de acolher as lições da cruz, ser seu arauto e portador imbuído da espiritualidade de Quinta-feira Santa e de Sexta-feira Santa. Só assim tem legitimidade e força para ser o alegre pregoeiro da Ressurreição. O cristão tem de ser crucífero e eucaristizante, mas não pode deixar de caminhar para e pela Ressurreição. O Cristo que está entre nós continua a ser o Cristo da cruz e das chagas, mas já não é o Cristo morto. Com efeito, do seu lado aberto, com o jorro de sangue e água, nasceu a Igreja para, fazendo pelo Batismo a comunidade crescente dos discípulos, celebrar a Eucaristia, banquete e memorial da Paixão e Ressurreição do Senhor, vivendo e semeando o amor entre todos. Talvez a meditação de Sábado Santo ajude a interiorizar estas lições de vida!
A cruz é o tálamo, o altar e o trono daquele que é simultaneamente o esposo da Igreja, o sacerdote da Nova Aliança e o rei-pastor que deu a vida pelas suas ovelhas; é a ponte para a Ressurreição, vivida na fé, na partilha, no amor e no serviço; e é a rampa de lançamento para o Céu onde esperamos conviver na glória de Deus e na fraternidade universal, definitiva e eterna.
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Confinados e encaixilhados, temos o dever e o direito de querer para todos uma Santa Páscoa!
2020.04.11 – Louro de Carvalho    

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