quarta-feira, 15 de abril de 2020

As pessoas primeiro, pois sem elas não há sociedade/comunidade


É o que defende o personalismo enquanto filosofia que acentua a condução o homem para a sua realização como pessoa. Assim, o sujeito percebe-se como pessoa, tem consciência da sua ‘pessoalidade’ e desperta para a ação vocacional, criando expectativas pessoalizadas.
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O personalismo
Na visão personalista, o homem leva a sério a satisfação das suas necessidades pessoais, pelo que as percebe e trabalha. Tendo em conta o valor da pessoa, coloca a questão pessoal acima das demais, porque todas as questões importantes da vida estão contidas nas questões pessoais. Nada deve jamais diminuir o valor e a primazia duma existência personalista. Também coloca a pessoa acima de quaisquer instituições ou da coletividade, pois o ser humano é único e peculiar, o que impossibilita o seu querer e ânsias de estarem totalmente em harmonia com as vontades, aspirações ou conquistas duma classe, grupo ou instituição. Porém, se há grande distância entre o querer dum sujeito e o que recebe do grupo e as instituições sociais a que pertence, não pode deixar de perceber e tratar o próximo como uma pessoa que também tem aspirações pessoais. Nestes termos, a perceção da pessoa como um ser distinto, mas próximo, leva a buscar proximidades pessoais sem desvalorizar a alteridade.
A importância da pessoa humana leva a considerar um fator subsequente: a integralidade do homem. Assim, para Mounier, “o homem é corpo exatamente como é espírito, é integralmente corpo e é integralmente espírito”. A esta luz, é de afirmar que existir subjetivamente e existir corporalmente são uma e mesma experiência e que o que não age não é. Por consequência, ressalta que aquilo em que acreditamos se deve coadunar com o que somos. Se o que não age, não é, não o faz, é porque não crê efetivamente no que afirma. A encarnação da ideia é um dos mais fortes pressupostos do personalismo. Assim, o que o indivíduo afirma crer deve ser endossado pelos seus atos, pois credo sem ação assemelha-se a espírito sem carne e, não havendo nisso substância, não é real. Não há espírito vivo sem corpo, nem crença real sem ação encarnada. De facto, o cerne do personalismo é a ação, a ação afirmativa ou empenhada. Por isso, os atos e escolhas indicam sempre o caminho que o espírito está a trilhar; e o indivíduo percebe que se age e está empenhado socialmente é porque acredita nas suas afirmações e, consequentemente, “é” na sua ação a afirmação em que defende crer.
O personalismo é um movimento associado ao humanismo idealizado por Emmanuel Mounier, após a crise de 1929 da Europa e divulgado pela revista “Esprit”, com o objetivo de identificar a verdade em todas as circunstâncias, crendo que o problema das estruturas sociais era económico e moral e que a saída estava na teorização e na construção de uma “comunidade de pessoas”. Mais tarde, foi adotado pela Democracia Cristã e influenciou fortemente o Papas São João XXIII, São Paulo VI, São João Paulo II e muitos católicos. A sua ideia central é a da pessoa na sua inobjetibilidade (não consiste só no conjunto de matéria), inviolabilidade, liberdade, criatividade e responsabilidade de pessoa (com alma encarnada num corpo, situada na história e constitutivamente comunitária).
Mounier enuncia como normas personalistas: uma posição de independência em relação aos partidos e agrupamentos constituídos como necessária para uma nova avaliação das diversas perspetivas (sem anarquismo ou apoliticismo); a enganosidade da simples afirmação dos valores do espírito, se não acompanhada de rigorosa delimitação da atividade e dos seus meios; a tendência para a confusão como o primeiro inimigo dum pensamento de ampla perspetiva, pelo que toda a questão deve ser bem estudada, já que há uma estreita relação entre o espiritual e o material; a libertação, para a correta e eficiente investigação, de qualquer apriorismo doutrinário, o que leva inclusivamente a mudar de direção para garantir a fidelidade à realidade e ao espírito; e a não assunção da revolucionariedade como remédio, pois o personalismo não implica per se a revisão dos valores, das estruturas ou das classes dirigentes. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Personalismo; Mounier, E. O Personalismo. 1.ª ed. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1960).
Em política, o personalismo  é a adesão dum movimento ou partido a uma pessoa, suas ideias e vontade, mais que a uma ideologia. Também se entende o personalismo como a subordinação do interesse do partido às aspirações pessoais de algum dos seus líderes. Em sua máxima expressão o personalismo pode levar ao culto da pessoa.
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Ética, direito, lei, equidade, justiça e visão comunicacional do direito
Ética e direito não podem andar separados. Porém, nem sempre os princípios éticos são considerados como base de ação e justificação do efetivar o direito. Por isso, a ética constitui um desafio ao direito, apresentando-lhe as dificuldades explícitas para a consecução dos seus fins e fazendo referência às implícitas ao sistema e à sua formação. Assim, as mazelas criadas pelas ofensas às normas éticas causam desconforto e insegurança à capacidade de criar, manter e cumprir normas que tenham como resultado a justiça e o bem comum. E, ainda, é possível que, sob a justificativa de defender tais normas, se realizem outras injustiças e agressões, sobretudo tendo em conta o significado das palavras “justiça” e “justificativa”, que, embora, possuam a mesma raiz (ius, iuris), quando justificar devia ser um ato que vise a justiça.
Ora, sendo praticamente irrealizável a criação duma lógica para a justiça que possa ser imposta como justificativa ou fundamento do direito, regista-se que, muitas vezes, a escolha de muitos dos valores é arbitrária. Tanto assim é que muitos deles variam de sociedade para sociedade e de tempo para tempo. A obviar a isto, Perelman considera fundamental o conceito de igualdade, pois, através dela, as normas legais concretizam a justiça, independentemente do critério utilizado para o seu estabelecimento. Ou seja, porque os valores utilizados como critério para estabelecimento da norma não decorrerem sempre da racionalidade, mas em grande parte do arbítrio, a aplicação das normas deve basear-se na igualdade e na uniformidade, do que resulta uma justiça bastante formal. Porém, como nem sempre a lei pode ser considerada suficiente como parâmetro de justiça, convoca-se a equidade para contrabalançar o formalismo, equilibrando-o com a caraterística das decisões da equidade que está envolta pelo não formalismo. E torna-se claro que, ao afastar-se do aspeto puramente formal, o juiz distingue, embora de forma subtil, entre aplicação da lei e aplicação da justiça. A isto acrescenta-se um outro elemento, a bondade ou caridade, para os casos em que o abrandamento da lei não é suficiente, devido à imperfeição do sistema de justiça. Nestes termos, o conceito de racionalidade distancia-se do conceito meramente positivista, admitindo que deliberar ou argumentar são também atos do raciocínio e não apenas outros como calcular e deduzir.
No início do século XX, o Movimento para o Direito Livre denuncia as impropriedades da aplicação mecânica da lei, defendendo o livre acesso ao direito e a necessidade de os juízes levarem em conta os factos sociais e os valores da moral, no seu mister de decidir. Com efeito, dada a insuficiência da lei, torna-se necessária a equidade como justiça do caso singular, não podendo a justiça ser aprisionada por uma lei. Segundo Carnelutti, o direito nasce da semente moral lançada na terra da economia, tomando-se o termo economia no sentido original do grego oikos (casa), como um interesse fundamental do homem. Entretanto, como assegura, sem a bondade, a ciência do direito fará crescer a árvore do direito, mas ela não dará os frutos de que os homens precisam. E o seu “Como Nasce o Direito” (3.ª ed. – Campinas/SP: Russell Editores, 2006), lembra que os romanos, ao definirem o jurisconsulto, chamavam-lhe “vir bonus”.
Se partirmos da abordagem contratualista, concebida por Rousseau (apud M. Gerard), a constituição das normas de relações sociais advém da necessidade de regras para estas relações assumindo o papel de regras fundadoras do ordenamento jurídico e da ética com ele concomitante, com base na norma escrita e no costume. Mas, a princípio, Rousseau considerava o homem natural, à margem de considerações éticas e mais exposto à contingência natural que o direciona para a sociedade. Já, para Hobbes (id et ib), é da força que provém o direito de cada um, sendo necessário dominar essa relação de força para pôr fim ao estado de guerra existente. Por isso, nos Estados, o legislador é só o soberano (o rei, na monarquia absoluta, ou a assembleia, na democracia e na aristocracia). Só o Estado prescreve e ordena a observância das regras a que chamamos leis, tanto as que ele promulga como as que valida provindas do costume. E Hobbes entende que, para a manutenção da paz na sociedade, é necessária a renúncia ao direito de todos a todas as coisas, pois o seu exercício acarretaria o permanente estado de guerra, estando implícito o princípio ético da relação social, de que não se devem romper acordos. E o não cumprimento do acordo social é a fonte da injustiça. Porém, Rousseau adverte que, mesmo possuindo o homem, em estado natural, impulsos bons como a piedade pelo semelhante, isso não implica a existência ou a consciência de qualquer relação ética. Por isso, em sua condição original, o homem tem o instinto de autopreservação, cujas ações não são realizadas contra os outros, mas a favor de si próprio.
Para Robles, abordando o problema pela teoria comunicacional do direito, o conceito de constituição é o de elemento mínimo formador do ordenamento jurídico, através do qual se tem conhecimento de quem tem a autoridade para gerar as normas. Assim, utilizando um termo comum a Hobbes e a Rousseau, afirma que, ao determinar quem é o soberano, procede-se ao primeiro ato de comunicação necessário numa sociedade. Segundo Carnelutti (op. cit.), para quem o juízo é anterior à lei, pelo que o chefe se afirma como juiz antes de o ser como criador de leis, devendo, a posteriori, formular a lei com proposições verbais oportunas. E, assim, ficam estabelecidas duas categorias de decisões jurídicas: a extraordenamental ou extrassistémica, relativa à decisão constituinte (chefe ou juízo anterior); e as intraordenamentais ou intrassistémicas, que são exatamente as outras decisões, chamadas de normas constituídas ou leis. E, formado o ordenamento jurídico, é tarefa da Sociologia do Direito pesquisar a inserção social dos seus elementos e as condições sociais da sua existência, investigando inclusivamente o grau de eficácia de determinadas normas, bem como as conceções de justiça e dos valores jurídicos.
Desta visão comunicacional do direito, infere-se a relação da questão ética com os critérios da fundação do ordenamento jurídico, mais precisamente com a escolha ou a imposição do projeto que o poder constituinte manifesta e da sua ampliação através das decisões constituídas, após o momento fundador, o que revela a estreita relação existente entre o direito e a ética.
Na conceção contratualista as ações humanas não se direcionam a qualquer princípio ético, por não serem baseados na ética os comportamentos humanos, mas à autopreservação, seja na barbárie da luta incessante de todos contra todos, seja na explosão do instinto de conservação.
Assim, não há lugar a justificação para rompimento dos princípios, normas ou regras no momento precedente ao contrato social, por não existirem como se entendem hoje. O homem agiria para preservar a vida, sem precisar de se justificar, por inconcebível e ineficaz tal atitude.
Não obstante a inviolabilidade das normas éticas, pode-se discutir a possibilidade de existirem momentos específicos em que a desconsideração de uma regra ética se faz justificável.
Os defensores da conceção hierarquista das normas éticas consideram que há diversas normas éticas universais, mas que nem todas têm a mesma importância intrínseca, existindo momentos em que uma norma universal superior deve ser privilegiada, quando elas entrarem em conflito. Assim, seria justificável mentir para salvar uma vida, pois a boa ação é a que é melhor ou superior intrinsecamente. Posição diversa é a do absolutismo não conflituante, segundo o qual, existindo conflito entre normas, haverá uma terceira alternativa ou uma maneira de cumprir qualquer delas sem desobedecer à outra. Ora, considerando à primeira vista a conceção hierarquista e o absolutismo não conflituante, pode-se ou não justificar uma conduta contrária à norma ética em prol de melhor ou de bem intrinsecamente superior (v. g: justiça). Mas não estão neste caso as atitudes contrárias aos princípios éticos motivadas por sentimentos de vingança, de egoísmo, de autopromoção ou de qualquer outro desse nível.
Enrico Ferri, sustentando no “O Delito Passional na Sociedade Contemporânea” (Ed. Servanda, 2009), a necessidade de desprezar o grau da paixão, na análise dos delitos, para se apurar a sua qualidade, refere que encontrou no cárcere assassinos que cometeram carnificinas hediondas, impelidos pela cupidez, ódio e vingança, e que agiram sob ‘impulso irresistível’. E propõe que o delito passional seja julgado, de acordo com dois critérios: a qualidade dos motivos; e a personalidade do autor – critérios inseparáveis e complementares.
A justificação, para Ferri, está no facto de o motivo ser moralmente aceite ou justo e na condição de se analisar a personalidade do autor, levando em conta o meio em que nasceu, cresceu e agiu – análise pela qual se chegaria à classificação moral e legal do ato criminoso.
Como é de perceber, ética e direito relacionam-se ab ovo, sendo que tal relação ocorre na constituição do ordenamento jurídico, através do seu texto fundador, que, segundo Robles, tem como elemento mínimo definir a quem pertence a autoridade de formar a legislação. Sendo assim, a questão desta escolha já está como um desafio primeiro da ética ao estabelecimento do direito, pois, a partir das conceções aqui utilizadas ou dos princípios evidenciados por ela, tem-se a regra superior a seguir na elaboração da legislação atinente ao ordenamento jurídico.
A receção, na legislação, de justificativas que excluem a ilicitude na prática de determinados atos, advém da possibilidade firmada no texto constituinte do ordenamento jurídico, balizada pelos princípios éticos adotados, e tem uma implicação direta nos conceitos de moralidade e comportamento ético. Torna-se, pois, necessário que a legislação esteja de acordo com os princípios do texto constituinte. Entenda-se aqui o termo “legislação” não só no sentido estrito (lei, decreto-lei, decreto, portaria, despacho…), mas também incluindo o facto de que, ao decidir, o juiz faz legislação, como a faz procurador ao apresentar a sua tese e o defensor no seu mister. Daqui decorre a exigência ética de que os operadores da lei e da justiça atuem no sentido de defender, manter, preservar, cumprir e aprimorar os princípios éticos existentes, sendo que a violação por parte dos operadores das normas é duplamente reprovável, em termos de relação ética, por terem assumido o compromisso institucional de defender, manter e preservar tais normas e por estarem obrigados a cumpri-las, como todos os outros, fora do ou no exercício do seu mister.
Para descobrir as melhores regras de sociedade que convenham às nações, precisar-se-ia, segundo Rousseau (“Do Contrato Social. In Obras Completas. 1.ª ed. – RJ: Editora Globo, 1962), duma inteligência superior, que visse todas as paixões humanas e não participasse de nenhuma delas, não tivesse nenhuma relação com a natureza humana e a conhecesse a fundo, cuja felicidade fosse independente de nós e quisesse dedicar-se a nós, que, almejando a glória distante pudesse trabalhar num século e fruir dela noutro. Enfim, deveria ser altruísta, reconhecendo-se ao serviço de causa nobre, que não poderia macular, desprezando-a em benefício próprio ou de outros, viver sem ambição maior que realizar bem e condignamente a sua tarefa de fazer e tornar viável a justiça. Ora, com tais exigências, esta não parece tarefa para quaisquer pessoas:
O Legislador, sob todos os aspetos, é um homem extraordinário no Estado. (...) Tal ofício, que constitui a república, não pertence à sua constituição, por ser uma função particular e superior que nada tem de comum com o império do humano, pois, se aquele que governa os homens não deve governar as leis, o que governa as leis não deve também governar os homens; de outra forma, as suas leis, instrumentos de paixões, frequentemente não fariam mais do que perpetuar as suas injustiças e jamais ele poderia evitar que pontos de vista particulares alterassem a integridade de sua obra.” (Rousseau, op. cit).
E aqui verifica-se que é tarefa difícil separar, não só de direito, como de facto, as funções dos que, no dizer de Rousseau, governam os homens, daqueles que governam ou fazem as leis.
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É natural imaginarmos que ao direito subjaz considerável gama de regras nascidas de conceções éticas, que, desde que se tornou possível a vida em grupo, abrangem e direcionam o agir consciente das responsabilidades e consequências dos atos que se praticam, quer no quotidiano do lar e da convivência entre amigos, quer no desempenho profissional e no exercício de cargos públicos e de profissões liberais, quer ainda na vida religiosa – ou seja, em todas relações sociais e culturais. Por outro lado, é de salientar que tal agir consciente tem diversos graus de consequência, de menor ou maior alcance, se consideramos a posição e a relação exercidas pelo agente e o conceito que a sociedade faz dele. Assim, atitudes contrárias à ética, nesse sentido, advindas de autoridades responsáveis pela manutenção e vigilância dos seus princípios são mais graves que as de quem não possui tais compromissos institucionais. Dito de outro modo, a responsabilidade institucional de sempre agir com esteio nos princípios éticos deve ser a quinta-essência do comportamento dos operadores do direito. Mas, para tanto, não basta a aplicação racional das normas legais, pois isso não garante, nalgumas circunstâncias, alcançar a justiça, fim último da ética do direito. Com efeito uma decisão apenas baseada num princípio racional pode ser perigosamente contrária à ética e, ipso facto, não realiza a justiça.
Porém, não é exclusividade do direito que os seus operadores ajam pelo padrão ético; apenas são mais iníquas as suas violações, por serem os guardiões ou mantenedores; e, ao contrariarem uma regra ética, fazem-no em detrimento do princípio anterior, que nasce da condição de quem assumiu a incumbência de zelar institucionalmente por todas as outras regras.
Segundo Emmanuel Mounier, que aborda o problema em relação à política, tudo converge para a solidariedade entre teoria e prática, a racionalidade e o agir, importando traçar a “geografia da ação”, a fim de se saber o que deve ser unido e como o deve ser (Mounier, op. cit.). Por outras palavras, há que delinear como realizar a justaposição entre racionalidade e equidade, entre os aspetos da lógica racional, que não podem nem devem ser abstraídos, e a pessoalidade das decisões judiciais. Aduz Mounier que nenhum homem é suficientemente completo para realizar todo o homem, incapacidade que obriga a especializar as ações (daí existirem o técnico, o moralista, o jurista, o médico, o político, o economista, o arquiteto, o engenheiro, etc.). Assim, não é possível “ser tudo ao mesmo tempo: mas a ação, no sentido corrente da palavra, aquela que incide sobre a vida pública, não pode, portanto, sem implicar um desequilíbrio, assumir bases mais estreitas do que o campo que vai do polo político ao polo profético(Mounier, op. cit). Com efeito, o “homem de ação realizado” não despreza essa polaridade, vivendo-a intimamente, através da ação no tempo como polo político e com a consciência do polo profético, com autonomia, interesse no bem do seu povo, obstinação na busca da justiça, abnegação em favor de valores elevados. E este homem não é aqui outra coisa senão o mesmo que vir bonus, entendido como aquele que considera a justiça como alvo dependente da bondade/caridade.
Enfim, as dificuldades colocadas pela ética à necessidade de realização do direito na justiça resumem-se ao desafio de se ter nos homens tanto a ação equilibrada como a visão profética da sua tarefa. Todavia, Mounier pensa que, a maior parte das vezes, o temperamento político que vive na condução e no compromisso e o temperamento profético que vive na meditação e na audácia, não coexistem no mesmo homem. Por isso, o desenvolvimento dos aspetos pessoais, culturais e sociais (não só do racional) conexos com o direito, releva para a concretização da justiça em cooperação, pois neles se firmam os princípios e as normas éticas de valor elevado.
(cf Mounier, op. cit; e M. Gerard, “Ética e direito: do racionalismo ao personalismo”, in Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2160, 31 maio 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12845>. Acesso em: 14 de abril de 2020)
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A concluir
Pergunto-me se, em 1993, o PS de António Guterres, ao escolher como slogan de campanha para as eleições autárquicas, tinha em consideração a teoria do personalismo ou se todos os que falam da vertente fortemente personalista da Constituição e de algumas leis de bases têm em conta esta doutrina. Se têm, porque é que os decisores deixam para trás tantas pessoas, seja no acesso à habitação (os preços das casas ou a rendas estão a nível absurdo para as carteiras dos portugueses), seja no acesso à saúde (a Covid-19 mostrou as fragilidades do SNS, deixando as outras doenças para futuro), seja no aceso à segurança social (muitos cidadãos têm pensões de miséria e o número do sem-abrigo é grande).
Um país com tantas desigualdades, uma floresta de leis e leizinhas e uma justiça que pouco funciona – quer na investigação, quer na produção de prova em juízo, quer nas condições do cumprimento de penas, quer ainda no combate à corrupção – pode arrogar-se à vaidade de ter um sistema personalista com uma sociedade civil sadia?   
2020.04.14 – Louro de Carvalho

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