Em tempos e reiteradas vezes, manifestei a minha discordância
do facto de o Presidente da República se escorar no estatuto académico de
professor de direito público para opinar a tempo e a destempo sobre qualquer
diploma legal ainda na forja ou depois, podendo a priori condicionar, ou a
posteriori julgar, a atividade do Parlamento e do Governo, ou até
substituir-se ao veredicto do Tribunal Constitucional sobre o juízo da
constitucionalidade ou não dos decretos do Parlamento e/ou do Governo que lhe
são remetidos para promulgação. Agora, cabe-me criticar o Primeiro-Ministro por
ter feito reparo público aos constitucionalistas que veem
inconstitucionalidades na futura decisão do Governo de manter, por força da
declaração de calamidade, as restrições vigentes durante o estado de emergência
após o termo deste, prometendo a supressão gradual dessas medidas restritivas e
avisando de que se voltará atrás se as condições da pandemia o justificarem –
avaliação a fazer de 15 em 15 dias.
Diz Costa que também é jurista e sabe que os juristas são hábeis em ver
problemas em tudo, mas que a vida não é assim e as medidas restritivas têm de ser
aplicadas sempre que for preciso.
Sem contestar as suas razões, devo dizer que o decisor político, para
decidir com segurança e utilidade pública – ou seja, ao serviço o bem comum –,
deve ouvir com atenção, sem se fiar na sua capacidade académica pessoal e
profissional, todos os especialistas (também os
juristas) que
possam contribuir para que a decisão a tomar seja o mais justa e adequada
possível.
***
Raquel
Brízida Castro, questionando a utilidade do estado de emergência se o Governo
pudesse fazer o mesmo ao abrigo da LBPC (Lei de Bases da Proteção Civil), entende que o Governo, por não pode exemplo, limitar
a liberdade de circulação nos termos do estado de exceção e, fazendo-o,
estaríamos face a verdadeira fraude à Constituição. Também diz que o estado de
calamidade é o grau mais elevado decretado ao abrigo da lei da LBPC (mas ainda
em plena normalidade constitucional), aplicando-se
a determinado evento, com circunscrição geográfica e temporal muito limitada,
como uma catástrofe natural ou um incêndio, que tenha tido determinados
efeitos, como elevados prejuízos naturais e vítimas. Mas não faz sentido neste
contexto de pandemia, a não ser que sejam vários os estados de calamidade
declarados.
Tendo em
conta que o estado de calamidade permite limites à circulação, mas a lógica da sua
aplicação é a delimitação geográfica, não lhe parece que o Governo possa, ao abrigo desta lei,
limitar o número de pessoas presentes num restaurante, cinema ou espaço público.
E, para haver uma cerca sanitária, por exemplo, tem de haver uma grave ameaça à
saúde pública, mas até o próprio conceito de cerca sanitária é incerto
porque não existe uma lei de Saúde Pública.
Só esquece
que está em vigor a Lei n.º
81/2009, de 21 de agosto, que “institui um sistema de
vigilância em saúde pública, que identifica situações de risco, recolhe,
atualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças transmissíveis e
outros riscos em saúde pública, bem como prepara planos de contingência face a
situações de emergência ou tão graves como de calamidade pública”. O que acontece é que
houve uma proposta de lei do Governo entrada no Parlamento cujo processo
legislativo não foi concluído na XIII legislatura, pelo que caducou.
No caso das
praias, como ressalva, a aplicação de restrições dependerá de vários fatores,
como o “tipo de restrições, a localização, se é uma zona de maior ameaça, ou se
há mais ou menos infetados”. Depois, há linhas vermelhas que não cruzáveis.
Assim, como opina, “em estado de calamidade o Governo não pode impedir o
funcionamento de lojas ou de restaurantes, nem fechar aeroportos, nem fazer
controlo de fronteiras; e a circulação entre concelhos também só pode ser
impedida se for decretada uma cerca sanitária em determinado concelho”. Por
outro lado, segundo a constitucionalista, não
pode ocorrer rastreamento de cidadãos, internamento compulsivo de suspeitos e
acesso a metadados em normalidade nem em estado de exceção.
Jorge
Miranda, referindo que, nos termos da LBPC, a situação de calamidade prevê a tomada de algumas medidas por
parte do Governo, a nível local, regional ou nacional, frisa
que, ao invés do estado de emergência, que permite a suspensão excecional
e temporária de alguns direitos e garantias essenciais, “não prevê qualquer
corte de liberdades”. Depois, considerando que é de prever que a situação
sanitária continue e se se entender que já não se justifica adotar determinadas
medidas rigorosas de delimitação das liberdades (de locomoção, abertura de unidades
comerciais, teatros, universidades, etc.), estaremos
em calamidade, não em emergência. A explicar que emergência e calamidade “são
duas realidades diferentes”, adverte que “o estado de emergência é uma figura
jurídica e a calamidade uma situação de facto”, ou seja, o “estado de
calamidade é uma situação menos grave do que o estado de emergência”. E
acrescenta:
“A situação de calamidade pode justificar
determinadas medidas de resposta
por parte do Governo em relação a certas situações, e que podem até passar por
limitações à circulação de pessoas, mas não ao ponto de haver limitação das
liberdades como acontece com o estado de emergência”.
Paulo Otero
observa que a situação de calamidade não fora
pensada para o tipo de problemas que o surto de coronavírus levanta, mas
para situações como tremores de terra, incêndios e epidemia localizada; e não
para “difusão ampla geral e generalizada, com riscos especiais para
determinadas faixas etárias ou sociais”. Esclarecendo que “os poderes de
intervenção são muito mais reduzidos, sobretudo na área dos direitos
fundamentais, especificamente no confinamento de pessoas”, antevê que o
isolamento profilático de idosos, contra a sua vontade, passe a ser um
problema. Com efeito, há possibilidade de limitar a circulação e a
permanência de pessoas, mas num espaço diferente, que tem a ver com a
circulação numa área geográfica, não se tratando de “coarctar, restringir,
limitar ou impor a solução do confinamento nas suas casas”. E adianta:
“A declaração de calamidade pode recomendar
que as pessoas permaneçam em casa, mas não tem força suficiente para
impor. E, por isso mesmo, em caso de
desobediência, ninguém pode ser sancionado por isso. Ninguém pode
ser sancionado por não seguir uma recomendação, mas uma pessoa pode ser sancionada
por violar uma proibição.”.
E,
ressalvando que no âmbito da LBPC estão previstos crimes de desobediência, mas
não a “possibilidade de impor a obediência ao confinamento”, especifica:
“Os limites à circulação, nos moldes em que
aconteceu nos incêndios de 2017, são possíveis: não se pode circular na estrada
x ou na y; ou não se pode entrar na povoação y. (…) Também podem ser aplicadas
cercas de segurança e não se poder entrar numa praia ou num município. Agora
tenho algumas dúvidas sobre se as cercas de segurança se podem aplicar a todo o
território ou ao nível das fronteiras, por exemplo. Até admito a hipótese de
uma cerca de segurança sanitária, no limite, em todo o território nacional, mas
a circulação de pessoas entre fronteiras não pode ser impedida.”.
No atinente
às praias, pergunta se se pode proibir a
entrada nalgumas ou limitar o número de pessoas ou guardar as distâncias e diz
que “uma coisa é interditar ou condicionar o acesso, circulação ou
permanência de pessoas num cenário circunscrito (…), outra é fazer o mesmo num
cenário de ampla difusão generalizada de uma situação de contágio”.
Vital Moreira julga inegável que “as pessoas mais velhas são muito mais
vulneráveis à pandemia”, pelo que devem tomar muitos cuidados extra para não
serem infetadas, mas que “isso não exige medidas extremas de isolamento social”.
Logo, não vê motivo para os idosos não ativos não se poderem deslocar ao café
do bairro ou à farmácia, observadas as regras de proteção estabelecidas, nem
para os idosos ativos não se deslocarem, observados os mesmos cuidados, ao seu
local de trabalho, como não faz sentido “que uns e outros não possam ir ao
parque mais próximo em exercício físico”. Depois, sentencia que “não se podem
condenar os idosos a ‘morrerem da cura’ por prolongado definhamento em casa,
tanto mais que a pandemia não tem data de extinção. Para dizer tudo isto,
ancora-se no “princípio
essencial do Estado de direito constitucional” da “proibição de excessos
restritivos dos direitos pessoais, indo além do necessário”, “mesmo em casos de
restrição de direitos em situações de emergência”. E infere:
“A liberdade de movimento, ou seja,
de não estar confinado a um lugar, mesmo em casa, constitui um direito
essencial numa sociedade livre. Havendo que defender o direito à saúde, próprio
e alheio, justifica-se a restrição da liberdade de circulação, mas não o seu
aniquilamento, que a Constituição, aliás, proíbe.”.
Por isso, alvitra, “nada pode justificar a condenação dos idosos a uma
espécie de ‘prisão domiciliária’ por via legislativa ou administrativa, pois
“ainda não e proibido ser velho”.
Para o estado de calamidade, cuja decisão cabe ao Governo, apresenta as
seguintes coordenadas jurídicas: “só pode ser instituído em situações
suscetíveis de mobilizar a proteção civil” (restando saber se a
pandemia é dessas situações); “não pode permitir fazer aquilo que só o estado de emergência consente” (caso da proibição de internamento compulsivo, salvo por anomalia psíquica,
da inviolabilidade da habitação, da liberdade de culto ou do direito à greve).
Refere que, mesmo no tocante a direitos fundamentais restringíveis em
situação de normalidade constitucional, como a liberdade de circulação, o
estado de calamidade não pode restringi-los senão nos termos do art.º 18.º da
CRP, designadamente com estrito respeito pelos princípios da necessidade e da
proporcionalidade e da “intocabilidade do ‘núcleo essencial’ de cada direito, o
que não sucede com a medida de confinamento doméstico obrigatório”.
Distinguindo entre restrição do exercício e suspensão
do exercício, adverte que “o estado de calamidade administrativo não pode
fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial,
pode fazer, ou seja, suspender direitos”.
Sobre a declaração de Costa de que tem de ser assegurado o “afastamento entre as pessoas por causa da
pandemia, diga o disser a Constituição”, o constitucionalista diz não
conhecer “nenhuma opinião fundamentada segundo a qual a norma de distanciamento
social poderia ser contrária à Constituição”, mas avisa que, “num Estado de
direito constitucional, o que a Constituição diz importa – e muito”. Ora,
havendo quem sustente que “o internamento compulsivo de infetados, mesmo fora
do estado de emergência, tem cobertura constitucional no direito à proteção da
saúde garantido no art.º 64.º da Constituição”, Vital Moreira, aduz que, visto
que a referida norma não faz qualquer referência a medidas de tal gravidade, o
art.º 27.º, sobre o direito à liberdade, “enuncia expressamente os casos em que é permitida a privação da liberdade
pessoal, incluindo o internamento por causa de anomalia psíquica” (apesar de deste também se poder ‘deduzir’ do direito à segurança). Se fomos a entender o art.º 64.º
até ao limite, poder-se-iam justificar todas as
restrições sem necessidade de nenhum estado de emergência.
Entretanto,
alguns constitucionalistas, como Reis Novais, afiançam não haver qualquer
inconstitucionalidade no que o Governo diz vir a estabelecer ou que se mantêm
as mesmas dúvidas de constitucionalidade inerentes às medidas decretadas no
estado de emergência.
***
A LBPC
prevê que a situação de calamidade seja
declarada pelo Governo (art.º 9.º), através de
resolução do Conselho de Ministros (não pelo Presidente da República,
como no estado de emergência) em caso de existência ou iminência de
“acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no
espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o
ambiente” ou de acidente grave ou série de acidentes graves suscetíveis
de provocarem elevados prejuízos materiais e até vítimas, afetando intensamente
as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do
território nacional” (cf art.º 3.º e art.º 21.º).
A situação
de calamidade não tem prazo máximo de duração (ao invés do que acontece com o
estado de emergência, de revisão obrigatória a cada 15 dias) e prevê a “mobilização
civil de pessoas, por períodos de tempo determinados”, a “fixação, por razões
de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à
circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos”, como
prevê “fixação de cercas sanitárias e de segurança” e “racionalização da
utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento
de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade” (cf art.º
21.º).
Por mim, não
vejo que, pela leitura da LBPC, uma resolução do Conselho de Ministros se fique
pelas recomendações, dado que a lei lhe dá força preceptiva. Aliás, quando as
resoluções têm em vista “recomendar”, referem-no expressamente. E o art.º 6.º,
ao equacionar o dever de cooperação dos cidadãos, estipula que “a desobediência e a resistência
às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de
alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e
as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e
máximo” (n.º
4).
Por sua vez,
o art.º 15.º da Lei n.º
81/2009, de 21 de agosto, estabelece o plano de ação nacional de contingência
das epidemias que, em especial, contempla, os seguintes
procedimentos: prevenção e controlo a aplicar em todo o território nacional;
comunicação entre profissionais de saúde e populações; redução de riscos
ambientais potenciadores da disseminação; condições de exceção quanto à
necessidade de abate de animais e arranque de espécies vegetais; condições de
segurança para o armazenamento, o transporte e a distribuição de produtos
biológicos e medicamentos de acordo com as normas nacionais e internacionais
aplicáveis.
Não se vê razão, face à LBPC, para fraude à Constituição ou para
inimputação do crime de desobediência (até há a
responsabilidade disciplinar de funcionários e gestores). Os constitucionalistas perdem-se em distinções
e esquecem que a CRP, não prevendo tudo, pressupõe a equidade ou “ipieíkeia” na aplicação às circunstâncias
e que “para grandes males grandes remédios”. E Vital Moreira, apesar de garantista,
até deduz do art.º 64.º da CRP a lógica da segurança.
Todavia, considerada a gravidade da situação pandémica, seria melhor
observar o estipulado no art.º 18.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto:
“Nos casos em que a gravidade o justifique e tendo em conta os
mecanismos preventivos e de reação previstos na Lei de Bases de Proteção Civil,
o Governo apresenta, após proposta do CNSP (Conselho Nacional de Saúde
Pública), baseada em relatório da CCE (Comissão Coordenadora de Emergência), ao Presidente da República,
documento com vista à declaração do estado de emergência, por calamidade
pública, nos termos da Constituição”.
Apesar de não ver inconveniente na ação do Governo em matéria de calamidade,
a solução dissiparia as dúvidas, o Governo teria autoridade reforçada e
exigir-se-ia maior fiscalização da parte do Parlamento e podia abrir-se com segurança
e cautela, em prol das garantias pessoais, o levantamento de restrições. Com efeito,
o confinamento de idosos não infetados foi excessivo e talvez até nocivo. Porque
não quer o Presidente nova edição do estado de emergência? Para não se confrontar
outra vez com os deputados e com os agentes económicos. Será isso o melhor?
Costa deve ouvir os especialistas, inclusive os juristas, e ponderar. Não diga
que é jurista, pois não está provado que um governo de jurista seja melhor ou
pior que os outros!
2020.04.28 – Louro de Carvalho
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