terça-feira, 28 de abril de 2020

Não são os lauréis académicos credencial do decisor político


Em tempos e reiteradas vezes, manifestei a minha discordância do facto de o Presidente da República se escorar no estatuto académico de professor de direito público para opinar a tempo e a destempo sobre qualquer diploma legal ainda na forja ou depois, podendo a priori condicionar, ou a posteriori julgar, a atividade do Parlamento e do Governo, ou até substituir-se ao veredicto do Tribunal Constitucional sobre o juízo da constitucionalidade ou não dos decretos do Parlamento e/ou do Governo que lhe são remetidos para promulgação. Agora, cabe-me criticar o Primeiro-Ministro por ter feito reparo público aos constitucionalistas que veem inconstitucionalidades na futura decisão do Governo de manter, por força da declaração de calamidade, as restrições vigentes durante o estado de emergência após o termo deste, prometendo a supressão gradual dessas medidas restritivas e avisando de que se voltará atrás se as condições da pandemia o justificarem – avaliação a fazer de 15 em 15 dias.
Diz Costa que também é jurista e sabe que os juristas são hábeis em ver problemas em tudo, mas que a vida não é assim e as medidas restritivas têm de ser aplicadas sempre que for preciso.
Sem contestar as suas razões, devo dizer que o decisor político, para decidir com segurança e utilidade pública – ou seja, ao serviço o bem comum –, deve ouvir com atenção, sem se fiar na sua capacidade académica pessoal e profissional, todos os especialistas (também os juristas) que possam contribuir para que a decisão a tomar seja o mais justa e adequada possível.
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Raquel Brízida Castro, questionando a utilidade do estado de emergência se o Governo pudesse fazer o mesmo ao abrigo da LBPC (Lei de Bases da Proteção Civil), entende que o Governo, por não pode exemplo, limitar a liberdade de circulação nos termos do estado de exceção e, fazendo-o, estaríamos face a verdadeira fraude à Constituição. Também diz que o estado de calamidade é o grau mais elevado decretado ao abrigo da lei da LBPC (mas ainda em plena normalidade constitucional), aplicando-se a determinado evento, com circunscrição geográfica e temporal muito limitada, como uma catástrofe natural ou um incêndio, que tenha tido determinados efeitos, como elevados prejuízos naturais e vítimas. Mas não faz sentido neste contexto de pandemia, a não ser que sejam vários os estados de calamidade declarados.
Tendo em conta que o estado de calamidade permite limites à circulação, mas a lógica da sua aplicação é a delimitação geográfica, não lhe parece que o Governo possa, ao abrigo desta lei, limitar o número de pessoas presentes num restaurante, cinema ou espaço público. E, para haver uma cerca sanitária, por exemplo, tem de haver uma grave ameaça à saúde pública, mas até o  próprio conceito de cerca sanitária é incerto porque não existe uma lei de Saúde Pública.
Só esquece que está em vigor a Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, que “institui um sistema de vigilância em saúde pública, que identifica situações de risco, recolhe, atualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças transmissíveis e outros riscos em saúde pública, bem como prepara planos de contingência face a situações de emergência ou tão graves como de calamidade pública”. O que acontece é que houve uma proposta de lei do Governo entrada no Parlamento cujo processo legislativo não foi concluído na XIII legislatura, pelo que caducou.
No caso das praias, como ressalva, a aplicação de restrições dependerá de vários fatores, como o “tipo de restrições, a localização, se é uma zona de maior ameaça, ou se há mais ou menos infetados”. Depois, há linhas vermelhas que não cruzáveis. Assim, como opina, “em estado de calamidade o Governo não pode impedir o funcionamento de lojas ou de restaurantes, nem fechar aeroportos, nem fazer controlo de fronteiras; e a circulação entre concelhos também só pode ser impedida se for decretada uma cerca sanitária em determinado concelho”. Por outro lado, segundo a constitucionalista, não pode ocorrer rastreamento de cidadãos, internamento compulsivo de suspeitos e acesso a metadados em normalidade nem em estado de exceção.
Jorge Miranda, referindo que, nos termos da LBPC, a situação de calamidade prevê a tomada de algumas medidas por parte do Governo, a nível local, regional ou nacional, frisa que, ao invés do estado de emergência, que permite a suspensão excecional e temporária de alguns direitos e garantias essenciais, “não prevê qualquer corte de liberdades”. Depois, considerando que é de prever que a situação sanitária continue e se se entender que já não se justifica adotar determinadas medidas rigorosas de delimitação das liberdades (de locomoção, abertura de unidades comerciais, teatros, universidades, etc.), estaremos em calamidade, não em emergência. A explicar que emergência e calamidade “são duas realidades diferentes”, adverte que “o estado de emergência é uma figura jurídica e a calamidade uma situação de facto”, ou seja, o “estado de calamidade é uma situação menos grave do que o estado de emergência”. E acrescenta:
A situação de calamidade pode justificar determinadas medidas de resposta por parte do Governo em relação a certas situações, e que podem até passar por limitações à circulação de pessoas, mas não ao ponto de haver limitação das liberdades como acontece com o estado de emergência”.
Paulo Otero observa que a situação de calamidade não fora pensada para o tipo de problemas que o surto de coronavírus levanta, mas para situações como tremores de terra, incêndios e epidemia localizada; e não para “difusão ampla geral e generalizada, com riscos especiais para determinadas faixas etárias ou sociais”. Esclarecendo que “os poderes de intervenção são muito mais reduzidos, sobretudo na área dos direitos fundamentais, especificamente no confinamento de pessoas”, antevê que o isolamento profilático de idosos, contra a sua vontade, passe a ser um problema. Com efeito, há possibilidade de limitar a circulação e a permanência de pessoas, mas num espaço diferente, que tem a ver com a circulação numa área geográfica, não se tratando de “coarctar, restringir, limitar ou impor a solução do confinamento nas suas casas”. E adianta:
A declaração de calamidade pode recomendar que as pessoas permaneçam em casa, mas não tem força suficiente para impor. E, por isso mesmo, em caso de desobediência, ninguém pode ser sancionado por isso. Ninguém pode ser sancionado por não seguir uma recomendação, mas uma pessoa pode ser sancionada por violar uma proibição.”.
E, ressalvando que no âmbito da LBPC estão previstos crimes de desobediência, mas não a “possibilidade de impor a obediência ao confinamento”, especifica:
Os limites à circulação, nos moldes em que aconteceu nos incêndios de 2017, são possíveis: não se pode circular na estrada x ou na y; ou não se pode entrar na povoação y. (…) Também podem ser aplicadas cercas de segurança e não se poder entrar numa praia ou num município. Agora tenho algumas dúvidas sobre se as cercas de segurança se podem aplicar a todo o território ou ao nível das fronteiras, por exemplo. Até admito a hipótese de uma cerca de segurança sanitária, no limite, em todo o território nacional, mas a circulação de pessoas entre fronteiras não pode ser impedida.”.
No atinente às praias, pergunta se se pode proibir a entrada nalgumas ou limitar o número de pessoas ou guardar as distâncias e diz que “uma coisa é interditar ou condicionar o acesso, circulação ou permanência de pessoas num cenário circunscrito (…), outra é fazer o mesmo num cenário de ampla difusão generalizada de uma situação de contágio”.
Vital Moreira julga inegável que “as pessoas mais velhas são muito mais vulneráveis à pandemia”, pelo que devem tomar muitos cuidados extra para não serem infetadas, mas que “isso não exige medidas extremas de isolamento social”. Logo, não vê motivo para os idosos não ativos não se poderem deslocar ao café do bairro ou à farmácia, observadas as regras de proteção estabelecidas, nem para os idosos ativos não se deslocarem, observados os mesmos cuidados, ao seu local de trabalho, como não faz sentido “que uns e outros não possam ir ao parque mais próximo em exercício físico”. Depois, sentencia que “não se podem condenar os idosos a ‘morrerem da cura’ por prolongado definhamento em casa, tanto mais que a pandemia não tem data de extinção. Para dizer tudo isto, ancora-se no “princípio essencial do Estado de direito constitucional” da “proibição de excessos restritivos dos direitos pessoais, indo além do necessário”, “mesmo em casos de restrição de direitos em situações de emergência”. E infere:
A liberdade de movimento, ou seja, de não estar confinado a um lugar, mesmo em casa, constitui um direito essencial numa sociedade livre. Havendo que defender o direito à saúde, próprio e alheio, justifica-se a restrição da liberdade de circulação, mas não o seu aniquilamento, que a Constituição, aliás, proíbe.”.
Por isso, alvitra, “nada pode justificar a condenação dos idosos a uma espécie de ‘prisão domiciliária’ por via legislativa ou administrativa, pois “ainda não e proibido ser velho”. 
Para o estado de calamidade, cuja decisão cabe ao Governo, apresenta as seguintes coordenadas jurídicas: “só pode ser instituído em situações suscetíveis de mobilizar a proteção civil” (restando saber se a pandemia é dessas situações); “não pode permitir fazer aquilo que só o estado de emergência consente” (caso da proibição de internamento compulsivo, salvo por anomalia psíquica, da inviolabilidade da habitação, da liberdade de culto ou do direito à greve).
Refere que, mesmo no tocante a direitos fundamentais restringíveis em situação de normalidade constitucional, como a liberdade de circulação, o estado de calamidade não pode restringi-los senão nos termos do art.º 18.º da CRP, designadamente com estrito respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade e da “intocabilidade do ‘núcleo essencial’ de cada direito, o que não sucede com a medida de confinamento doméstico obrigatório”.
Distinguindo entre restrição do exercício e suspensão do exercício, adverte que “o estado de calamidade administrativo não pode fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial, pode fazer, ou seja, suspender direitos”.
Sobre a declaração de Costa de que tem de ser assegurado o “afastamento entre as pessoas por causa da pandemia, diga o disser a Constituição”, o constitucionalista diz não conhecer “nenhuma opinião fundamentada segundo a qual a norma de distanciamento social poderia ser contrária à Constituição”, mas avisa que, “num Estado de direito constitucional, o que a Constituição diz importa – e muito”. Ora, havendo quem sustente que “o internamento compulsivo de infetados, mesmo fora do estado de emergência, tem cobertura constitucional no direito à proteção da saúde garantido no art.º 64.º da Constituição”, Vital Moreira, aduz que, visto que a referida norma não faz qualquer referência a medidas de tal gravidade, o art.º 27.º, sobre o direito à liberdade, “enuncia expressamente os casos em que é permitida a privação da liberdade pessoal, incluindo o internamento por causa de anomalia psíquica” (apesar de deste também se poder ‘deduzir’ do direito à segurança). Se fomos a entender o art.º 64.º até ao limite, poder-se-iam justificar todas as restrições sem necessidade de nenhum estado de emergência.
Entretanto, alguns constitucionalistas, como Reis Novais, afiançam não haver qualquer inconstitucionalidade no que o Governo diz vir a estabelecer ou que se mantêm as mesmas dúvidas de constitucionalidade inerentes às medidas decretadas no estado de emergência.
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A LBPC prevê que a situação de calamidade seja declarada pelo Governo (art.º 9.º), através de resolução do Conselho de Ministros (não pelo Presidente da República, como no estado de emergência) em caso de existência ou iminência de “acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente” ou de acidente grave ou série de acidentes graves suscetíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e até vítimas, afetando intensamente as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do território nacional” (cf art.º 3.º e art.º 21.º).
A situação de calamidade não tem prazo máximo de duração (ao invés do que acontece com o estado de emergência, de revisão obrigatória a cada 15 dias) e prevê a “mobilização civil de pessoas, por períodos de tempo determinados”, a “fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos”, como prevê “fixação de cercas sanitárias e de segurança” e “racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade” (cf art.º 21.º).
Por mim, não vejo que, pela leitura da LBPC, uma resolução do Conselho de Ministros se fique pelas recomendações, dado que a lei lhe dá força preceptiva. Aliás, quando as resoluções têm em vista “recomendar”, referem-no expressamente. E o art.º 6.º, ao equacionar o dever de cooperação dos cidadãos, estipula que “a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo” (n.º 4).     
Por sua vez, o art.º 15.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, estabelece o plano de ação nacional de contingência das epidemias que, em especial, contempla, os seguintes procedimentos: prevenção e controlo a aplicar em todo o território nacional; comunicação entre profissionais de saúde e populações; redução de riscos ambientais potenciadores da disseminação; condições de exceção quanto à necessidade de abate de animais e arranque de espécies vegetais; condições de segurança para o armazenamento, o transporte e a distribuição de produtos biológicos e medicamentos de acordo com as normas nacionais e internacionais aplicáveis.
Não se vê razão, face à LBPC, para fraude à Constituição ou para inimputação do crime de desobediência (até há a responsabilidade disciplinar de funcionários e gestores). Os constitucionalistas perdem-se em distinções e esquecem que a CRP, não prevendo tudo, pressupõe a equidade ou “ipieíkeia” na aplicação às circunstâncias e que “para grandes males grandes remédios”. E Vital Moreira, apesar de garantista, até deduz do art.º 64.º da CRP a lógica da segurança.  
Todavia, considerada a gravidade da situação pandémica, seria melhor observar o estipulado no art.º 18.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto:
Nos casos em que a gravidade o justifique e tendo em conta os mecanismos preventivos e de reação previstos na Lei de Bases de Proteção Civil, o Governo apresenta, após proposta do CNSP (Conselho Nacional de Saúde Pública), baseada em relatório da CCE (Comissão Coordenadora de Emergência), ao Presidente da República, documento com vista à declaração do estado de emergência, por calamidade pública, nos termos da Constituição”.
Apesar de não ver inconveniente na ação do Governo em matéria de calamidade, a solução dissiparia as dúvidas, o Governo teria autoridade reforçada e exigir-se-ia maior fiscalização da parte do Parlamento e podia abrir-se com segurança e cautela, em prol das garantias pessoais, o levantamento de restrições. Com efeito, o confinamento de idosos não infetados foi excessivo e talvez até nocivo. Porque não quer o Presidente nova edição do estado de emergência? Para não se confrontar outra vez com os deputados e com os agentes económicos. Será isso o melhor?
Costa deve ouvir os especialistas, inclusive os juristas, e ponderar. Não diga que é jurista, pois não está provado que um governo de jurista seja melhor ou pior que os outros!   
2020.04.28 – Louro de Carvalho

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