Em virtude
da continuação do confinamento decorrente da pandemia do novo corona vírus, um
pouco por todo o mundo as celebrações comemorativas do domingo da entrada de
Jesus em Jerusalém e da Paixão decorreram dentro dos templos, nomeadamente sés
catedrais e igrejas paroquiais, sem a participação física de povo, que foi
instado a permanecer em casa e a unir-se em espírito e pelos meios de comunicação
a alguma das realizações celebrativas, bem como a fazer a comemoração em
família. No entanto, muitas revestiram-se de grande dignidade litúrgica e
espiritual com o celebrante e demais ministros ordenados devidamente
paramentados e os ministros laicais em boa forma nas leituras, oração universal
e canto litúrgico sustentado em música instrumental. De ramos a aclamar Jesus
apenas mínimas amostras.
Segui a celebração
que decorreu na igreja da paróquia do Parque das Nações, sob a presidência de
Dom Américo Aguiar, Bispo auxiliar de Lisboa, e a ela me reporto nesta
reflexão. O prelado olhou o templo vazio, mas deu-o como repleto de povo que
ouve e fala ao mundo a modos da continuação do que foi a EXPO 98 em mensagem
universal.
O comentário
homilético partiu das asserções do servo sofrente (vd
Is 50,4-7):
“O Senhor deu-me a graça de falar como um
discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. (…) Não resisti nem
recuei um passo. (…) O Senhor Deus veio em meu auxílio e, por isso, não
fiquei envergonhado; tornei o meu
rosto duro como pedra, e sei que
não ficarei desiludido.”.
Assim,
desde logo foi clarificado que, sendo discípulos, temos que saber levar uma
palavra de alento a tantos e tantas que dela precisam neste momento. E foram
mencionados tantos e tantas que estão na linha da frente revelando a solicitude
de Deus a tratar dos doentes, a zelar pela segurança de todos, a acionar a proteção
civil, a tentar descobrir vacinas e medicamentos, a fabricar material médico, a
produzir e transportar bens de que todos precisamos, a estabelecer normas de
conduta, a informar e tranquilizar aqueles e aquelas que estão em casa. Obviamente
que uma especial atenção do orador se dirigiu para os que sofrem a doença em hospital,
casa, lar de idosos, prisão, para as pessoas que deles cuidam, bem como para
todos os que têm a obrigação de obedecer às autoridades ficando em casa, apenas
se deslocando nas condições e para os fins estabelecidos na legislação de emergência.
Depois, os discípulos da esperança, os discípulos de Cristo sabem obedecer em
prol do bem de todos, sem a procura de protagonismos, mas com a busca da
eficiência e da eficácia. E sabem que Deus providenciará: esta provação vai
terminar e nós havemos de nos reencontrar para falarmos da forma como a encarámos.
Por outro
lado, Dom Américo Aguiar, tendo em conta a proclamação da Paixão segundo São
Mateus, na sua forma longa (Mt 26,26,14 – 27,66), desafiou-nos a que nos coloquemos
no papel de cada uma das personagens deste Evangelho, porque efetivamente temos
desempenhado os seus papéis. Quantas vezes não lavamos as mãos como Pilatos
descartando a nossa responsabilidade sobre o que acontece aos outros, mesmo
quando está em jogo a sua vida, saúde e bem-estar? Como temos sido afoitos como
Pedro a seguir Jesus ou, envergonhados, negando-O? Como temos desempenhado o
papel de Judas traindo o Mestre com nossos erros de hipocrisia, traição e ânsia
de dinheiro? Quantas vezes preferimos como aquela multidão Barrabás em vez de
Jesus e pedimos ou desejamos a morte Dele nos irmãos e irmãs que sofrem, que
são explorados, espezinhados ou descartados? Quantas vezes nos sentimos abandonados
por Deus, sem razão? Quantas vezes fugimos ou observamos os acontecimentos de
longe? Como somos ágeis em escarnecer? Porém, também somos capazes de fazer
como o cireneu ajudando o outro a carregar a sua cruz, como a Verónica a fazer
gesto de proximidade ao caminhante em dor ou como José de Arimateia recolhendo
o corpo de quem está inanimado como o Cristo descido da cruz!
E Dom Américo
instou à revisitação de três lugares: Getsémani, tribunal romano e Gólgota.
No Getsémani,
podemos ver o contraste entre Jesus que, sofrendo por antecipação a dor que
estava para chegar, orava ao Pai e assumia inteiramente a vontade do Pai, e os três
discípulos que, apesar de desafiados por Jesus a vigiar e a orar para não
entrarem em tentação, nem vigiavam nem rezavam: dormiam. E Jesus concluía: “o espírito está pronto, mas a carne é fraca”
– o que todos nós experimentamos na vida. Ora, portanto, é preciso invocar o perdão
de Deus pelos nossos erros derivados da fraqueza da carne (ou
pela malícia por vezes refinada)
e rogar insistentemente a ajuda de Deus para que a prontidão do espírito
prevaleça.
No tribunal
romano, nem parecia que no domingo a multidão aclamara entusiasticamente Jesus.
Agora, a multidão (instigada) não se contenta com ver Jesus
flagelado e coroados de espinhos: quer a crucifixão, quer mesmo a morte de
Jesus, prefere que Pilatos solte Barrabás e crucifique o nazareno ficando o seu
sangue “sobre nós e nossos filhos”. Quantas vezes os cristãos, por ação ou por
omissão, pedem a morte em vez da vida. E vê-se: continuam os assassinatos, as torturas,
as agressões, os espezinhamentos, os abusos sexuais, as cenas de violência doméstica
e do namoro, as migrações forçadas, as guerras, o tráfico de armas, droga,
órgãos e pessoas, a privação de alimentos e de assistência médica e medicamentosa,
a negação da proteção social…
“Tinham-No entregado por inveja”. Também
hoje, entre os discípulos de Cristo, a tentação da inveja é frequente. E passa
pela cobiça dos bens – materiais e culturais ou espirituais de que o outro dispõe,
mas sobretudo pela recusa em estar triste com quem está triste e em alegrar-se
com quem está contente.
No Gólgota,
Cristo é crucificado pelos algozes, que se deram por satisfeitos por terem cumprido
ordens e repartido entre si os despojos da vítima. Enquanto Jesus lançava o
lamento pelo abandono que sentiu do Pai, outros escarneciam e desafiavam-no a
fazer o milagre da sua salvação para mostrar que é o Messias. Como nos podemos
rever no sentimento de que Deus nos abandona, o que não é verdade, naquele cumprimento
acrítico do cumprimento de ordens, mesmo quando está em jogo a vida e o bem dos
outros, a troco de míseras recompensas! E como os escarnecemos ou os desafiamos
a mostrarem o que valem para os aceitarmos!
Mas o
Gólgota apresenta-nos Nicodemos, o que foi feito discípulo de Jesus, que
requisita o corpo de Jesus para lhe dar sepultura condigna, tal como nos mostra
o centurião e os que com ele guardavam Jesus a exclamar: “Este era
verdadeiramente Filho de Deus”.
O Gólgota
é, pois, o lugar onde se aprende o acolhimento a Jesus e a fé Nele. E Dom
Américo Aguiar, ao verificar a presença das muitas mulheres, lembra a passagem
paralela do Evangelho de João, acentuando que Jesus nos constitui discípulos em
João, que acolhem Maria, e nos entrega em Maria a mãe dos discípulos. Com Ela,
discípulos de Jesus, discípulos da esperança, não temos medo; e, se ele nos
apoquenta, com a graça e a força de discípulos, vencê-lo-emos. Deus está connosco
e Maria, a Senhora dos Navegantes (padroeira da Paróquia
do Parque das Nações),
é a especial testemunha dessa presença misericordiosa de Deus e dá-nos a certeza
de que estamos todos na mesma barca remando em conjunto, fazendo cada um a sua parte,
sendo que boa fatia desta tarefa passa pela obediência para que tudo venha a
ficar bem. Deus providenciará!
Que ninguém
desanime, desista ou perca a serenidade.
2020.04.05 –
Louro de Carvalho
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