domingo, 5 de abril de 2020

Domingo de Ramos, desta vez, sem ramos


Em virtude da continuação do confinamento decorrente da pandemia do novo corona vírus, um pouco por todo o mundo as celebrações comemorativas do domingo da entrada de Jesus em Jerusalém e da Paixão decorreram dentro dos templos, nomeadamente sés catedrais e igrejas paroquiais, sem a participação física de povo, que foi instado a permanecer em casa e a unir-se em espírito e pelos meios de comunicação a alguma das realizações celebrativas, bem como a fazer a comemoração em família. No entanto, muitas revestiram-se de grande dignidade litúrgica e espiritual com o celebrante e demais ministros ordenados devidamente paramentados e os ministros laicais em boa forma nas leituras, oração universal e canto litúrgico sustentado em música instrumental. De ramos a aclamar Jesus apenas mínimas amostras.
Segui a celebração que decorreu na igreja da paróquia do Parque das Nações, sob a presidência de Dom Américo Aguiar, Bispo auxiliar de Lisboa, e a ela me reporto nesta reflexão. O prelado olhou o templo vazio, mas deu-o como repleto de povo que ouve e fala ao mundo a modos da continuação do que foi a EXPO 98 em mensagem universal.
O comentário homilético partiu das asserções do servo sofrente (vd Is 50,4-7):
O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. (…) Não resisti nem recuei um passo. (…) O Senhor Deus veio em meu auxílio e, por isso, não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido.”.     
Assim, desde logo foi clarificado que, sendo discípulos, temos que saber levar uma palavra de alento a tantos e tantas que dela precisam neste momento. E foram mencionados tantos e tantas que estão na linha da frente revelando a solicitude de Deus a tratar dos doentes, a zelar pela segurança de todos, a acionar a proteção civil, a tentar descobrir vacinas e medicamentos, a fabricar material médico, a produzir e transportar bens de que todos precisamos, a estabelecer normas de conduta, a informar e tranquilizar aqueles e aquelas que estão em casa. Obviamente que uma especial atenção do orador se dirigiu para os que sofrem a doença em hospital, casa, lar de idosos, prisão, para as pessoas que deles cuidam, bem como para todos os que têm a obrigação de obedecer às autoridades ficando em casa, apenas se deslocando nas condições e para os fins estabelecidos na legislação de emergência. Depois, os discípulos da esperança, os discípulos de Cristo sabem obedecer em prol do bem de todos, sem a procura de protagonismos, mas com a busca da eficiência e da eficácia. E sabem que Deus providenciará: esta provação vai terminar e nós havemos de nos reencontrar para falarmos da forma como a encarámos.
Por outro lado, Dom Américo Aguiar, tendo em conta a proclamação da Paixão segundo São Mateus, na sua forma longa (Mt 26,26,14 – 27,66), desafiou-nos a que nos coloquemos no papel de cada uma das personagens deste Evangelho, porque efetivamente temos desempenhado os seus papéis. Quantas vezes não lavamos as mãos como Pilatos descartando a nossa responsabilidade sobre o que acontece aos outros, mesmo quando está em jogo a sua vida, saúde e bem-estar? Como temos sido afoitos como Pedro a seguir Jesus ou, envergonhados, negando-O? Como temos desempenhado o papel de Judas traindo o Mestre com nossos erros de hipocrisia, traição e ânsia de dinheiro? Quantas vezes preferimos como aquela multidão Barrabás em vez de Jesus e pedimos ou desejamos a morte Dele nos irmãos e irmãs que sofrem, que são explorados, espezinhados ou descartados? Quantas vezes nos sentimos abandonados por Deus, sem razão? Quantas vezes fugimos ou observamos os acontecimentos de longe? Como somos ágeis em escarnecer? Porém, também somos capazes de fazer como o cireneu ajudando o outro a carregar a sua cruz, como a Verónica a fazer gesto de proximidade ao caminhante em dor ou como José de Arimateia recolhendo o corpo de quem está inanimado como o Cristo descido da cruz!      
E Dom Américo instou à revisitação de três lugares: Getsémani, tribunal romano e Gólgota.
No Getsémani, podemos ver o contraste entre Jesus que, sofrendo por antecipação a dor que estava para chegar, orava ao Pai e assumia inteiramente a vontade do Pai, e os três discípulos que, apesar de desafiados por Jesus a vigiar e a orar para não entrarem em tentação, nem vigiavam nem rezavam: dormiam. E Jesus concluía: “o espírito está pronto, mas a carne é fraca” – o que todos nós experimentamos na vida. Ora, portanto, é preciso invocar o perdão de Deus pelos nossos erros derivados da fraqueza da carne (ou pela malícia por vezes refinada) e rogar insistentemente a ajuda de Deus para que a prontidão do espírito prevaleça.
No tribunal romano, nem parecia que no domingo a multidão aclamara entusiasticamente Jesus. Agora, a multidão (instigada) não se contenta com ver Jesus flagelado e coroados de espinhos: quer a crucifixão, quer mesmo a morte de Jesus, prefere que Pilatos solte Barrabás e crucifique o nazareno ficando o seu sangue “sobre nós e nossos filhos”. Quantas vezes os cristãos, por ação ou por omissão, pedem a morte em vez da vida. E vê-se: continuam os assassinatos, as torturas, as agressões, os espezinhamentos, os abusos sexuais, as cenas de violência doméstica e do namoro, as migrações forçadas, as guerras, o tráfico de armas, droga, órgãos e pessoas, a privação de alimentos e de assistência médica e medicamentosa, a negação da proteção social…
Tinham-No entregado por inveja”. Também hoje, entre os discípulos de Cristo, a tentação da inveja é frequente. E passa pela cobiça dos bens – materiais e culturais ou espirituais de que o outro dispõe, mas sobretudo pela recusa em estar triste com quem está triste e em alegrar-se com quem está contente.
No Gólgota, Cristo é crucificado pelos algozes, que se deram por satisfeitos por terem cumprido ordens e repartido entre si os despojos da vítima. Enquanto Jesus lançava o lamento pelo abandono que sentiu do Pai, outros escarneciam e desafiavam-no a fazer o milagre da sua salvação para mostrar que é o Messias. Como nos podemos rever no sentimento de que Deus nos abandona, o que não é verdade, naquele cumprimento acrítico do cumprimento de ordens, mesmo quando está em jogo a vida e o bem dos outros, a troco de míseras recompensas! E como os escarnecemos ou os desafiamos a mostrarem o que valem para os aceitarmos!
Mas o Gólgota apresenta-nos Nicodemos, o que foi feito discípulo de Jesus, que requisita o corpo de Jesus para lhe dar sepultura condigna, tal como nos mostra o centurião e os que com ele guardavam Jesus a exclamar: Este era verdadeiramente Filho de Deus”.
O Gólgota é, pois, o lugar onde se aprende o acolhimento a Jesus e a fé Nele. E Dom Américo Aguiar, ao verificar a presença das muitas mulheres, lembra a passagem paralela do Evangelho de João, acentuando que Jesus nos constitui discípulos em João, que acolhem Maria, e nos entrega em Maria a mãe dos discípulos. Com Ela, discípulos de Jesus, discípulos da esperança, não temos medo; e, se ele nos apoquenta, com a graça e a força de discípulos, vencê-lo-emos. Deus está connosco e Maria, a Senhora dos Navegantes (padroeira da Paróquia do Parque das Nações), é a especial testemunha dessa presença misericordiosa de Deus e dá-nos a certeza de que estamos todos na mesma barca remando em conjunto, fazendo cada um a sua parte, sendo que boa fatia desta tarefa passa pela obediência para que tudo venha a ficar bem. Deus providenciará!
Que ninguém desanime, desista ou perca a serenidade. 
2020.04.05 – Louro de Carvalho

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